Dizer o Direito

domingo, 29 de setembro de 2024

Se o motorista colide seu carro com um animal que estava na pista, ele poderá ser indenizado pela concessionária que administra a rodovia?

Imagine a seguinte situação hipotética:

ECOPISTAS é a empresa responsável pela administração da rodovia Ayrton Senna, localizada no Estado de São Paulo. Trata-se, portanto, de uma concessionária de serviço público (concessionária de rodovia).

João trafegava com seu veículo pela rodovia Ayrton Senna, à noite, em uma área com várias fazendas ao redor. Ele foi surpreendido com um boi deitado na pista. Sem tempo para desviar, João acabou colidindo com o animal, o que ocasionou danos em seu veículo.

 

Ação de indenização

Após o acidente, João ajuizou ação de indenização contra a ECOPISTAS, concessionária responsável pela administração da rodovia Ayrton Senna, requerendo o ressarcimento dos danos causados em seu carro.

O autor alegou que a ré, na qualidade de concessionária de serviço público, responde objetivamente pelos danos causados a terceiros, sujeitando-se ao risco administrativo, conforme dispõe o art. 37, § 6º da Constituição Federal de 1988:

Art. 37 (...)

§ 6º As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.

 

Além disso, argumentou que essa responsabilidade objetiva é reforçada pelo art. 14 do Código de Defesa do Consumidor:

Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos.

 

Afirmou que a se aplica, no caso, o Código de Defesa do Consumidor porque a ré se enquadra no conceito de fornecedora (art. 3º), ao assumir obrigação contratual de prestar serviços adequados de fiscalização e manutenção das estradas sob sua administração, recebendo, para tanto a correspondente remuneração de seus usuários.

 

Contestação

A ré contestou o pedido afirmando que não deveria ser aplicado o Código de Defesa do Consumidor neste caso e que não houve nexo de causalidade entre a sua conduta e o acidente uma vez que a responsabilidade era do proprietário do animal.

 

Amicus curiae

A Associação Brasileira de Concessionárias de Rodovias (ABCR), na condição de AMICUS CURIAE, defendeu que a imputação de responsabilidade das concessionárias de serviço público por acidentes causados por animais domésticos em rodovia estaria fundada em suposta conduta omissiva, devendo ser aplicada a Teoria da Culpa Administrativa, diante da:

A) impossibilidade de responsabilização da concessionária por atos de terceiros;

B) necessária demonstração de culpa pela prestadora de serviço público, sob pena de se universalizar sua responsabilidade a despeito de exigência legal – ou contratual – de conduta diversa.

 

O que decidiu o STJ? Trata-se de responsabilidade objetiva neste caso? Aplica-se o CDC?

SIM.

As concessionárias de serviços públicos (como é o caso das concessionárias de rodovias) possuem responsabilidade objetiva por acidentes causados pela presença de animais domésticos nas rodovias, aplicando-se a teoria do risco administrativo.

Isso por força do Código de Defesa do Consumidor, que se aplica às concessionárias, conforme previsão expressa do art. 22 do CDC:

Art. 22. Os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos.

Parágrafo único. Nos casos de descumprimento, total ou parcial, das obrigações referidas neste artigo, serão as pessoas jurídicas compelidas a cumpri-las e a reparar os danos causados, na forma prevista neste código.

 

A aplicação do CDC para as concessionárias é prevista também na própria Lei das Concessões (Lei nº 8.987/1995):

Art. 7º Sem prejuízo do disposto na Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990, são direitos e obrigações dos usuários:

I - receber serviço adequado;

II - receber do poder concedente e da concessionária informações para a defesa de interesses individuais ou     coletivos;

III - obter e utilizar o serviço, com liberdade de escolha entre vários prestadores de serviços, quando for o caso, observadas as normas do poder concedente.

IV - levar ao conhecimento do poder público e da concessionária as irregularidades de que tenham conhecimento, referentes ao serviço prestado;

V - comunicar às autoridades competentes os atos ilícitos praticados pela concessionária na prestação do serviço;

VI - contribuir para a permanência das boas condições dos bens públicos através dos quais lhes são prestados os serviços.

 

Esse é o entendimento não apenas do STJ, mas também do STF que já decidiu que “as pessoas jurídicas de direito privado, prestadoras de serviço público, respondem objetivamente pelos prejuízos que causarem a terceiros usuários e não usuários do serviço.” (RE 591.874-RG, Rel. Min. Ricardo Lewandowski - Tema 130).

Portanto, não cabe aplicar a teoria da culpa administrativa para eximir as concessionárias de responsabilidade.

 

As concessionárias devem seguir padrões mínimos de fiscalização e manutenção, incluindo a instalação de bases operacionais e a realização de rondas periódicas

Considerando o princípio da prevenção, as regras contratuais que impõem a instalação de bases operacionais com distâncias máximas entre elas, bem como a realização de rondas periódicas com intervalos máximos e a previsão de tempo máximo para o atendimento de ocorrências representam padrões mínimos a serem observados pelas concessionárias.

 

A responsabilidade das concessionárias não é afastada pelo dever de fiscalização do poder público

Cabe salientar também que o dever de fiscalização dos entes públicos não afasta a responsabilidade civil das concessionárias, nos termos do art. 25 da Lei das Concessões:

Art. 25. Incumbe à concessionária a execução do serviço concedido, cabendo-lhe responder por todos os prejuízos causados ao poder concedente, aos usuários ou a terceiros, sem que a fiscalização exercida pelo órgão competente exclua ou atenue essa responsabilidade.

 

Princípio da primazia do interesse da vítima

Além disso, o princípio da primazia do interesse da vítima, decorrente do princípio da solidariedade, impõe a reparação dos danos independentemente da identificação do proprietário do animal cujo ingresso na rodovia causou o acidente.

Assim, cabe à concessionária indenizar o usuário pelos danos sofridos e, se lhe aprouver, exercer eventual direito de regresso, oportunamente, contra o dono do animal envolvido no acidente.

 

Em suma:

As concessionárias de rodovias respondem, independentemente da existência de culpa, pelos danos oriundos de acidentes causados pela presença de animais domésticos nas pistas de rolamento, aplicando-se as regras do Código de Defesa do Consumidor e da Lei das Concessões. 

STJ. Corte Especial. REsp 1.908.738-SP, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em 21/8/2024 (Recurso Repetitivo – Tema 1122) (Info 822).


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