Dizer o Direito

segunda-feira, 2 de setembro de 2024

Comentários à Emenda Constitucional 133/2024

 

Márcio André Lopes Cavalcante

Juiz Federal do TRF da 1ª Região.

Membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (ABRADEP).

 

Robério Moreira Borges

Analista Judiciário do TRE/AM.

 

Felipe Duque

Procurador da Fazenda Nacional.

Mestre em Direito Político e Econômico na Mackenzie-SP.

Autor do livro “Reforma Tributária Comentada e Esquematizada”.

 

A Emenda Constitucional nº 133/2024, promulgada em 22/08/2024, versou sobre os seguintes temas:

• cotas raciais e financiamento de campanha;

• ampliação da imunidade tributária concedida aos partidos políticos;

• parâmetros e condições para regularização e refinanciamento de débitos de partidos políticos;

• regras para utilização do Fundo Partidário;

• dispensa de recibos eleitorais para determinadas operações.

 

Vejamos cada um dos pontos.

 

1. COTAS RACIAIS E FINANCIAMENTO DE CAMPANHA

 

Partidos devem aplicar, obrigatoriamente, 30% dos recursos públicos do FEFC e do Fundo Partidário destinado às campanhas eleitorais em candidaturas de pessoas pretas ou pardas

 

Para compreender essa alteração, vamos rememorar alguns conceitos relativos ao processo de registro de candidatura e financiamento das campanhas eleitorais.

 

Registro de candidatura e cota de gênero

No período de 20 de julho a 05 de agosto do ano das eleições, os partidos e federações devem realizar convenções partidárias para escolha de seus candidatos.

Durante o processo de escolha dos candidatos, os partidos e federações devem atentar para o disposto no art. 10, §3º, da Lei das Eleições (Lei nº 9.504/97) que prevê que um limite mínimo de 30% (trinta por cento) e o máximo de 70% (setenta por cento) para candidaturas de cada gênero.

Sendo assim, por exemplo, se um partido escolher 10 filiados ou filiadas para concorrer ao cargo de vereador de determinado município, deve ser observado um limite mínimo de 03 candidatos(as) para cada gênero.

 

Existe previsão de cota racial para registro de candidatura?

NÃO.

A legislação eleitoral é silente quanto ao tema.

Instado a se manifestar sobre a questão, o Tribunal Superior Eleitoral decidiu que a criação de cotas raciais seria de competência do Poder Legislativo, não podendo o Poder Judiciário ser protagonista da sua formulação (TSE – Consulta nº 0600306-47.2020.6.00.0000 – Rel. Min. Luís Roberto Barroso – Julgado em 25/08/2020).

Sendo assim, enquanto não houver lei específica sobre o tema, não se poderá exigir número mínimo de candidaturas com base na cor ou etnia do postulante ao cargo público.

 

Agora que compreendemos as regras do registro de candidatura, vamos estudar o financiamento das campanhas

O financiamento das campanhas atualmente é feito de dois modos:

a) por doações de pessoas naturais;

b) com os recursos públicos que são transferidos aos partidos pelo Fundo Partidário e pelo Fundo Especial de Financiamento de Campanha - FEFC.

 

Principais diferenças entre FEFC e Fundo Partidário

 

FEFC

FUNDO PARTIDÁRIO

Fundo Especial de Financiamento de Campanha

Fundo Especial de Assistência Financeira aos Partidos Políticos

Previsto nos arts. 16-C e 16-D da Lei nº 9.504/97.

Previsto nos arts. 38 a 44-A da Lei nº 9.096/95.

Constituído por dotações orçamentárias da União em ano eleitoral, em valor ao menos equivalente:

I - ao definido pelo TSE, a cada eleição, com base nos parâmetros definidos em lei;

II - ao percentual do montante total dos recursos da reserva específica a programações decorrentes de emendas de bancada estadual impositiva, que será encaminhado no projeto de lei orçamentária anual.

Constituído por:

I - multas e penalidades pecuniárias aplicadas nos termos do Código Eleitoral e leis conexas;

II - recursos financeiros que lhe forem destinados por lei;

III - doações de pessoa física ou jurídica, efetuadas por intermédio de depósitos bancários diretamente na conta do Fundo Partidário;

IV - dotações orçamentárias da União.

Destina-se a custear os gastos eleitorais previstos no art. 26 da Lei nº 9.504/97.

Embora também possa ser utilizado para campanhas eleitorais, tem por finalidade primordial assegurar a manutenção dos partidos políticos, custeando as despesas previstas no art. 44 da Lei nº 9.096/95.

 

Como é feita a distribuição desses recursos para os candidatos?

Cabe à direção do partido deliberar sobre a forma de distribuição dos recursos do Fundo Partidário e do FEFC aos seus candidatos, respeitados os parâmetros estabelecidos em resoluções editadas pelo TSE.

Em relação às candidaturas femininas, há previsão constitucional no sentido de que os recursos públicos do FEFC e do Fundo Partidário destinado às campanhas eleitorais sejam proporcionais ao número dessas candidaturas, garantindo-se um mínimo de 30%.

Vejamos:

 

CONSTITUIÇÃO FEDERAL

Art. 17. (...)

§ 8º O montante do Fundo Especial de Financiamento de Campanha e da parcela do fundo partidário destinada a campanhas eleitorais, bem como o tempo de propaganda gratuita no rádio e na televisão a ser distribuído pelos partidos às respectivas candidatas, deverão ser de no mínimo 30% (trinta por cento), proporcional ao número de candidatas, e a distribuição deverá ser realizada conforme critérios definidos pelos respectivos órgãos de direção e pelas normas estatutárias, considerados a autonomia e o interesse partidário.

 

Existe alguma regra específica para o financiamento de candidaturas de negros ou pardos?

SIM. Vamos entender com calma.

 

Na legislação eleitoral não há previsão de distribuição de recursos de acordo com cor ou etnia dos candidatos e candidatas.

No entanto, o Tribunal Superior Eleitoral, no julgamento da Consulta nº 0600306-47.2020.6.00.0000, definiu que a distribuição dos recursos públicos do FEFC e do Fundo Partidário destinado às campanhas deve observar a proporção de candidaturas negros e não-negros (TSE – Consulta nº 0600306-47.2020.6.00.0000 – Rel. Min. Luís Roberto Barroso – Julgado em 25/08/2020).

Segundo o acórdão, a criação de cota baseada no gênero importou em uma diminuição dos recursos públicos disponíveis para a campanha. Por essa razão, para se evitar que as candidaturas de homens negros fossem negativamente afetadas pela instituição da cota de gênero, seria necessário que o Tribunal Superior Eleitoral garantisse que o volume de recursos públicos distribuídos fosse proporcional ao número de candidatos negros.

Desse modo, a partir de então, passou-se a exigir uma dupla proporcionalidade na distribuição dos recursos, tanto em relação às candidaturas femininas como também em relação às candidaturas de pessoas negras.

Esse cálculo é feito a nível nacional pelo Tribunal Superior Eleitoral após o término do registro de candidatura. As regras estão previstas nos arts. 17, §4º, e 19, §3º, da Res. TSE 23.607/2019.

Assim, por exemplo, se metade das candidaturas registradas por um determinado partido fosse de pessoas negras, o partido teria que destinar metade do volume de recursos públicos para candidaturas desse grupo.

Se, por outro lado, o partido tiver apenas 10% de candidaturas de pessoas negras ou pardas, será obrigatória a destinação de 10% dos recursos públicos de campanha para essa finalidade.

Assim, reforçando: até a edição da Emenda Constitucional nº 133/2024 não havia limite mínimo ou máximo de candidaturas de pessoas negras ou pardas, exigindo-se apenas que a distribuição de recursos públicos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha e do Fundo Partidário destinado às campanhas fosse proporcional ao número de candidaturas desse grupo.

 

E o que fez a Emenda Constitucional nº 133/2024?

Acrescentou o §9º, ao art. 17, da Constituição Federal, que passou a prever que os partidos políticos devem aplicar, obrigatoriamente, 30% (trinta por cento) dos recursos públicos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha e do Fundo Partidário destinado às campanhas eleitorais em candidaturas de pessoas negras e pardas, nas circunscrições que melhor atendam aos interesses e estratégias partidárias. Vejamos o dispositivo inserido:

 

Constituição Federal

Art. 17. (...)

§ 9º Dos recursos oriundos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha e do fundo partidário destinados às campanhas eleitorais, os partidos políticos devem, obrigatoriamente, aplicar 30% (trinta por cento) em candidaturas de pessoas pretas e pardas, nas circunscrições que melhor atendam aos interesses e às estratégias partidárias. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 133, de 2024)

 

Da leitura desse novo dispositivo constitucional, é possível perceber que ele versa apenas sobre a distribuição dos recursos públicos para as campanhas eleitorais, não abrangendo o processo de registro de candidatura.

Desse modo, permanece a regra atual de que não há cota racial no registro de candidatura, ou seja, não há limites mínimos ou máximos para a candidatura de pessoas negras ou pardas.

Já em relação ao financiamento da campanha eleitoral, entretanto, houve alteração: a Emenda passou a exigir que o partido destine obrigatoriamente 30% dos recursos para candidaturas de pessoas negras ou pardas.

Note que, a partir de agora, há previsão de um percentual fixo de recursos públicos a serem destinados para candidaturas desse grupo.

Assim, em uma interpretação literal, prevê o dispositivo constitucional que, independentemente do número de candidaturas de pessoas negras ou pardas, o percentual de recursos a ser destinado a esse grupo será sempre de 30% (trinta por cento).

 

Como é apurado esse limite?

Prevê a Emenda Constitucional que o partido pode aplicar esses recursos “nas circunscrições que melhor atendam aos interesses e às estratégias partidárias”.

Essa expressão significa que, desde que observado o percentual estabelecido pela Emenda Constitucional, cabe ao partido decidir em quais candidaturas os recursos serão aplicados.

Por esse motivo, os limites são definidos pelo Tribunal Superior Eleitoral a nível nacional, ao término do registro de candidatura, como já ocorre hoje.

 

Impacto da Emenda Constitucional na legislação eleitoral

Ainda durante a tramitação da proposta de emenda, surgiram questionamentos sobre a constitucionalidade desse novo dispositivo, especialmente porque ele poderia eventualmente representar um retrocesso, na medida em que limitava o volume de recursos públicos a 30% (trinta por cento), ainda que o número de candidaturas de pessoas negras ou pardas fosse superior a esse percentual.

A esse respeito, é importante rememorar que questionamento semelhante foi feito quando da edição da Lei 13.165/2015, que previa, em seu art. 9º, a destinação de no mínimo 5% (cinco por cento) e no máximo 15% (quinze por cento) para candidaturas femininas.

À época, essa discussão foi levada ao Supremo Tribunal Federal na ADI 5.617, ocasião em que aquela Corte decidiu dar interpretação conforme a Constituição para determinar que o montante de recursos a serem aplicados em candidaturas femininas fosse proporcional ao número de candidatas, respeitado o mínimo de 30% (trinta por cento). Vejamos:

 

(...) 4. Ação direta julgada procedente para:

(i) declarar a inconstitucionalidade da expressão “três ” contida no art. 9º da Lei 13.165/2015;

(ii) dar interpretação conforme à Constituição ao art. 9º da Lei 13.165/2015 de modo a

(a) equiparar o patamar legal mínimo de candidaturas femininas (hoje o do art. 10, § 3º, da Lei 9.504/1997, isto é, ao menos 30% de cidadãs), ao mínimo de recursos do Fundo Partidário a lhes serem destinados, que deve ser interpretado como também de 30% do montante do fundo alocado a cada partido, para eleições majoritárias e proporcionais, e

(b) fixar que, havendo percentual mais elevado de candidaturas femininas, o mínimo de recursos globais do partido destinados a campanhas lhes seja alocado na mesma proporção;

(iii) declarar a inconstitucionalidade, por arrastamento, do § 5º-A e do § 7º do art. 44 da Lei 9.096/95.

STF. Plenário. ADI 5617, Rel. Min. Edson Fachin, julgado em 15/03/2018.

 

Por esse motivo, à semelhança do que houve com o financiamento das candidaturas femininas, é possível que haja debate se a emenda deve ser interpretada em seu sentido literal ou se ela apenas representa uma garantia de piso mínimo para candidaturas de pessoas negras ou pardas.

 

E como ficam os partidos que não aplicaram percentual mínimo de recursos nas candidaturas de pessoas negras ou pardas até a edição da Emenda Constitucional?

Como visto anteriormente, as resoluções do Tribunal Superior Eleitoral já previam que a aplicação de recursos em candidaturas de pessoas negras deveria ser proporcional ao número de candidatos desse grupo.

Acontece que alguns desses partidos não cumpriram essa exigência.

A Emenda Constitucional nº 133/2024 estabeleceu uma forma de os partidos regularizarem sua situação, passando a considerar cumprida a exigência desde que a agremiação partidária, a partir de 2026, aplique, nas 4 (quatro) eleições subsequentes, o montante correspondente àquele que deixou de ser aplicado para fins de cumprimento da cota racial nas eleições anteriores, sem prejuízo do cumprimento da cota estabelecida na Emenda Constitucional. Vejamos:

Art. 3º A aplicação de recursos de qualquer valor em candidaturas de pessoas pretas e pardas realizadas pelos partidos políticos nas eleições ocorridas até a promulgação desta Emenda Constitucional, com base em lei, em qualquer outro ato normativo ou em decisão judicial, deve ser considerada como cumprida.

Parágrafo único. A eficácia do disposto no caput deste artigo está condicionada à aplicação, nas 4 (quatro) eleições subsequentes à promulgação desta Emenda Constitucional, a partir de 2026, do montante correspondente àquele que deixou de ser aplicado para fins de cumprimento da cota racial nas eleições anteriores, sem prejuízo do cumprimento da cota estabelecida nesta Emenda Constitucional.

 

 

2. ALCANCE DA IMUNIDADE TRIBUTÁRIA CONCEDIDA A PARTIDOS POLÍTICOS

 

Imunidade Tributária

A imunidade tributária consiste na determinação de que certas atividades, rendas, bens ou pessoas não poderão sofrer a incidência de tributos. Trata-se de uma dispensa constitucional de tributo. A imunidade é uma limitação ao poder de tributar, sendo sempre prevista na própria CF.

Nas palavras do Min. Roberto Barroso:

“As imunidades são limitações impostas pela Constituição ao exercício da competência tributária dos entes federados, desonerando pessoas, renda, bens e serviços do pagamento de determinados tributos, a fim de impedir que valores constitucionais relevantes tenham alcance limitado por intervenções estatais de natureza fiscal. Trata-se, assim, de incompetência constitucionalmente qualificada.” (RE 630790/SP).

 

A Constituição traz normas que permitem o exercício da competência tributária, as normas permissivas, e normas que o proíbem, limitando o poder de tributar, como as imunidades, que carregam situações ou pessoas em que esse poder não pode ser exercido.

Trata-se, assim, de regras jurídicas proibitivas, que vedam a instituição de um tributo. São o oposto das normas permissivas de atribuição de competência, cuja função é a de justamente facultar o exercício da tributação.

Da conjunção das normas proibitivas (imunidades) com as normas permissivas é que se extrai aquilo que se chama de competência tributária, que nada mais é do que o poder de criar tributos.

Com o objetivo de facilitar a compreensão da relação entre imunidade tributária e competência tributária, pensemos no seguinte exemplo.

O art. 155, inciso III, da Constituição Federal, faculta que os Estados Membros instituam imposto sobre propriedade de veículos automotores, navios e aeronaves (IPVA). Trata-se, assim, de uma regra permissiva.

Por outro lado, a alínea “a”, do inciso VI, do art. 150, da Constituição Federal, veda que as entidades federativas instituam impostos (e também a CBS após a EC 132/2023) sobre o patrimônio, renda ou serviços uns dos outros, e as alíneas b e c impedem a tributação sobre o patrimônio das entidades religiosas, partidos políticos, entidades sindicais dos trabalhadores, instituições de educação e instituições de assistência social, sem fins lucrativos, que atendam aos requisitos previstos em lei.

Em todos esses casos, está-se diante de regras proibitivas configuradoras de imunidades tributárias.

 

Imunidade dos Partidos Políticos

Os partidos políticos são pessoas jurídicas de direito privado, conforme o art. 44, inciso V, do Código Civil. Sua constituição e funcionamento são regulamentados pela Lei nº 9.096/95.

A imunidade tributária dos partidos políticos está prevista no art. 150, VI, “c” da Constituição Federal:

Art. 150: Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

(…)

VI – instituir impostos sobre:

c) patrimônio, renda ou serviços dos partidos políticos, inclusive suas fundações, das entidades sindicais dos trabalhadores, das instituições de educação e de assistência social, sem fins lucrativos, atendidos os requisitos da lei;

 

A razão que justifica esta imunidade é o papel central que os partidos ocupam em uma democracia representativa.

A imunidade visa garantir a autonomia dos partidos frente ao Estado, permitindo a liberdade de atuação partidária. Se fosse possível tributar os partidos, seria possível interferir ou até inviabilizar certos partidos, beneficiando outros, o que comprometeria o Estado Democrático de Direito.

 

Abrangência da imunidade “impostos sobre o patrimônio, renda e serviços”: interpretação ampliativa

Inicialmente, a literalidade do texto constitucional sugeriria que a imunidade abrangeria apenas impostos sobre patrimônio, renda e serviços.

No entanto, o entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF) tem sido mais amplo, estendendo a imunidade a todos os impostos, desde que observados os demais requisitos constitucionais.

Assim, a imunidade dos partidos políticos pode abranger:

• IPTU, ITR, IPVA, ITBI, ITCMD (patrimônio)

• IRPJ, IRPF (renda)

• ISS (serviços)

• ICMS, IPI, II, IE, IOF (outros impostos)

 

Dessa maneira, conforme o §4º do art. 150 da Constituição, a imunidade compreende somente o patrimônio, a renda e os serviços relacionados com as finalidades essenciais dos partidos políticos.

Esta vinculação pode ser:

• Direta: quando o bem ou a atividade estão ligados de maneira imediata com os objetivos institucionais do partido.

• Indireta: quando a ligação se dá de maneira mediata, como no caso de imóveis alugados a terceiros, cujos recursos são utilizados para promover as finalidades do partido.

 

Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS)

Com a Reforma Tributária (EC 132/2023), foi previsto que tanto o IBS (Imposto sobre Bens e Serviços) como a CBS (Contribuição sobre Bens e Serviços) são objeto de imunidade (art. 149-B, parágrafo único, da CF/88).

 

Análise do art. 4º da EC 133/2024

O art. 4º da EC 133/2024 prevê o seguinte:

Art. 4º É assegurada a imunidade tributária aos partidos políticos e a seus institutos ou fundações, conforme estabelecido na alínea "c" do inciso VI do caput do art. 150 da Constituição Federal.

§ 1º A imunidade tributária estende-se a todas as sanções de natureza tributária, exceto as previdenciárias, abrangidos a devolução e o recolhimento de valores, inclusive os determinados nos processos de prestação de contas eleitorais e anuais, bem como os juros incidentes, as multas ou as condenações aplicadas por órgãos da administração pública direta e indireta em processos administrativos ou judiciais em trâmite, em execução ou transitados em julgado, e resulta no cancelamento das sanções, na extinção dos processos e no levantamento de inscrições em cadastros de dívida ou inadimplência.

§ 2º O disposto no § 1º deste artigo aplica-se aos processos administrativos ou judiciais nos quais a decisão administrativa, a ação de execução, a inscrição em cadastros de dívida ativa ou a inadimplência tenham ocorrido em prazo superior a 5 (cinco) anos.

 

O art. 4º em questão vai além da imunidade tributária tradicional dos partidos políticos. Ele efetivamente estabelece uma forma de anistia e/ou remissão, dependendo do momento em que a norma é aplicada em relação ao lançamento do crédito tributário.

Embora o texto cite “a imunidade tributária estende-se a todas as sanções de natureza tributária, exceto as previdenciárias”, entendemos que há uma atecnia do legislador, isto porque, na verdade, tecnicamente não seria uma ampliação da imunidade tributária, porque o “tributo” não se confunde com a multa, conforme se pode atestar pelo art. 3 do CTN:

Art. 3º Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada.

 

Desse modo, a “ampliação da imunidade tributária” consiste, na verdade, em um perdão das multas sofridas pelos partidos políticos que pode ser considerado uma “anistia” ou uma “remissão”, pois imunidade refere-se a tributo e tributo, conforme já explicado, não é sanção (não é multa).

 

Distinção entre Anistia e Remissão

 

Anistia

A anistia é uma forma de exclusão do crédito tributário prevista no art. 175, II, do CTN. Ela consiste no perdão legal de infrações à legislação tributária e das respectivas sanções.

Suas principais características são:

- aplica-se às infrações cometidas anteriormente à vigência da lei que a concede.

- afeta apenas as penalidades (multas), não alcançando o tributo em si.

- é concedida por lei específica.

 

A anistia é aplicada antes do lançamento do crédito tributário. Se a lei que perdoa a multa for editada antes do lançamento, trata-se de anistia.

 

Remissão

A remissão, por sua vez, é uma forma de extinção do crédito tributário prevista no art. 156, IV, do CTN. Ela consiste no perdão da dívida tributária, incluindo o principal (tributo) e os acessórios (juros e multas).

Suas principais características são:

- pode abranger tanto o tributo quanto as penalidades.

- é concedida por lei específica.

- pode ser total ou parcial.

 

A remissão é aplicada após o lançamento do crédito tributário. Se a lei que perdoa a dívida for editada após o lançamento, trata-se de remissão.

Em resumo:

Anistia

Remissão

Definição

Exclusão do crédito tributário

Extinção do crédito tributário

Previsão Legal

Art. 175, II do CTN

Art. 156, IV do CTN

Momento de Aplicação

Antes do lançamento do crédito tributário

Após o lançamento do crédito tributário

Abrangência

Apenas penalidades (multas)

Pode abranger tributo e penalidades

Natureza

Perdão da infração

Perdão da dívida

Forma de Concessão

Lei específica

Lei específica

Aplicação

Infrações cometidas antes da vigência da lei que a concede

Situações excepcionais ou para corrigir injustiças fiscais

Efeito no Crédito

Exclui o crédito tributário

Extingue o crédito tributário

 

Logo:

- se a lei que perdoa a multa foi editada antes do lançamento do crédito, trata-se de anistia.

- se foi editada após, trata-se de remissão.

 

No caso da EC 133/2024, caso já tenha existido o “lançamento” pela autoridade fiscal será uma hipótese de remissão. Por outro lado, caso o “lançamento” não tenha sido realizado, será uma anistia.

Vale frisar que enquanto a anistia é explicitamente limitada a infrações passadas por disposição legal, a remissão, embora não tenha essa limitação expressa, na prática, é geralmente aplicada a débitos já existentes no momento da promulgação da lei que a concede.

Isto porque, não é razoável que o legislador permita que novas infrações a legislação eleitoral sejam, de pronto, perdoadas para o futuro sob pena de estimular o descumprimento das normais.

 

Amplitude da anistia/remissão com base no §1º do art. 4º

O §1º do art. 4º estabelece:

1. Extensão da “imunidade” a todas as sanções de natureza tributária (exceto previdenciárias);

2. Abrangência da devolução e recolhimento de valores;

3. Cancelamento de sanções;

4. Extinção de processos;

5. Levantamento de inscrições em cadastros de dívida ou inadimplência.

 

Estas medidas configuram uma combinação de anistia e remissão, dependendo do momento de sua aplicação em relação ao lançamento do crédito tributário.

Isso porque há uma ampliação da fase em que esteja o crédito, lançado ou não, incidindo sobre: “processos administrativos ou judiciais em trâmite, em execução ou transitados em julgado, e resulta no cancelamento das sanções, na extinção dos processos e no levantamento de inscrições em cadastros de dívida ou inadimplência”.

Além disso, há uma extensão inclusive para punições impostas no prazo de até 5 anos: “aplica-se aos processos administrativos ou judiciais nos quais a decisão administrativa, a ação de execução, a inscrição em cadastros de dívida ativa ou a inadimplência tenham ocorrido em prazo superior a 5 (cinco) anos”.

 

Impacto financeiro e necessidade de observância dos requisitos do art. 113 da ADCT e da LRF

A implementação desta medida pode resultar em perda significativa de receita para a União.

Segundo dados há quem diga que a dívida com a União passe dos R$ 15,7 milhões (https://www.metropoles.com/brasil/divida-de-partidos-com-a-uniao-passa-dos-r-157-milhoes), entretanto, o mais relevante para fins de direito financeiro é que haja exatamente a estimativa de impacto orçamentário e financeiro.

Isto porque, o art. 113 do ADCT prevê que “a proposição legislativa que crie ou altere despesa obrigatória ou renúncia de receita deverá ser acompanhada da estimativa do seu impacto orçamentário e financeiro”.

Logo, para que fosse concedida a anistia/remissão da dívida dos partidos políticos seria indispensável a realização de estudo de impacto orçamentário e financeiro, por meio do qual se demostrasse que a perda de recursos foi considerada pela lei orçamentária ou se adotassem medidas de compensação com o aumento da receita por outra fonte.

Nessa linha, há entendimento do STF:

A ausência de prévia estimativa de impacto financeiro e orçamentário na proposta legislativa que implique renúncia de receita tributária acarreta inconstitucionalidade formal, nos termos do art 113 do ADCT, que é aplicável a todos os entes federativos.

STF. Plenário. RE 1.343.429/SP, Rel. Min. Dias Toffoli, julgado em 9/04/2024 (Info 1131).

 

 

3. PROGRAMA DE RECUPERAÇÃO FISCAL (REFIS)

 

Os partidos políticos, no exercício de suas atividades partidárias, são obrigados a contrair muitas despesas, como aquelas destinadas à manutenção de suas sedes, contratação de funcionários, entre outras.

Como os recursos recebidos são limitados, alguns diretórios acabam contraindo dívidas perante o Fisco e, com isso, têm seu funcionamento prejudicado.

Por essa razão, visando viabilizar o pagamento desses débitos, a EC 133/2024 instituiu um Programa de Recuperação Fiscal (Refis) específico para os partidos políticos e seus institutos e fundações.

Por meio desse programa, os órgãos partidários poderão requerer o parcelamento de seus débitos fiscais com isenção de multas e juros, podendo o valor principal, corrigido monetariamente, ser parcelado em até 60 (sessenta) meses para obrigações previdenciárias ou em até 180 (cento e oitenta meses) para as demais obrigações.

Vejamos:

 

Art. 5º É instituído o Programa de Recuperação Fiscal (Refis) específico para partidos políticos e seus institutos ou fundações, para que regularizem seus débitos com isenção dos juros e das multas acumulados, aplicada apenas a correção monetária sobre os montantes originais, que poderá ocorrer a qualquer tempo, com o pagamento das obrigações apuradas em até 60 (sessenta) meses para as obrigações previdenciárias e em até 180 (cento e oitenta) meses para as demais obrigações, a critério do partido.

 

Originalmente, a Lei nº 9.964/2000 previu a possibilidade de que o devedor de tributos federais pudesse parcelar seus débitos. Esse parcelamento foi chamado de REFIS (“Programa de Recuperação Fiscal”), posteriormente outras hipóteses de parcelamento foram instituídas pelo Governo Federal, entretanto, todas as medidas de parcelamento ficaram sendo chamadas popularmente de “REFIS”

 

Efeitos do Parcelamento no Direito Tributário

O parcelamento tributário, seja através do REFIS ou de outros programas, produz diversos efeitos jurídicos e práticos:

1. Suspensão da exigibilidade do crédito tributário: conforme o art. 151, VI do CTN, o parcelamento suspende a exigibilidade do crédito tributário.

2. Interrupção da prescrição: o parcelamento interrompe a contagem do prazo prescricional, que recomeça a contar da data em que há a rescisão do parcelamento (art. 174, parágrafo único, inciso IV, do CTN, combinado com o art. 151, VI, do CTN).

3. Regularização fiscal: permite a obtenção de certidão positiva com efeitos de negativa, possibilitando a participação em licitações e o recebimento de créditos do poder público (art. 206 do CTN).

4. Suspensão de processos de execução fiscal: os processos de execução fiscal em curso são suspensos enquanto o parcelamento estiver sendo cumprido, bem como a prática de atos constritivos.

5. Manutenção de garantias: as garantias prestadas em juízo são mantidas até a quitação do parcelamento (REsp 1.221.170/RS).

 

Voltando para a análise detalhada do art. 5º

O art. 5º institui um parcelamento específico para partidos políticos e seus institutos ou fundações com as seguintes características:

• regularização de débitos com isenção de juros e multas acumulados;

• aplicação apenas da correção monetária sobre os montantes originais;

• possibilidade de adesão a qualquer tempo;

• parcelamento em até 60 meses para obrigações previdenciárias;

• parcelamento em até 180 meses para as demais obrigações.

 

Só para ter uma ideia, o parcelamento ordinário (sempre disponível) com a União é de 60 meses, com base no art. 11 da Lei nº 10.522/2002.

Além disso, fala-se que há um benefício fiscal adicional no REFIS dos partidos políticos porque, em regra, os parcelamentos não isentam juros e multas. Nesse sentido:

Art. 155-A (...)

§ 1º Salvo disposição de lei em contrário, o parcelamento do crédito tributário não exclui a incidência de juros e multas.

 

O REFIS dos partidos políticos, contudo, previu expressamente a isenção de juros e multa no art. 5º da EC 133/2024:  “Art. 5º É instituído o Programa de Recuperação Fiscal (Refis) específico para partidos políticos e seus institutos ou fundações, para que regularizem seus débitos com isenção dos juros e das multas acumulados (...)”.

 

Uma discussão interessante é a análise se é cabível a aplicação do art.113 da ADCT (fruto da EC 95/2016) às emendas constitucionais.

 

Nesse sentido, o STF tem decidido reiteradamente:

A ausência de prévia estimativa de impacto financeiro e orçamentário na proposta legislativa que implique renúncia de receita tributária acarreta inconstitucionalidade formal, nos termos do art. 113 do ADCT, que é aplicável a todos os entes federativos.

STF. Plenário. RE 1.343.429/SP, Rel. Min. Dias Toffoli, julgado em 9/04/2024 (Info 1131).

STF. RE 1478576, Rel. Min. Alexandre de Moraes, decisão monocrática, julgado em 06/03/2024.

 

Isto é, havendo normas legislativas (leis ordinárias e leis complementares) que tragam alguma espécie de benefício fiscal, torna-se necessário que seja feito um estudo formal para que haja previsibilidade de quanto impactará na receita dos entes.

Inclusive, a regra constitucional observa o regime preexistente definido no art. 14 da Lei Complementar nº 101/2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal), no tocante à concessão e ao aumento de benefícios fiscais que ocasionem a renúncia de receita:

Art. 14. A concessão ou ampliação de incentivo ou benefício de natureza tributária da qual decorra renúncia de receita deverá estar acompanhada de estimativa do impacto orçamentário-financeiro no exercício em que deva iniciar sua vigência e nos dois seguintes, atender ao disposto na lei de diretrizes orçamentárias e a pelo menos uma das seguintes condições:

I - demonstração pelo proponente de que a renúncia foi considerada na estimativa de receita da lei orçamentária, na forma do art. 12, e de que não afetará as metas de resultados fiscais previstas no anexo próprio da lei de diretrizes orçamentárias;

II - estar acompanhada de medidas de compensação, no período mencionado no caput, por meio do aumento de receita, proveniente da elevação de alíquotas, ampliação da base de cálculo, majoração ou criação de tributo ou contribuição.

 

Logo, aplica-se o art. 113 do ADCT às leis ordinárias e leis complementares que tratem de renúncia de receita.

Entretanto, não há jurisprudência firmada no âmbito do STF/STJ se é exigível o art. 113 do ADCT às emendas constitucionais.

No pensamento de Uadi Lammego Bulos (Curso de Direito Constitucional, 14ª edição, 2021) “emendas constitucionais não podem simplificar ou dificultar o processo legislativo especial de reforma, previsto na Carta de 1988”, assim, não seria possível que o art. 113 do ADCT que foi fruto de uma emenda constitucional (EC 95/2016) traga restrições para a criação de novas emendas constitucionais como a presente EC 133/2024.

 

 

4. NOVAS REGRAS PARA UTILIZAÇÃO DO FUNDO PARTIDÁRIO

 

Em regra, a fiscalização da Justiça Eleitoral sobre as receitas e despesas realizadas pelos partidos políticos é feita por meio das prestações de contas.

Os partidos políticos devem apresentar à Justiça Eleitoral dois tipos de prestação de contas: a prestação de contas partidária (anual) e a prestação de contas eleitorais.

As principais diferenças entre elas são as seguintes:

PRESTAÇÃO DE CONTAS PARTIDÁRIAS

PRESTAÇÃO DE CONTAS ELEITORAIS

Prestação de contas que o partido deve apresentar anualmente até o dia 30 de junho, contendo todas as receitas e despesas do exercício anterior.

Prestação de contas que deve ser entregue ao final do pleito pelos partidos que participaram do pleito, ainda que não tenham lançado candidatos.

Previsão legal: art. 32 da Lei nº 9.096/95.

Previsão legal: art. 34, V, da Lei nº 9.096/95.

Analisa toda a movimentação financeira do partido durante o exercício.

Restringe-se à análise das receitas e despesas durante a campanha eleitoral.

 

A competência para julgamento dessas prestações de contas é a seguinte:

• Tribunal Superior Eleitoral, para as contas dos Diretórios Nacionais;

• Tribunais Regionais Eleitorais, para as contas dos Diretórios Estaduais, e;

• Juízes eleitorais, para as contas dos Diretórios Municipais.

 

Ao final da análise dessas prestações de contas, a Justiça Eleitoral profere decisão que pode:

Aprovar a prestação de contas;

Aprovar com ressalvas a prestação de contas, quando identificadas falhas pontuais e irrelevantes, que não comprometam o balanço;

Desaprovar a prestação de contas;

• Julgar as contas como não prestadas, quando o partido deixa de apresentar a prestação de contas ou de apresentar documentação obrigatória. Nessa hipótese, o partido fica impedido de receber recursos do Fundo Partidário até a regularização da inadimplência.

 

Em consequência, caso constatadas irregularidades na prestação de contas, podem ser aplicadas sanções aos partidos políticos, como multa (art. 37, da Lei 9.096/95), determinação de recolhimento de recursos ao Tesouro Nacional (art. 79, da Res. TSE 23.607/2019), entre outras.

Com o trânsito em julgado, essas dívidas, caso não sejam pagas, passam a ser executadas pela União Federal.

 

Agora que entendemos como funciona a prestação de contas, vamos a um caso hipotético:

Um determinado Diretório Estadual do PARTIDO X apresentou sua prestação de contas partidárias (anuais) ao Tribunal Regional Eleitoral, com movimentação anual de R$50.000,00. Após análise contábil, os servidores da justiça eleitoral identificaram as seguintes irregularidades:

1) Partido recebeu e utilizou uma doação de R$20.000,00 por meio de um depósito em espécie, sem identificação do doador;

2) Partido recebeu e utilizou uma doação de R$10.000,00 de um sindicato;

3) Partido não conseguiu comprovar uma despesa de R$5.000,00, que foi paga com recursos do Fundo Partidário;

 

Nesse exemplo, o partido incorreu em alguma irregularidade?

SIM.

No primeiro caso, não é possível identificar o doador dos R$20.000,00. Por esse motivo, esse valor é considerado como sendo recurso de origem não identificada (art. 8º, §10, da Res. TSE 23.607/2019).

No segundo, a legislação eleitoral proíbe o recebimento de doações oriundas de entidades de classe ou sindicais (art. 31, IV, da Lei 9.096/95), motivo pelo qual essa doação é considerada como sendo de fonte vedada. 

O terceiro e último caso também caracteriza irregularidade, pois a ausência de comprovação da despesa impede a justiça eleitoral de aferir se o recurso foi efetivamente aplicado nas finalidades para o qual o Fundo Partidário foi criado (art. 18, da Res. TSE 23.604/2019).

Em consequência, diante dessas irregularidades, as contas desse partido possivelmente serão julgadas desaprovadas, com determinação de devolução do montante correspondente ao Tesouro Nacional, acrescido de multa de até 20% (art. 37, da Lei 9.096/95). 

Assim, no nosso exemplo, o partido terá que recolher ao Tesouro Nacional o valor correspondente aos recursos de origem não identificada (R$20.000,00) e de fonte vedada (R$10.000,00), além de devolver ao Tesouro Nacional a quantia de R$5.000,00 relativo à despesa que ele não conseguiu comprovar.

 

Agora, indaga-se: esse partido poderá utilizar recursos do Fundo Partidário para cumprir essa obrigação determinada pela Justiça Eleitoral?

Vamos entender com calma.

Até a edição da EC nº 133/2024, isso não poderia ser feito, pois a aplicação dos recursos do Fundo Partidário era restrita às hipóteses previstas no art. 44, da Lei nº 9.096/95, que não contempla essa possibilidade. Vejamos:

Art. 44. Os recursos oriundos do Fundo Partidário serão aplicados:

I - na manutenção das sedes e serviços do partido, permitido o pagamento de pessoal, a qualquer título, observado, do total recebido, os seguintes limites: 

a) 50% (cinquenta por cento) para o órgão nacional;

b) 60% (sessenta por cento) para cada órgão estadual e municipal;

II - na propaganda doutrinária e política;

 III - no alistamento e campanhas eleitorais;

IV - na criação e manutenção de instituto ou fundação de pesquisa e de doutrinação e educação política, sendo esta aplicação de, no mínimo, vinte por cento do total recebido.

V - na criação e manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres, criados e executados pela Secretaria da Mulher ou, a critério da agremiação, por instituto com personalidade jurídica própria presidido pela Secretária da Mulher, em nível nacional, conforme percentual que será fixado pelo órgão nacional de direção partidária, observado o mínimo de 5% (cinco por cento) do total;

VI - no pagamento de mensalidades, anuidades e congêneres devidos a organismos partidários internacionais que se destinem ao apoio à pesquisa, ao estudo e à doutrinação política, aos quais seja o partido político regularmente filiado;

VII - no pagamento de despesas com alimentação, incluindo restaurantes e lanchonetes.

VIII - na contratação de serviços de consultoria contábil e advocatícia e de serviços para atuação jurisdicional em ações de controle de constitucionalidade e em demais processos judiciais e administrativos de interesse partidário, bem como nos litígios que envolvam candidatos do partido, eleitos ou não, relacionados exclusivamente ao processo eleitoral;

X - na compra ou locação de bens móveis e imóveis, bem como na edificação ou construção de sedes e afins, e na realização de reformas e outras adaptações nesses bens;

XI - no custeio de impulsionamento, para conteúdos contratados diretamente com provedor de aplicação de internet com sede e foro no País, incluída a priorização paga de conteúdos resultantes de aplicações de busca na internet, inclusive plataforma de compartilhamento de vídeos e redes sociais, mediante o pagamento por meio de boleto bancário, de depósito identificado ou de transferência eletrônica diretamente para conta do provedor, proibido, nos anos de eleição, no período desde o início do prazo das convenções partidárias até a data do pleito.

 

E o que fez a Emenda Constitucional nº 133/2024?

A emenda ampliou as hipóteses de aplicação de recursos públicos do Fundo Partidário. Veja o art. 6º da Emenda:

Art. 6º É garantido aos partidos políticos e seus institutos ou fundações o uso de recursos do fundo partidário para o parcelamento de sanções e penalidades de multas eleitorais, de outras sanções e de débitos de natureza não eleitoral e para devolução de recursos ao erário e devolução de recursos públicos ou privados a eles imputados pela Justiça Eleitoral, inclusive os de origem não identificada, excetuados os recursos de fontes vedadas.

 

A partir de agora, além das hipóteses expressamente previstas na Lei nº 9.096/95, os recursos do Fundo Partidário poderão ser utilizados para pagamento de sanções e multas eleitorais e não eleitorais, devolução de recursos imputados pela Justiça Eleitoral, inclusive aqueles de origem não identificada.

A única exceção trazida pela emenda constitucional é o recolhimento de recursos de fonte vedada, que não poderá ser feito com recursos públicos do Fundo Partidário.

Assim, voltando ao nosso exemplo, o partido, a partir da promulgação da emenda, poderá utilizar os recursos do Fundo Partidário para pagamento das sanções impostas, com exceção apenas da determinação de recolhimento do valor correspondente à doação oriunda de fonte vedada, que não poderá ser efetivado com recursos públicos.

 

Os órgãos partidários podem quitar débitos uns dos outros?

SIM. A Emenda Constitucional permitiu que órgãos superiores poderão utilizar recursos do Fundo Partidário para quitação de débitos de órgãos de esferas inferiores.

Assim, voltando ao nosso exemplo, o órgão nacional do PARTIDO X, caso queira, poderá utilizar seus recursos do Fundo Partidário para pagar as sanções impostas ao diretório estadual, excetuando-se aquela relativa às fontes vedadas que, como visto, não pode ser paga com recursos públicos.

 

Agora vamos supor que esse Diretório Estadual esteja impedido de receber recursos do Fundo Partidário, por, por exemplo, ter deixado de prestar contas de campanha (eleitorais). É possível que, nesse caso, o órgão nacional utilize recursos do Fundo Partidário para pagar os débitos do Diretório Estadual suspenso?

SIM.

A EC autoriza a utilização dos recursos do fundo partidário para quitação de débitos de órgãos partidários de esferas inferiores mesmo na hipótese em que o órgão originalmente responsável estiver impedido de receber esse tipo de recurso.

Vejamos:

Art. 6º (...)

Parágrafo único. Os órgãos partidários de esfera hierarquicamente superior poderão utilizar os recursos do fundo partidário para a quitação de débitos, ainda que parcial, das obrigações referidas no caput deste artigo dos órgãos partidários de esferas inferiores, inclusive se o órgão originalmente responsável estiver impedido de receber esse tipo de recurso.

 

Essas novas regras são aplicáveis para processos já julgados?

SIM.

As disposições da EC 133/2024 são aplicáveis a todos os órgãos partidários e abrange os processos de prestação de contas partidárias e eleitorais, inclusive os que já transitaram em julgado. Veja o art. 7º da Emenda:

Art. 7º O disposto nesta Emenda Constitucional aplica-se aos órgãos partidários nacionais, estaduais, municipais e zonais e abrange os processos de prestação de contas de exercícios financeiros e eleitorais, independentemente de terem sido julgados ou de estarem em execução, mesmo que transitados em julgado.

 

 

5. RECIBOS ELEITORAIS

 

A Lei 9.504/97, em sua redação original, previa a obrigatoriedade de emissão de recibo eleitoral para todas as doações realizadas para candidaturas.

Essa formalidade visava garantir a legalidade dos recursos arrecadados em campanha eleitoral, além de contribuir para a efetiva fiscalização realizada pela justiça eleitoral.

Com as reformas eleitorais que se seguiram ao longo do tempo, essa exigência acabou sendo mitigada, principalmente em razão da evolução dos meios de pagamento e dos próprios mecanismos de controle e fiscalização da Justiça Eleitoral.

Até a edição da EC 133/2024, restavam poucas hipóteses nas quais ainda era exigido o recibo eleitoral, como as doações recebidas por meio da internet, entre outras.

 

E o que fez a Emenda Constitucional nº 133/2024?

A Emenda Constitucional reduziu ainda mais as hipóteses de emissão de recibos eleitorais, dispensando-os em mais duas hipóteses:

I) doação do Fundo Especial de Financiamento de Campanha e do fundo partidário por meio de transferência bancária feita pelo partido aos candidatos e às candidatas, e;

II) doações recebidas por meio de Pix por partidos, candidatos e candidatas.

Veja o art. 8º da Emenda:

Art. 8º É dispensada a emissão do recibo eleitoral nas seguintes hipóteses:

I - doação do Fundo Especial de Financiamento de Campanha e do fundo partidário por meio de transferência bancária feita pelo partido aos candidatos e às candidatas;

II - doações recebidas por meio de Pix por partidos, candidatos e candidatas.

 

A justificativa implícita para esta mudança parece ser a de que as transferências bancárias e o Pix já deixam registros digitais suficientes, tornando o recibo eleitoral redundante nestas situações.

 

Ainda existe alguma hipótese em que permanece a obrigatoriedade de emissão de recibo eleitoral?

SIM. Como regra, ainda é obrigatória a emissão de recibo eleitoral nos casos de doações estimáveis em dinheiro, que são aquelas em que a liberalidade consiste em bens ou de serviços, como, por exemplo, a cessão de um automóvel do doador para uso temporário na campanha de determinado candidato (art. 7º, I, da Res. TSE 23.607/2019).

Além disso, é importante observar que o inciso II, do art. 8º, da EC 133/2024, faz referência apenas às doações realizadas por PIX, o que permite concluir que as doações realizadas pelas demais modalidades, como cartões de crédito (art. 7º, §5º, da Res. TSE 23.607/2019), continua sendo exigida a emissão de recibo eleitoral.

 

 

6. AS NOVAS REGRAS INTRODUZIDAS PELA EMENDA 133/2024 SÃO APLICÁVEIS PARA ELEIÇÕES DESSE ANO?

 

SIM. Há previsão expressa no sentido de que duas alterações são aplicáveis já para as eleições de 2024:

1) Percentual mínimo de recursos do FEFC e do Fundo Partidário para campanhas de pessoas negras ou pardas (§9º, do art. 14 da Constituição Federal);

2) Dispensa de recibo eleitoral nas hipóteses previstas no art. 8º da Emenda Constitucional.

 

Confira:

Art. 9º Esta Emenda Constitucional entra em vigor na data de sua publicação, aplicando-se a partir das eleições de 2024:

I - o § 9º do art. 17 da Constituição Federal; e

II - o art. 8º desta Emenda Constitucional

 

Essa Emenda Constitucional foi promulgada em 22 de agosto de 2024, ou seja, há menos de um ano das eleições. Não haveria uma violação ao princípio da anualidade eleitoral?

NÃO.

Vamos entender com calma.

 

O que é princípio da anualidade eleitoral?

O princípio da anualidade eleitoral é uma garantia prevista no art. 16 da Constituição Federal, que prevê que a lei que alterar o processo eleitoral somente poderá ser aplicada para a eleição que ocorra após um ano da data da sua vigência.

Essa regra visa resguardar a estabilidade do processo eleitoral, evitando que mudanças repentinas, baseadas em casuísmos ou em interesses meramente privados, venham a alterar as regras eleitorais existentes. É uma garantia voltada tanto para os candidatos como também para o eleitorado, pois garante estabilidade, previsibilidade, confiança e segurança jurídica, mantendo hígido o processo eleitoral.

Vejamos:

Art. 16. A lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência.

 

O que se entende por “A lei que alterar”?

Embora a Constituição Federal mencione apenas o termo “lei que alterar o processo eleitoral”, trata-se de uma garantia ampla, que abarca leis ordinárias, leis complementares e até mesmo emendas constitucionais, como já decidiu o STF em várias oportunidades, a exemplo da ADI 3685/DF:

(...) 4. Enquanto o art. 150, III, b, da CF encerra garantia individual do contribuinte (ADI 939, rel. Min. Sydney Sanches, DJ 18.03.94), o art. 16 representa garantia individual do cidadão-eleitor, detentor originário do poder exercido pelos representantes eleitos e "a quem assiste o direito de receber, do Estado, o necessário grau de segurança e de certeza jurídicas contra alterações abruptas das regras inerentes à disputa eleitoral" (ADI 3.345, rel. Min. Celso de Mello).

5. Além de o referido princípio conter, em si mesmo, elementos que o caracterizam como uma garantia fundamental oponível até mesmo à atividade do legislador constituinte derivado, nos termos dos arts. 5º, § 2º, e 60, § 4º, IV, a burla ao que contido no art. 16 ainda afronta os direitos individuais da segurança jurídica (CF, art. 5º, caput) e do devido processo legal (CF, art. 5º, LIV). (...)

STF. Plenário. ADI 3685, Rel. Min. Ellen Gracie, julgado em 22/03/2006.

 

É importante ressaltar, contudo, que essa regra não é aplicável às resoluções expedidas pelo Tribunal Superior Eleitoral, uma vez que prevalece entendimento de que esses atos possuem caráter meramente interpretativo da legislação em vigor, não importando, portanto, em alteração do processo eleitoral. É o que dispõe o art. 105 da Lei das Eleições:

Art. 105. Até o dia 5 de março do ano da eleição, o Tribunal Superior Eleitoral, atendendo ao caráter regulamentar e sem restringir direitos ou estabelecer sanções distintas das previstas nesta Lei, poderá expedir todas as instruções necessárias para sua fiel execução, ouvidos, previamente, em audiência pública, os delegados ou representantes dos partidos políticos.

(...)

§3º Serão aplicáveis ao pleito eleitoral imediatamente seguinte apenas as resoluções publicadas até a data referida no caput. 

 

O que se entende pela expressão “processo eleitoral”

A legislação vigente não prevê a definição e o alcance da expressão “processo eleitoral”.

Esse tema é objeto de intensos debates na doutrina e na jurisprudência. Para alguns, processo eleitoral compreende apenas o processamento da eleição propriamente dita, ou seja, o modo como se desenvolve o pleito. Para outros, essa expressão tem aplicação mais ampla, abrangendo toda e qualquer norma que, de alguma forma, interfira no processo eleitoral.

Essa matéria já foi enfrentada pelo Tribunal Superior Eleitoral e pelo Supremo Tribunal Federal em algumas oportunidades.

Exemplo paradigmático é a entrada em vigor da Lei da Ficha Limpa (LC 135/2010, que alterou a LC 64/90), ocasião em que, após intensos debates, o Supremo Tribunal Federal, por apertada maioria, reformou decisão do Tribunal Superior Eleitoral e decidiu que as novas regras não poderiam ser aplicadas para as eleições daquele ano (RE 633.703-MG).  Naquele julgado, o STF entendeu que a lei que altera as regras de elegibilidade do cidadão, criando novas causas de inelegibilidade, que restringem o acesso aos cargos públicos, insere-se no campo de incidência do princípio da anualidade.

O STF e o TSE voltaram a enfrentar o tema em outros julgados. Embora não haja consenso, vem prevalecendo a orientação de que o princípio da anualidade tem incidência restrita às regras que regulamentam o processo eleitoral propriamente dito.

Vale ressaltar, apenas a título de curiosidade, que o projeto do novo Código Eleitoral, em tramitação no Congresso Nacional, prevê a regulamentação do art. 16, da Constituição Federal, delimitando seu alcance.

 

Compreendido o princípio da anuidade eleitoral, vamos analisar o art. 9º, da EC 133/2024

Como vimos, o princípio da anualidade incide sobre emendas constitucionais e veda a aplicação de regras que alterem o processo eleitoral em eleições que ocorram até um ano de sua vigência.

Desse modo, para sabermos se as novas disposições da EC 133/2024 são aplicáveis às eleições de 2024, é necessário verificar se elas importam, ou não, em alteração do processo eleitoral.

 

No nosso caso, a EC 133/2024 previu que duas alterações serão aplicadas às Eleições de 2024:

Dispensa de recibo eleitoral nas hipóteses previstas no art. 8º, da Emenda Constitucional.

Percentual mínimo de recursos do FEFC e do Fundo Partidário para campanhas de pessoas negras ou pardas (§9º, do art. 14 da Constituição Federal);

 

Em relação à dispensa de emissão de recibo eleitoral, nota-se que se trata de uma regra puramente procedimental, sem qualquer impacto no processo eleitoral.

Logo, não se verifica alteração do processo eleitoral e, portanto, não há que se falar em violação ao princípio da anualidade.

Todavia, em relação à previsão de percentual mínimo de recursos públicos para campanhas de pessoas negras ou pardas, o tema é um pouco mais polêmico.

Por envolver alteração na forma de distribuição dos recursos públicos para as campanhas eleitorais, poder-se-ia cogitar, ainda que reflexamente, um impacto no processo eleitoral, de modo a atrair a incidência do princípio da anualidade.

Contudo, em sentido contrário, de que não há violação ao princípio da anualidade, podemos citar a ADPF 738, que, embora não tenha tido o mérito analisado por questões processuais, trouxe importante contribuição para o tema.

Naquela ocasião, o TSE tinha reconhecido a necessidade de se observar a proporcionalidade na distribuição de recursos públicos para candidaturas negras, porém acabou postergando sua aplicação para as eleições de 2022, em razão da incidência do princípio da anualidade. Na ADPF 738, determinado partido político requereu ao STF que a decisão do TSE fosse aplicada já para o pleito de 2020.

O Plenário do Supremo Tribunal Federal referendou liminar concedida pelo relator, afirmando que o tema não se inseria no espectro de incidência do princípio da anualidade. Vejamos:

(...) III – O entendimento do Supremo Tribunal Federal é no sentido de que só ocorre ofensa ao princípio da anterioridade nas hipóteses de:

(i) rompimento da igualdade de participação dos partidos políticos ou candidatos no processo eleitoral;

(ii) deformação que afete a normalidade das eleições;

(iii) introdução de elemento perturbador do pleito; ou

(iv) mudança motivada por propósito casuístico (ADI 3.741/DF, de minha relatoria). Precedentes.

IV - No caso dos autos, é possível constatar que o TSE não promoveu qualquer inovação nas normas relativas ao processo eleitoral, concebido em sua acepção estrita, porquanto não modificou a disciplina das convenções partidárias, nem os coeficientes eleitorais e nem tampouco a extensão do sufrágio universal. Apenas introduziu um aperfeiçoamento nas regras relativas à propaganda, ao financiamento das campanhas e à prestação de contas, todas com caráter eminentemente procedimental, com o elevado propósito de ampliar a participação de cidadãos negros no embate democrático pela conquista de cargos políticos.

V – Medida cautelar referendada.

STF. Plenário. ADPF 738 MC, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgado em 05/10/2020.

 

Como se pode observar, a matéria debatida na mencionada ADPF guarda muita semelhança com a regra introduzida pela EC 133/2024, o que permite afirmar que não haveria violação ao princípio da anualidade.

 


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