Dizer o Direito

sexta-feira, 13 de setembro de 2024

É possível autorizar o aborto em caso de feto com Síndrome de Edwards utilizando-se, por analogia, do entendimento do STF a respeito dos fetos anencéfalos?

Imagine a seguinte situação adaptada:

Regina, na 27ª semana de gravidez, descobriu que o feto é portador da Síndrome de Edwards (trissonomia do cromossomo 18) e possui cardiopatia grave, com ínfima probabilidade de vida extrauterina. De acordo com o laudo médico:

“Essa síndrome é considerada grave, onde a maioria dos fetos vão à óbito intra-útero ou logo após o nascimento. Nesse caso, a condição do feto é ainda mais grave, em função da cardiopatia que o mesmo apresenta (resultado de alteração genética).

Os dados acima, nos mostram que o feto um prognóstico reservado, muito provavelmente letal.

(...)

Calcula-se que 95% dos fetos com trissomia 18 sejam abortados espontaneamente, durante a gravidez. Muitos nascem prematuros e 40% dos bebês morrem durante o parto. Entre os recém-nascidos que sobrevivem, estima-se que metade não chegue a completar um ano de vida. A sobrevida média para a síndrome de Edwards varia entre 3 dias e 14 dias. Os 5 a 10% dos pacientes com síndrome de Edwards que sobrevivem além do primeiro ano de vida apresentam severa deficiência mental.”

 

Regina contratou uma advogada que impetrou habeas corpus preventivo em favor de sua cliente.

A impetrante argumentou que as condições clínicas do nascituro eliminavam qualquer possibilidade de vida após o parto e que o presente caso deveria ser enquadrado, por analogia, ao entendimento firmado na ADPF nº 54, na qual o STF decidiu que a interrupção da gravidez de fetos anencefálicos não configura crime de aborto:

Mostra-se inconstitucional interpretação de a interrupção da gravidez de feto anencéfalo ser conduta tipificada nos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II, do Código Penal.

STF. Plenário. ADPF 54, Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 12/04/2012.

 

Além disso, a impetrante defendeu que o dano psicológico à paciente e à sua família deveria ser presumido, uma vez que seriam forçados a continuar com uma gestação sem chances de sucesso.

Diante disso, a impetrante requereu autorização para a interrupção da gravidez, com a concessão de salvo-conduto em favor da paciente (Regina) e de toda a equipe médica envolvida no procedimento, para que suas ações (aborto do feto) não fossem enquadradas nos tipos penais descritos nos arts. 124 e 126 do Código Penal.

 

A discussão chegou até o STJ. Foi concedida autorização para que Regina pudesse realizar a interrupção da gravidez?

NÃO.

Na ADPF 54, proposta com o objetivo de que a interrupção da gravidez de feto anencéfalo não fosse considerada crime, o STF conferiu interpretação conforme à Constituição. A Corte decidiu que é inconstitucional interpretar que a interrupção da gravidez de feto anencéfalo constitui crime de aborto (STF. Plenário. ADPF 54, Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 12/04/2012).

No voto condutor, o Ministro Marco Aurélio esclareceu que a questão em análise não tratava da descriminalização do aborto de forma ampla, mas especificamente da interrupção da gravidez em casos de fetos anencéfalos.

A anencefalia é uma condição congênita letal, caracterizada pela ausência parcial ou total do cérebro, sem possibilidade de cura ou desenvolvimento posterior do tecido encefálico.

O crime de aborto visa proteger a vida, mas, no caso da anencefalia, o crime não se configura, pois o feto anencéfalo não possui potencialidade de vida. Não havendo essa potencialidade, não há razão para a proteção jurídico-penal.

O Ministro Marco Aurélio também afirmou que “o feto anencéfalo, mesmo que biologicamente vivo, porque feito de células e tecidos vivos, é juridicamente morto, não gozando de proteção jurídica e (...) principalmente de proteção jurídico-penal. Nesse contexto, a interrupção da gestação de feto anencefálico não configura crime contra a vida - revela-se conduta atípica.”

Dessa forma, a interrupção da gestação de feto anencefálico não constitui crime contra a vida, sendo considerada uma conduta atípica.

A interpretação do STF baseia-se, assim, na inviabilidade da vida extrauterina nesses casos.

Com essa premissa teórica estabelecida, torna-se impossível aplicar o entendimento ao caso em análise, uma vez que, embora o feto tenha uma condição genética grave, com alta probabilidade de letalidade, a documentação médica não confirma a impossibilidade de vida fora do útero. Portanto, não é possível aplicar por analogia a interpretação conforme a Constituição fixada pela ADPF 54 do STF.

Além disso, no caso em questão, não foram identificados elementos objetivos que indicassem risco para a gestante caso a gravidez prosseguisse, o que poderia, em tese, justificar a aplicação da excludente prevista no art. 128, I, do Código Penal:

Art. 128 - Não se pune o aborto praticado por médico:

Aborto necessário

I - se não há outro meio de salvar a vida da gestante;

(...)

 

Em suma:

Não é possível a concessão de salvo-conduto autorizando a realização de procedimento de interrupção da gravidez, em aplicação, por analogia, do entendimento firmado no julgamento da ADPF n. 54/STF, quando, embora o feto esteja acometido de condição genética com prognóstico grave (Síndrome de Edwards e cardiopatia grave), com alta probabilidade de letalidade, não for possível extrair da documentação médica a impossibilidade de vida fora do útero. 

STJ. 5ª Turma. HC 932.495-SC, Rel. Min. Messod Azulay Neto, julgado em 6/8/2024 (Info 820).


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