terça-feira, 3 de setembro de 2024
Não é possível que o Ministério Público requeira informações do COAF sem que haja prévia instauração de investigação formal; o fato de já existir Notícia de Fato ou VPI não supre essa exigência
Antes de explicar o julgado, é importante
fazer algumas considerações preliminares.
ENTENDENDO O QUE É A NOTÍCIA DE FATO E A VERIFICAÇÃO DE
PROCEDÊNCIA DE INFORMAÇÕES
Notícia de Fato
A “Notícia de Fato” é um procedimento
utilizado para registrar e tratar (dar um encaminhamento) as demandas que
chegam ao Ministério Público, possibilitando a avaliação de sua relevância e a
necessidade de instauração de um procedimento mais formal, como um inquérito ou
processo administrativo.
Ex: alguém procura o Ministério Público e
narra que está ocorrendo um crime. Isso é uma Notícia de Fato.
O CNMP editou a Resolução nº 174/2017
regulamentando o procedimento interno que o MP deve obedecer quando receber uma
Notícia de Fato.
Veja o conceito dado pela Resolução:
Art. 1º A Notícia de Fato é
qualquer demanda dirigida aos órgãos da atividade-fim do Ministério Público,
submetida à apreciação das Procuradorias e Promotorias de Justiça, conforme as
atribuições das respectivas áreas de atuação, podendo ser formulada presencialmente
ou não, entendendo-se como tal a realização de atendimentos, bem como a entrada
de notícias, documentos, requerimentos ou representações.
Registro da Notícia de Fato
• A Notícia de Fato deve ser registrada em um
sistema informatizado e distribuída livremente entre os órgãos ministeriais.
• Quando o fato noticiado já estiver sendo
investigado, a distribuição será por prevenção.
• Em caso de falta de atribuição do órgão que
recebeu a Notícia de Fato, esta deverá ser remetida ao órgão competente.
• A Notícia de Fato deve ser apreciada no
prazo de 30 dias, prorrogável uma vez por até 90 dias, se necessário e de forma
fundamentada. Nesse prazo, o membro do Ministério Público poderá colher
informações preliminares imprescindíveis para deliberar sobre a instauração do
procedimento próprio, sendo vedada a expedição de requisições.
A Notícia de Fato será arquivada
quando:
• o fato narrado já tiver sido objeto de
investigação ou de ação judicial ou já se encontrar solucionado;
• a lesão ao bem jurídico tutelado for
manifestamente insignificante, nos termos de jurisprudência consolidada ou
orientação do Conselho Superior ou de Câmara de Coordenação e Revisão;
• for desprovida de elementos de prova ou de
informação mínimos para o início de uma apuração, e o noticiante não atender à
intimação para complementá-la.
O noticiante será informado do arquivamento,
preferencialmente por correio eletrônico, e poderá recorrer da decisão no prazo
de 10 dias.
Caso não haja reconsideração, o recurso será
remetido ao Conselho Superior do Ministério Público ou à Câmara de Coordenação
e Revisão.
Notícia de Fato poderá gerar a
instauração de procedimento
• Se a Notícia de Fato indicar a necessidade
de apuração, o Ministério Público poderá instaurar o procedimento
correspondente.
• O procedimento administrativo deve ser
concluído no prazo de 1 ano, podendo ser prorrogado, desde que fundamentado.
Verificação de procedência de
informações (VPI)
A verificação de procedência de informações
(VPI) é um procedimento preliminar à investigação propriamente dita, que se
equipara à Notícia de Fato.
Está prevista no art. 5º, § 3º, do CPP:
Art. 5º (...)
§ 3º Qualquer pessoa do povo que tiver
conhecimento da existência de infração penal em que caiba ação pública poderá,
verbalmente ou por escrito, comunicá-la à autoridade policial, e esta,
verificada a procedência das informações, mandará instaurar inquérito.
Suas principais características são:
• É um procedimento simples e preliminar, que
funciona como um filtro contra investigações temerárias.
• Permite a colheita de indícios mínimos para
justificar a instauração de um inquérito policial.
• As diligências realizadas são relativamente
simples e devem ser documentadas em relatórios.
• Não admite medidas invasivas como busca e
apreensão domiciliar, interceptação telefônica, quebra de sigilo de dados,
apreensão de bens etc.
• Tem o objetivo de checar e confirmar fatos
noticiados, para só então ser possível a instauração de uma investigação
formal.
• Não é considerada uma investigação formal,
mas apenas uma checagem ou confirmação preliminar de informações.
• Não autoriza a expedição de requisições ou
realização de medidas invasivas.
• Pode ser instaurada a partir de qualquer
informação de possível crime, mesmo que posteriormente se mostre inverídica.
• Serve como um filtro prévio antes da
instauração de procedimentos investigatórios formais como o Inquérito Policial
ou o Procedimento Investigatório Criminal.
Assim, a VPI é um procedimento preliminar e
simplificado para verificar a procedência de informações sobre possíveis
crimes, antes de se iniciar uma investigação formal.
EXPLICAÇÃO DO JULGADO
Imagine a seguinte situação
hipotética:
João é sócio de uma empresa de investimentos chamada “Lucros Rápidos”.
Ele promete aos seus clientes retornos extraordinários de 20% ao mês, muito
acima do mercado. Na verdade, João está operando um esquema de pirâmide
financeira, usando o dinheiro de novos investidores para pagar os rendimentos
dos antigos.
O Ministério Público recebeu uma denúncia anônima sobre as atividades
suspeitas de João.
O membro do Ministério Público registrou essa denúncia anônima como uma “Notícia
de Fato” para averiguar a situação. Vale ressaltar que, neste momento inicial,
ele ainda não tem elementos suficientes para instaurar um Procedimento
Investigatório Criminal (PIC).
Mesmo assim, apenas com a Notícia de Fato registrada, o Promotor solicitou
ao COAF (Conselho de Controle de Atividades Financeiras) um Relatório de
Inteligência Financeira (RIF) sobre João e sua empresa.
O COAF produz o relatório, que aponta movimentações financeiras atípicas.
Agora sim, com base nesse relatório, o Ministério Público instaurou um
Procedimento Investigatório Criminal (PIC) contra João por suspeita de
estelionato e lavagem de dinheiro. Após o PIC, o Ministério Público ofereceu
denúncia contra o investigado.
A defesa de João impetrou habeas corpus alegando que o RIF foi obtido de
forma ilegal, pois não havia uma investigação formal em curso no momento da
requisição do relatório.
A existência de mera Notícia de Fato não era suficiente para solicitar
informação ao COAF.
Para a defesa, o que o Ministério Público fez foi “pescaria probatória”
indevida.
O STJ concordou com os argumentos da defesa?
SIM.
Como vimos acima, a Notícia de
Fato é instrumento disciplinado pelo Conselho Nacional do Ministério Público,
por meio da Resolução nº 174/2017.
O parágrafo único do art. 3º da
Resolução prevê que “o membro do Ministério Público poderá colher informações
preliminares imprescindíveis para deliberar sobre a instauração do procedimento
próprio, sendo vedada a expedição de requisições”.
O simples fato de o Ministério
Público receber e registrar a Notícia de Fato não significa que exista uma investigação
formal.
A Notícia de Fato existe com o
objetivo de checar os fatos noticiados, para que só então seja possível a
instauração de uma investigação formal.
Justamente por isso, o Ministério
Público, ao receber uma Notícia de Fato, não pode expedir requisições, uma vez
que os fatos noticiados estão sendo primeiramente confirmados, para só então
serem formalmente investigados.
A Notícia de Fato se equipara à
Verificação de Procedência de Informações (art. 5º, § 3º, do CPP), cuidando-se
ambos de procedimentos preliminares à investigação propriamente dita.
A instauração da Notícia de Fato
e a instauração da Verificação de Procedência de Informações são formalmente
registradas. Isso não significa, contudo, que ao fazer esse registro, já exista
uma investigação formal. O registro da Notícia de Fato e da VPI existe para que
ocorra uma mera checagem, simples confirmação e, sendo confirmadas, possa ser
iniciada a investigação propriamente dita.
Qualquer informação, ainda que
inverídica, pode levar à instauração de uma Notícia de Fato ou de uma Verificação
Prévia de Informações, motivo pelo qual não são admitidas medidas invasivas
nesse período, sob pena de se configurar verdadeira pescaria probatória (fishing
expedition).
Assim, nesse contexto, a mera
informação de fato criminoso, ainda que tenha sido formalmente registrada como
Notícia de Fato ou como Verificação de Procedência de Informações, mas sobre a
qual ainda penda uma checagem, uma verificação, não pode ser considerada uma
investigação formal prévia apta a autorizar a solicitação de informações ao
Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF). Portanto, o exame não é
de mera nomenclatura, mas de existência de efetiva investigação ou de mera
checagem de fatos.
Em suma:
A mera informação de fato criminoso, ainda que tenha
sido formalmente registrada como Notícia de Fato ou como Verificação de
Procedência de Informações, mas sobre a qual ainda penda uma verificação, não
pode ser considerada uma investigação formal prévia apta a autorizar a
solicitação de informações ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras
(COAF).
STJ. 5ª
Turma. AgRg no RHC 187.335-PR, Rel. Min. Ribeiro Dantas, Rel. para acórdão Min.
Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 18/6/2024 (Info 21 – Edição
Extraordinária).
Se já tivesse sido
instaurado o PIC, o membro do Ministério Público poderia ter requisitado
diretamente o relatório do COAF?
SIM.
O Ministério Público pode
requisitar diretamente relatórios de inteligência financeira ao COAF/UIF, para
fins criminais, independentemente de autorização judicial.
A Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal entendeu,
expressamente, na Reclamação n. 61.944/PA, pela possibilidade de
compartilhamento dos relatórios de inteligência financeira do COAF com os
órgãos de persecução penal, para fins criminais, tanto espontaneamente quanto a
requerimento de autoridade, sem a obrigatoriedade de prévia autorização
judicial, desde que atendidos os requisitos formais estabelecidos na tese de
repercussão geral.
STJ. 5ª Turma. AgRg no RHC 185.644/SC, Rel. Min. Messod Azulay
Neto, julgado em 9/4/2024.
No Tema 990/RG, o Supremo Tribunal Federal reconheceu
constitucional o compartilhamento de Relatórios de Inteligência Financeira
(RIF) entre o COAF e as autoridades de persecução penal sem necessidade de
prévia autorização judicial, inclusive com a possibilidade de solicitação do
material ao órgão de inteligência financeira.
STF. 1ª Turma.
Rcl 61944 AgR, Rel. Min. Cristiano Zanin, julgado em 02/04/2024.