Dizer o Direito

sábado, 21 de setembro de 2024

É legítima a prova encontrada no lixo descartado na rua por pessoa apontada como integrante de grupo criminoso sob investigação e recolhido pela polícia sem autorização judicial, sem que isso configure pesca probatória (fishing expedition) ou violação da intimidade

Imagine a seguinte situação adaptada:

João e outros comparsas estavam envolvidos em uma organização criminosa que gerenciava apostas ilegais de jogo do bicho, sendo suspeitos da prática de diversos crimes.

A polícia instaurou inquérito policial e estava monitorando o grupo.

Determinado dia, policiais estavam à paisana observando discretamente o escritório da organização criminosa. João saiu do local e deixou dois sacos de lixo na lixeira em frente ao prédio.

Os policiais recolheram esses sacos que estavam na via pública.

Ao analisarem o conteúdo, encontram documentos e listas que comprovavam as operações da organização, incluindo valores arrecadados com apostas, premiações e a contabilidade interna do grupo.

O material encontrado nos sacos de lixo foi apreendido, analisado e anexado ao inquérito policial.

Com base nesses e em outros elementos informativos, o Ministério Público ofereceu denúncia contra João e outros membros da organização criminosa.

A denúncia foi recebida.

A defesa de João e dos outros réus impetraram habeas corpus alegando que a coleta desse lixo foi ilegal, pois não houve autorização judicial para a apreensão e análise. Eles argumentam que essa ação violou o direito à privacidade dos investigados e que as provas derivadas obtidas deveriam ser consideradas nulas.

Para os impetrantes, teria ocorrido uma violação da expectativa de privacidade dos investigados a respeito do material colhido após o descarte – o que violaria, em última instância, o direito fundamental à intimidade.

De acordo com a tese veiculada pela defesa, para que a Polícia Civil acessasse os resíduos sólidos descartados por qualquer pessoa, ela precisaria de autorização judicial.

Os advogados argumentaram que abrir mão da propriedade não é o mesmo que abrir mão da privacidade.

 

Os argumentos dos impetrantes foram acolhidos pelo STJ?

NÃO.

Todo material, seja ele genético ou documental, uma vez descartado pelo investigado, sai de sua posse ou domínio e, portanto, deixa de existir qualquer expectativa de privacidade do investigado ou possibilidade de se invocar o direito a não colaborar com as investigações.

No caso, a prova cuja legalidade é discutida foi colhida em via pública, mais especificamente na calçada do lado de fora de um dos escritórios utilizados pela organização criminosa que estava sendo investigada. O descarte dos sacos de lixo foi realizado por um investigado, não havendo se cogitar em expectativa de privacidade a respeito do material colhido, dispensando-se autorização judicial para apreensão e análise do seu conteúdo.

Não se verifica na atuação policial a chamada pescaria probatória (fishing expedition), pois não se estava diante de uma investigação indiscriminada, sem objetivo certo ou declarado. O trabalho de campo já tinha se iniciado, com o mapeamento de estabelecimentos de fachada, identificação de integrantes e conhecimento do modo de agir do grupo.

Também não parece ter sido invertida a lógica das garantias constitucionais, vasculhando-se a intimidade ou a vida privada dos investigados. A oportunidade apareceu, no momento da campana policial (toda documentada), com o descarte na rua de material que poderia ser simples restos de comida, embalagens vazias e papéis sem valor, como anotações, que se mostraram relevantes e aptas a dar suporte ao que estava sendo apurado. Não houve nem sequer ingresso no imóvel cuja movimentação estava se observando. As provas obtidas estavam no lixo.

Dessa forma, é legítima a prova encontrada no lixo descartado na rua por pessoa apontada como integrante de grupo criminoso sob investigação e recolhido pela polícia sem autorização judicial, sem que isso configure pesca probatória (fishing expedition) ou violação da intimidade.

 

Em suma:

É legítima a prova encontrada no lixo descartado na rua por pessoa apontada como integrante de grupo criminoso sob investigação e recolhido pela polícia sem autorização judicial, sem que isso configure pesca probatória (fishing expedition) ou violação da intimidade.

STJ. 6ª Turma. RHC 190.158-MG, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, julgado em 13/8/2024 (Info 821).


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