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quarta-feira, 11 de setembro de 2024

Nos contratos de TV por assinatura e internet, são nulas as cláusulas que preveem a responsabilidade do consumidor em indenizar dano, perda, furto, roubo, extravio de quaisquer equipamentos entregues em comodato ou locação pela prestadora de serviço

Imagine a seguinte situação adaptada:

João contratou os serviços de TV por assinatura e internet da NET SERVIÇOS DE COMUNICAÇÃO.

Nos contratos, havia duas cláusulas prevendo que o consumidor deveria indenizar a empresa em caso de dano, perda, furto, roubo ou extravio dos equipamentos entregues pela prestadora de serviços (modem, decodificador, controle remoto etc.).

 

Cláusula 12.01.07 do contrato de prestação de serviço de TV por assinatura: previa que, se houver qualquer dano, perda, furto, roubo ou extravio dos equipamentos, o assinante será responsabilizado e terá que pagar o valor correspondente à operadora.

A cláusula estava assim redigida:

Cláusula 12.01.07: No caso do(s) equipamento(s) ser cedido em regime de comodato ou de locação, o ASSINANTE ficará responsável pelo bem assumindo inteira responsabilidade, na qualidade de fiel depositário, pela guarda e integridade do equipamento, na forma dos artigos 579 a 585 e 565 a 576 do Código Civil Brasileiro, respectivamente, devendo restitui-los à OPERADORA, mediante visita desta previamente agendada com o ASSINANTE, caso haja rescisão do presente contrato, respondendo ainda nas hipóteses de dano, perda, furto, roubo e/ou extravio do aludido equipamento, que, em qualquer dos casos, gerarão a cobrança do valor do equipamento pela OPERADORA ao ASSINANTE.

 

Cláusula 10.01.07 do contrato Net Vírtua: esta cláusula é similar à anterior, mas se refere especificamente ao equipamento cable modem. O assinante também é responsável pela guarda e integridade do cable modem e deve devolvê-lo à operadora caso o contrato seja encerrado. Em casos de dano, perda, furto, roubo ou extravio, o assinante será responsabilizado e precisará pagar pelo equipamento.

Cláusula 10.01.07: No caso do equipamento cable modem ser cedido em regime de comodato ou de locação, o ASSINANTE ficará responsável pelo bem assumindo inteira responsabilidade, na qualidade de fiel depositário, pela guarda e integridade do cable modem, na forma dos artigos 579 a 585 e 565 a 576 do Código Civil Brasileiro, respectivamente, devendo restitui-los à OPERADORA, mediante visita desta previamente agendada com o ASSINANTE, caso haja rescisão do presente contrato, respondendo ainda nas hipóteses de dano, perda, furto, roubo e/ou extravio do aludido equipamento, que, em qualquer dos casos, gerarão a cobrança do valor do equipamento pela OPERADORA ao ASSINANTE.

 

Ocorre que, alguns meses depois de assinados os contratos de TV e internet, João foi vítima de um furto em sua residência. Um ladrão entrou na residência e, dentre outros bens, subtraiu os dois decodificadores da NET.

O consumidor constatou que aquele bairro havia se tornado muito perigoso e decidiu encerrar o contrato de locação do imóvel onde residia. Como consequência, solicitou também o cancelamento dos contratos de serviços firmados com a NET.

A empresa, no entanto, exigiu o pagamento do valor dos equipamentos furtados, cobrando a quantia de R$ 895,00 como ressarcimento pelos decodificadores digitais e dois smart cards subtraídos.

O consumidor explicou à empresa o que ocorreu, além de ter apresentado o boletim de ocorrência referente ao crime do qual foi vítima. Mesmo assim, a NET manteve a cobrança e incluiu o nome do consumidor no cadastro de inadimplentes.

 

Ação civil pública

Após tomar conhecimento de diversas ações semelhantes à de João, o Ministério Público de São Paulo ajuizou ação civil pública em face da NET SERVIÇOS, com a finalidade de declarar nula toda e qualquer cláusula que preveja a responsabilidade do consumidor em indenizar as hipóteses de dano, perda, furto, roubo ou extravio de qualquer equipamento entregue a ele em comodato ou locação.

O Parquet alegou que a cláusula é nula, pois envolve renúncia de direitos e transfere ao consumidor o risco da atividade do fornecedor. Também afirmou que essa prática configura venda casada, já que o comodato ou locação dos equipamentos é imposto aos assinantes como condição para o serviço.

Por fim, apontou que a cláusula cria uma desvantagem excessiva para o consumidor, que só pode adquirir o produto diretamente da empresa, por um preço definido unilateralmente.

O juiz julgou os pedidos procedentes, mas o Tribunal de Justiça de São Paulo deu provimento ao recurso da NET e reformou a sentença por entender que as cláusulas não violaram o Código de Defesa do Consumidor.

Diante disso, o Ministério Público interpôs recurso especial insistindo na tese da abusividade dessas cláusulas.

 

O STJ concordou com os argumentos do MP?

SIM.

Nos contratos de TV por assinatura e internet, o consumidor pode escolher a prestadora, mas não tem liberdade para escolher com quem vai fazer o contrato de comodato ou locação dos equipamentos necessários para usar o serviço.

Normalmente, locação e comodato são contratos principais no direito privado. Porém, no contexto do consumo, eles são contratos acessórios que vêm obrigatoriamente junto com a contratação dos serviços de TV por assinatura e internet.

Assim, se o consumidor não tem a opção de comprar os equipamentos e é obrigado a aceitar o comodato ou a locação impostos pela operadora, é abusiva a cláusula que responsabiliza o consumidor pela perda ou dano dos equipamentos, mesmo em situações de caso fortuito ou força maior.

Manter cláusulas que transferem todo o risco para o consumidor em contratos de adesão, feitos unilateralmente pelo fornecedor, é uma prática abusiva que gera um desequilíbrio contratual, colocando o consumidor em desvantagem.

Por outro lado, retirar essa cláusula não prejudica o fornecedor, pois, se o consumidor alegar caso fortuito ou força maior (como um roubo), ele terá que provar que o evento realmente aconteceu.

 

Em suma:

Nos contratos de prestação de serviços de TV por assinatura e internet, são nulas as cláusulas que preveem a responsabilidade do consumidor em indenizar dano, perda, furto, roubo, extravio de quaisquer equipamentos entregues em comodato ou locação pela prestadora de serviço. 

STJ. 3ª Turma. REsp 1.852.362-SP, Rel. Min. Humberto Martins, julgado em 6/8/2024 (Info 820).


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