Imagine a seguinte situação adaptada:
Regina, na 27ª semana de gravidez, descobriu que o feto é
portador da Síndrome de Edwards (trissonomia do cromossomo 18) e possui
cardiopatia grave, com ínfima probabilidade de vida extrauterina. De acordo com
o laudo médico:
“Essa
síndrome é considerada grave, onde a maioria dos fetos vão à óbito intra-útero
ou logo após o nascimento. Nesse caso, a condição do feto é ainda mais grave,
em função da cardiopatia que o mesmo apresenta (resultado de alteração
genética).
Os
dados acima, nos mostram que o feto um prognóstico reservado, muito
provavelmente letal.
(...)
Calcula-se
que 95% dos fetos com trissomia 18 sejam abortados espontaneamente, durante a
gravidez. Muitos nascem prematuros e 40% dos bebês morrem durante o parto.
Entre os recém-nascidos que sobrevivem, estima-se que metade não chegue a
completar um ano de vida. A sobrevida média para a síndrome de Edwards varia
entre 3 dias e 14 dias. Os 5 a 10% dos pacientes com síndrome de Edwards que
sobrevivem além do primeiro ano de vida apresentam severa deficiência mental.”
Regina contratou uma advogada que
impetrou habeas corpus preventivo em favor de sua cliente.
A impetrante argumentou que as
condições clínicas do nascituro eliminavam qualquer possibilidade de vida após
o parto e que o presente caso deveria ser enquadrado, por analogia, ao
entendimento firmado na ADPF nº 54, na qual o STF decidiu que a interrupção da
gravidez de fetos anencefálicos não configura crime de aborto:
Mostra-se inconstitucional interpretação de a interrupção da
gravidez de feto anencéfalo ser conduta tipificada nos artigos 124, 126 e 128,
incisos I e II, do Código Penal.
STF. Plenário. ADPF 54, Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em
12/04/2012.
Além disso, a impetrante defendeu
que o dano psicológico à paciente e à sua família deveria ser presumido, uma
vez que seriam forçados a continuar com uma gestação sem chances de sucesso.
Diante disso, a impetrante
requereu autorização para a interrupção da gravidez, com a concessão de
salvo-conduto em favor da paciente (Regina) e de toda a equipe médica envolvida
no procedimento, para que suas ações (aborto do feto) não fossem enquadradas
nos tipos penais descritos nos arts. 124 e 126 do Código Penal.
A discussão chegou até o
STJ. Foi concedida autorização para que Regina pudesse realizar a interrupção
da gravidez?
NÃO.
Na ADPF 54, proposta com o
objetivo de que a interrupção da gravidez de feto anencéfalo não fosse
considerada crime, o STF conferiu interpretação conforme à Constituição. A
Corte decidiu que é inconstitucional interpretar que a interrupção da gravidez
de feto anencéfalo constitui crime de aborto (STF. Plenário. ADPF 54, Rel. Min.
Marco Aurélio, julgado em 12/04/2012).
No voto condutor, o Ministro
Marco Aurélio esclareceu que a questão em análise não tratava da
descriminalização do aborto de forma ampla, mas especificamente da interrupção
da gravidez em casos de fetos anencéfalos.
A anencefalia é uma condição
congênita letal, caracterizada pela ausência parcial ou total do cérebro, sem
possibilidade de cura ou desenvolvimento posterior do tecido encefálico.
O crime de aborto visa proteger a
vida, mas, no caso da anencefalia, o crime não se configura, pois o feto
anencéfalo não possui potencialidade de vida. Não havendo essa potencialidade,
não há razão para a proteção jurídico-penal.
O Ministro Marco Aurélio também
afirmou que “o feto anencéfalo, mesmo que biologicamente vivo, porque feito de
células e tecidos vivos, é juridicamente morto, não gozando de proteção
jurídica e (...) principalmente de proteção jurídico-penal. Nesse contexto, a
interrupção da gestação de feto anencefálico não configura crime contra a vida
- revela-se conduta atípica.”
Dessa forma, a interrupção da
gestação de feto anencefálico não constitui crime contra a vida, sendo
considerada uma conduta atípica.
A interpretação do STF baseia-se,
assim, na inviabilidade da vida extrauterina nesses casos.
Com essa premissa teórica
estabelecida, torna-se impossível aplicar o entendimento ao caso em análise,
uma vez que, embora o feto tenha uma condição genética grave, com alta
probabilidade de letalidade, a documentação médica não confirma a
impossibilidade de vida fora do útero. Portanto, não é possível aplicar por
analogia a interpretação conforme a Constituição fixada pela ADPF 54 do STF.
Além disso, no caso em questão, não foram identificados
elementos objetivos que indicassem risco para a gestante caso a gravidez
prosseguisse, o que poderia, em tese, justificar a aplicação da excludente
prevista no art. 128, I, do Código Penal:
Art. 128 - Não se pune o aborto
praticado por médico:
Aborto necessário
I - se não há outro meio de
salvar a vida da gestante;
(...)
Em suma:
Não é possível a concessão de salvo-conduto
autorizando a realização de procedimento de interrupção da gravidez, em
aplicação, por analogia, do entendimento firmado no julgamento da ADPF n.
54/STF, quando, embora o feto esteja acometido de condição genética com
prognóstico grave (Síndrome de Edwards e cardiopatia grave), com alta
probabilidade de letalidade, não for possível extrair da documentação médica a
impossibilidade de vida fora do útero.
STJ. 5ª Turma. HC 932.495-SC, Rel. Min. Messod Azulay Neto, julgado
em 6/8/2024 (Info 820).