Imagine a seguinte situação hipotética:
João é um empresário que está sendo investigado em
inquérito policial por supostos crimes financeiros.
O juiz, a requerimento da autoridade policial, determinou
o bloqueio universal dos bens do investigado, totalizando cerca de R$ 10
milhões.
O escritório de advocacia responsável pela defesa do
investigado peticionou ao juiz requerendo a liberação de R$ 2 milhões do
numerário apreendido para o pagamento de honorários advocatícios e para o
reembolso de despesas com a defesa do investigado.
O escritório fundamentou seu pedido no art. 24-A do Estatuto
da Advocacia (Lei nº 8.906/94), incluído pela Lei nº 14.365/2022:
Art. 24-A. No caso de bloqueio
universal do patrimônio do cliente por decisão judicial, garantir-se-á ao
advogado a liberação de até 20% (vinte por cento) dos bens bloqueados para fins
de recebimento de honorários e reembolso de gastos com a defesa, ressalvadas as
causas relacionadas aos crimes previstos na Lei nº 11.343, de 23 de agosto de
2006 (Lei de Drogas), e observado o disposto no parágrafo único do art. 243 da
Constituição Federal.
§ 1º O pedido de desbloqueio de
bens será feito em autos apartados, que permanecerão em sigilo, mediante a
apresentação do respectivo contrato.
§ 2º O desbloqueio de bens
observará, preferencialmente, a ordem estabelecida no art. 835 da Lei nº
13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil).
§ 3º Quando se tratar de dinheiro
em espécie, de depósito ou de aplicação em instituição financeira, os valores
serão transferidos diretamente para a conta do advogado ou do escritório de
advocacia responsável pela defesa.
§ 4º Nos demais casos, o advogado
poderá optar pela adjudicação do próprio bem ou por sua venda em hasta pública
para satisfação dos honorários devidos, nos termos do art. 879 e seguintes da
Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil).
§ 5º O valor excedente deverá ser
depositado em conta vinculada ao processo judicial.
O juiz deferiu o pleito em parte e liberou apenas R$ 500
mil.
O magistrado argumentou que o art. 24-A acima transcrito
permite que ele, discricionariamente, libere até 20% dos bens bloqueados. Isso
significa que ele pode liberar um percentual menor.
No caso, é devido o levantamento apenas parcial dos
honorários advocatícios considerando que o momento embrionário das
investigações não recomendaria a sua liberação integral.
A decisão do juiz foi mantida pelo Tribunal de Justiça.
Inconformado, o escritório de advocacia recorreu ao STJ.
O STJ concordou com a liberação integral do valor
dos honorários até o limite de 20%?
SIM.
A questão central é determinar se, quando há bloqueio
total dos bens do investigado, o juiz tem a liberdade de decidir quanto dos
valores bloqueados pode ser liberado para pagar honorários advocatícios, ou se,
ao contrário, é obrigatório liberar o valor total dos honorários acordados
entre as partes, desde que não ultrapasse o limite legal de 20% do patrimônio
bloqueado.
No caso analisado, as instâncias inferiores decidiram
permitir a liberação apenas parcial dos honorários advocatícios. Essa decisão
foi baseada no fato de que as investigações ainda estavam no início, o que não
justificaria a liberação completa dos honorários. Além disso, interpretaram que
a expressão “até 20% dos bens bloqueados”, presente no art. 24-A da Lei nº 8.906/1994,
dava ao juiz a liberdade para liberar uma porcentagem menor, se julgasse
apropriado.
O STJ não concordou com o entendimento
do juiz e do Tribunal de Justiça porque reduz excessivamente a autonomia
privada das partes — ou seja, o contrato entre cliente e advogado — conferindo
ao magistrado o poder de decidir o que seria razoável e proporcional em relação
aos serviços prestados.
Assim, se o contrato firmado
entre as partes estipula que o pagamento dos honorários deve ser integralmente
realizado no início da persecução penal, não há razão para alegar que o estágio
preliminar das investigações afastaria a possibilidade de liberação desses
honorários. Esse aspecto é plenamente decidido pelas partes envolvidas no
contrato.
O direito à defesa e a importância
da advocacia no Estado Democrático de Direito justificam uma interpretação do
art. 24-A do Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil (EAOB) que valorize a
relação contratual entre advogado e cliente, desde que lícita e sem indícios de
fraude. Essa relação deve ser respeitada tanto quanto ao valor dos honorários
quanto à forma de pagamento (como data de vencimento, parcelamento, entre
outros aspectos).
A única limitação imposta pelo
legislador é que a liberação dos valores para pagamento dos honorários não pode
exceder 20% de todo o patrimônio bloqueado. Isso significa que os honorários
advocatícios podem ser inferiores a 20% dos valores bloqueados; nesses casos, o
valor liberado deve ser integral, pois não alcança o teto legal. Se os
honorários ultrapassarem 20% do patrimônio bloqueado, a liberação será limitada
a essa porcentagem, para assegurar que os bens bloqueados também possam ser
utilizados para garantir outros interesses, como a reparação da vítima e a
restituição de bens obtidos de forma ilícita.
Portanto, não cabe ao magistrado
avaliar se o estágio inicial da persecução penal justifica o pagamento integral
dos honorários, se isso foi acordado em contrato firmado entre as partes.
Por fim, se houver indícios
concretos de fraude, como uma possível combinação entre o cliente e o advogado
para estabelecer honorários fictícios com o objetivo de contornar o bloqueio de
bens, o magistrado poderá, de forma fundamentada, aplicar uma exceção à regra e
determinar a liberação de um valor inferior ao estipulado artificialmente.
Em suma:
Em caso de bloqueio universal dos bens do
investigado, inexistindo indícios de fraude para estabelecer os honorários em
montante fictício, há obrigatoriedade de se liberar o valor integral dos
honorários advocatícios acordados entre as partes, desde que não ultrapassado o
limite legal de 20% do patrimônio bloqueado.
STJ. 5ª Turma. RMS 71.903-SP, Rel. Min. Joel Ilan Paciornik, julgado
em 6/8/2024 (Info 820).