Imagine a seguinte situação adaptada:
João e outros comparsas estavam envolvidos em uma
organização criminosa que gerenciava apostas ilegais de jogo do bicho, sendo
suspeitos da prática de diversos crimes.
A polícia instaurou inquérito policial e estava
monitorando o grupo.
Determinado dia, policiais estavam à paisana observando discretamente
o escritório da organização criminosa. João saiu do local e deixou dois sacos
de lixo na lixeira em frente ao prédio.
Os policiais recolheram esses sacos que estavam na via
pública.
Ao analisarem o conteúdo, encontram documentos e listas
que comprovavam as operações da organização, incluindo valores arrecadados com
apostas, premiações e a contabilidade interna do grupo.
O material encontrado nos sacos de lixo foi apreendido,
analisado e anexado ao inquérito policial.
Com base nesses e em outros elementos informativos, o
Ministério Público ofereceu denúncia contra João e outros membros da
organização criminosa.
A denúncia foi recebida.
A defesa de João e dos outros réus impetraram habeas
corpus alegando que a coleta desse lixo foi ilegal, pois não houve autorização
judicial para a apreensão e análise. Eles argumentam que essa ação violou o
direito à privacidade dos investigados e que as provas derivadas obtidas
deveriam ser consideradas nulas.
Para os impetrantes, teria ocorrido uma violação da
expectativa de privacidade dos investigados a respeito do material colhido após
o descarte – o que violaria, em última instância, o direito fundamental à
intimidade.
De acordo com a tese veiculada pela defesa, para que a
Polícia Civil acessasse os resíduos sólidos descartados por qualquer pessoa,
ela precisaria de autorização judicial.
Os advogados argumentaram que abrir mão da propriedade
não é o mesmo que abrir mão da privacidade.
Os argumentos dos impetrantes foram acolhidos pelo
STJ?
NÃO.
Todo material, seja ele genético
ou documental, uma vez descartado pelo investigado, sai de sua posse ou domínio
e, portanto, deixa de existir qualquer expectativa de privacidade do
investigado ou possibilidade de se invocar o direito a não colaborar com as
investigações.
No caso, a prova cuja legalidade
é discutida foi colhida em via pública, mais especificamente na calçada do lado
de fora de um dos escritórios utilizados pela organização criminosa que estava
sendo investigada. O descarte dos sacos de lixo foi realizado por um
investigado, não havendo se cogitar em expectativa de privacidade a respeito do
material colhido, dispensando-se autorização judicial para apreensão e análise
do seu conteúdo.
Não se verifica na atuação
policial a chamada pescaria probatória (fishing expedition), pois não se
estava diante de uma investigação indiscriminada, sem objetivo certo ou
declarado. O trabalho de campo já tinha se iniciado, com o mapeamento de
estabelecimentos de fachada, identificação de integrantes e conhecimento do
modo de agir do grupo.
Também não parece ter sido
invertida a lógica das garantias constitucionais, vasculhando-se a intimidade
ou a vida privada dos investigados. A oportunidade apareceu, no momento da
campana policial (toda documentada), com o descarte na rua de material que
poderia ser simples restos de comida, embalagens vazias e papéis sem valor,
como anotações, que se mostraram relevantes e aptas a dar suporte ao que estava
sendo apurado. Não houve nem sequer ingresso no imóvel cuja movimentação estava
se observando. As provas obtidas estavam no lixo.
Dessa forma, é legítima a prova
encontrada no lixo descartado na rua por pessoa apontada como integrante de
grupo criminoso sob investigação e recolhido pela polícia sem autorização
judicial, sem que isso configure pesca probatória (fishing expedition)
ou violação da intimidade.
Em suma:
É legítima a prova encontrada no lixo descartado na
rua por pessoa apontada como integrante de grupo criminoso sob investigação e
recolhido pela polícia sem autorização judicial, sem que isso configure pesca
probatória (fishing expedition) ou violação da intimidade.
STJ. 6ª Turma. RHC 190.158-MG, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior,
julgado em 13/8/2024 (Info 821).