Imagine a seguinte situação
hipotética:
ECOPISTAS é a empresa responsável
pela administração da rodovia Ayrton Senna, localizada no Estado de São
Paulo. Trata-se, portanto, de uma concessionária de serviço público
(concessionária de rodovia).
João trafegava com seu veículo
pela rodovia Ayrton Senna, à noite, em uma área com várias fazendas ao redor.
Ele foi surpreendido com um boi deitado na pista. Sem tempo para desviar, João
acabou colidindo com o animal, o que ocasionou danos em seu veículo.
Ação de indenização
Após o acidente, João ajuizou ação
de indenização contra a ECOPISTAS, concessionária responsável pela
administração da rodovia Ayrton Senna, requerendo o ressarcimento dos danos
causados em seu carro.
O autor alegou que a ré, na qualidade de concessionária de
serviço público, responde objetivamente pelos danos causados a terceiros,
sujeitando-se ao risco administrativo, conforme dispõe o art. 37, § 6º da
Constituição Federal de 1988:
Art. 37 (...)
§ 6º As pessoas jurídicas de direito
público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão
pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado
o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.
Além disso, argumentou que essa responsabilidade objetiva é
reforçada pelo art. 14 do Código de Defesa do Consumidor:
Art. 14. O fornecedor de serviços
responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos
causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem
como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos.
Afirmou que a se aplica, no caso,
o Código de Defesa do Consumidor porque a ré se enquadra no conceito de
fornecedora (art. 3º), ao assumir obrigação contratual de prestar serviços
adequados de fiscalização e manutenção das estradas sob sua administração,
recebendo, para tanto a correspondente remuneração de seus usuários.
Contestação
A ré contestou o pedido afirmando
que não deveria ser aplicado o Código de Defesa do Consumidor neste caso e que
não houve nexo de causalidade entre a sua conduta e o acidente uma vez que a responsabilidade
era do proprietário do animal.
Amicus curiae
A Associação Brasileira de
Concessionárias de Rodovias (ABCR), na condição de AMICUS CURIAE, defendeu que a
imputação de responsabilidade das concessionárias de serviço público por
acidentes causados por animais domésticos em rodovia estaria fundada em suposta
conduta omissiva, devendo ser aplicada a Teoria da Culpa Administrativa, diante
da:
A) impossibilidade de
responsabilização da concessionária por atos de terceiros;
B) necessária demonstração de
culpa pela prestadora de serviço público, sob pena de se universalizar sua
responsabilidade a despeito de exigência legal – ou contratual – de conduta
diversa.
O que decidiu o STJ?
Trata-se de responsabilidade objetiva neste caso? Aplica-se o CDC?
SIM.
As concessionárias de serviços
públicos (como é o caso das concessionárias de rodovias) possuem
responsabilidade objetiva por acidentes causados pela presença de animais
domésticos nas rodovias, aplicando-se a teoria do risco administrativo.
Isso por força do Código de Defesa do Consumidor, que se
aplica às concessionárias, conforme previsão expressa do art. 22 do CDC:
Art. 22. Os órgãos públicos, por
si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra
forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados,
eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos.
Parágrafo único. Nos casos de
descumprimento, total ou parcial, das obrigações referidas neste artigo, serão
as pessoas jurídicas compelidas a cumpri-las e a reparar os danos causados, na
forma prevista neste código.
A aplicação do CDC para as concessionárias é prevista também
na própria Lei das Concessões (Lei nº 8.987/1995):
Art. 7º Sem prejuízo do disposto
na Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990, são direitos e obrigações dos
usuários:
I - receber serviço adequado;
II - receber do poder concedente
e da concessionária informações para a defesa de interesses individuais ou coletivos;
III - obter e utilizar o serviço,
com liberdade de escolha entre vários prestadores de serviços, quando for o
caso, observadas as normas do poder concedente.
IV - levar ao conhecimento do
poder público e da concessionária as irregularidades de que tenham
conhecimento, referentes ao serviço prestado;
V - comunicar às autoridades
competentes os atos ilícitos praticados pela concessionária na prestação do
serviço;
VI - contribuir para a
permanência das boas condições dos bens públicos através dos quais lhes são
prestados os serviços.
Esse é o entendimento não apenas
do STJ, mas também do STF que já decidiu que “as pessoas jurídicas de direito
privado, prestadoras de serviço público, respondem objetivamente pelos
prejuízos que causarem a terceiros usuários e não usuários do serviço.” (RE
591.874-RG, Rel. Min. Ricardo Lewandowski - Tema 130).
Portanto, não cabe aplicar a
teoria da culpa administrativa para eximir as concessionárias de
responsabilidade.
As concessionárias devem
seguir padrões mínimos de fiscalização e manutenção, incluindo a instalação de
bases operacionais e a realização de rondas periódicas
Considerando o princípio da
prevenção, as regras contratuais que impõem a instalação de bases operacionais
com distâncias máximas entre elas, bem como a realização de rondas periódicas
com intervalos máximos e a previsão de tempo máximo para o atendimento de
ocorrências representam padrões mínimos a serem observados pelas
concessionárias.
A responsabilidade das
concessionárias não é afastada pelo dever de fiscalização do poder público
Cabe salientar também que o dever de fiscalização dos entes
públicos não afasta a responsabilidade civil das concessionárias, nos termos do
art. 25 da Lei das Concessões:
Art. 25. Incumbe à concessionária
a execução do serviço concedido, cabendo-lhe responder por todos os prejuízos
causados ao poder concedente, aos usuários ou a terceiros, sem que a
fiscalização exercida pelo órgão competente exclua ou atenue essa
responsabilidade.
Princípio da primazia do
interesse da vítima
Além disso, o princípio da
primazia do interesse da vítima, decorrente do princípio da solidariedade,
impõe a reparação dos danos independentemente da identificação do proprietário
do animal cujo ingresso na rodovia causou o acidente.
Assim, cabe à concessionária
indenizar o usuário pelos danos sofridos e, se lhe aprouver, exercer eventual
direito de regresso, oportunamente, contra o dono do animal envolvido no
acidente.
Em suma:
As concessionárias de rodovias respondem,
independentemente da existência de culpa, pelos danos oriundos de acidentes
causados pela presença de animais domésticos nas pistas de rolamento,
aplicando-se as regras do Código de Defesa do Consumidor e da Lei das
Concessões.
STJ. Corte
Especial. REsp 1.908.738-SP, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em
21/8/2024 (Recurso Repetitivo – Tema 1122) (Info 822).