Dizer o Direito

sábado, 14 de setembro de 2024

Na aplicação do art. 24-A do Estatuto da Advocacia, se não houver indícios de fraude na fixação dos honorários advocatícios, deve-se liberar integralmente o valor acordado, desde que não exceda 20% do patrimônio bloqueado

Imagine a seguinte situação hipotética:

João é um empresário que está sendo investigado em inquérito policial por supostos crimes financeiros.

O juiz, a requerimento da autoridade policial, determinou o bloqueio universal dos bens do investigado, totalizando cerca de R$ 10 milhões.

O escritório de advocacia responsável pela defesa do investigado peticionou ao juiz requerendo a liberação de R$ 2 milhões do numerário apreendido para o pagamento de honorários advocatícios e para o reembolso de despesas com a defesa do investigado.

O escritório fundamentou seu pedido no art. 24-A do Estatuto da Advocacia (Lei nº 8.906/94), incluído pela Lei nº 14.365/2022:

Art. 24-A. No caso de bloqueio universal do patrimônio do cliente por decisão judicial, garantir-se-á ao advogado a liberação de até 20% (vinte por cento) dos bens bloqueados para fins de recebimento de honorários e reembolso de gastos com a defesa, ressalvadas as causas relacionadas aos crimes previstos na Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006 (Lei de Drogas), e observado o disposto no parágrafo único do art. 243 da Constituição Federal.

§ 1º O pedido de desbloqueio de bens será feito em autos apartados, que permanecerão em sigilo, mediante a apresentação do respectivo contrato.

§ 2º O desbloqueio de bens observará, preferencialmente, a ordem estabelecida no art. 835 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil).

§ 3º Quando se tratar de dinheiro em espécie, de depósito ou de aplicação em instituição financeira, os valores serão transferidos diretamente para a conta do advogado ou do escritório de advocacia responsável pela defesa.

§ 4º Nos demais casos, o advogado poderá optar pela adjudicação do próprio bem ou por sua venda em hasta pública para satisfação dos honorários devidos, nos termos do art. 879 e seguintes da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil).

§ 5º O valor excedente deverá ser depositado em conta vinculada ao processo judicial.

 

O juiz deferiu o pleito em parte e liberou apenas R$ 500 mil.

O magistrado argumentou que o art. 24-A acima transcrito permite que ele, discricionariamente, libere até 20% dos bens bloqueados. Isso significa que ele pode liberar um percentual menor.

No caso, é devido o levantamento apenas parcial dos honorários advocatícios considerando que o momento embrionário das investigações não recomendaria a sua liberação integral.

A decisão do juiz foi mantida pelo Tribunal de Justiça.

Inconformado, o escritório de advocacia recorreu ao STJ.

 

O STJ concordou com a liberação integral do valor dos honorários até o limite de 20%?

SIM.

A questão central é determinar se, quando há bloqueio total dos bens do investigado, o juiz tem a liberdade de decidir quanto dos valores bloqueados pode ser liberado para pagar honorários advocatícios, ou se, ao contrário, é obrigatório liberar o valor total dos honorários acordados entre as partes, desde que não ultrapasse o limite legal de 20% do patrimônio bloqueado.

No caso analisado, as instâncias inferiores decidiram permitir a liberação apenas parcial dos honorários advocatícios. Essa decisão foi baseada no fato de que as investigações ainda estavam no início, o que não justificaria a liberação completa dos honorários. Além disso, interpretaram que a expressão “até 20% dos bens bloqueados”, presente no art. 24-A da Lei nº 8.906/1994, dava ao juiz a liberdade para liberar uma porcentagem menor, se julgasse apropriado.

O STJ não concordou com o entendimento do juiz e do Tribunal de Justiça porque reduz excessivamente a autonomia privada das partes — ou seja, o contrato entre cliente e advogado — conferindo ao magistrado o poder de decidir o que seria razoável e proporcional em relação aos serviços prestados.

Assim, se o contrato firmado entre as partes estipula que o pagamento dos honorários deve ser integralmente realizado no início da persecução penal, não há razão para alegar que o estágio preliminar das investigações afastaria a possibilidade de liberação desses honorários. Esse aspecto é plenamente decidido pelas partes envolvidas no contrato.

O direito à defesa e a importância da advocacia no Estado Democrático de Direito justificam uma interpretação do art. 24-A do Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil (EAOB) que valorize a relação contratual entre advogado e cliente, desde que lícita e sem indícios de fraude. Essa relação deve ser respeitada tanto quanto ao valor dos honorários quanto à forma de pagamento (como data de vencimento, parcelamento, entre outros aspectos).

A única limitação imposta pelo legislador é que a liberação dos valores para pagamento dos honorários não pode exceder 20% de todo o patrimônio bloqueado. Isso significa que os honorários advocatícios podem ser inferiores a 20% dos valores bloqueados; nesses casos, o valor liberado deve ser integral, pois não alcança o teto legal. Se os honorários ultrapassarem 20% do patrimônio bloqueado, a liberação será limitada a essa porcentagem, para assegurar que os bens bloqueados também possam ser utilizados para garantir outros interesses, como a reparação da vítima e a restituição de bens obtidos de forma ilícita.

Portanto, não cabe ao magistrado avaliar se o estágio inicial da persecução penal justifica o pagamento integral dos honorários, se isso foi acordado em contrato firmado entre as partes.

Por fim, se houver indícios concretos de fraude, como uma possível combinação entre o cliente e o advogado para estabelecer honorários fictícios com o objetivo de contornar o bloqueio de bens, o magistrado poderá, de forma fundamentada, aplicar uma exceção à regra e determinar a liberação de um valor inferior ao estipulado artificialmente.

 

Em suma:

Em caso de bloqueio universal dos bens do investigado, inexistindo indícios de fraude para estabelecer os honorários em montante fictício, há obrigatoriedade de se liberar o valor integral dos honorários advocatícios acordados entre as partes, desde que não ultrapassado o limite legal de 20% do patrimônio bloqueado. 

STJ. 5ª Turma. RMS 71.903-SP, Rel. Min. Joel Ilan Paciornik, julgado em 6/8/2024 (Info 820).


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