sexta-feira, 20 de setembro de 2024
Cabe acordo de não persecução penal nos crimes raciais?
O caso concreto, com adaptações,
foi o seguinte:
Alessandro e Jadson, namorados, estavam em um clube de
piscinas aberto ao público e se abraçaram, assim como outros casais héteros que
estavam no local.
Regina, ao ver a troca de carinho entre eles, disse: “depois
fala que é preconceito, poderia respeitar, porque aqui tem crianças!”.
Alessandro perguntou o motivo de ela ter se sentido
ofendida e ela respondeu “isso é imoral, está cheio de crianças aqui no clube”.
Alesandro e Jadson procuraram a Delegacia de Polícia e
fizeram uma notícia crime contra Regina para que fosse apurada a eventual
prática do crime de racismo, previsto no art. 20 da Lei nº 7.716/98:
Art. 20. Praticar, induzir ou
incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou
procedência nacional.
Pena: reclusão de um a três anos
e multa.
O art. 20 acima transcrito não fala em orientação
sexual. Mesmo assim, a conduta de Regina pode ser incluída nesse tipo penal?
SIM.
Apesar de a orientação sexual não ter
sido expressamente mencionada na redação do art. 20 da Lei nº 7.716/89, o STF
deu interpretação conforme a Constituição para dizer que, enquanto não existe
lei específica tipificando a conduta, a homofobia e a transfobia devem ser
punidas segundo os tipos penais previstos na Lei nº 7.716/89 (Lei de crimes
resultantes de preconceito de raça ou de cor):
1. Até que
sobrevenha lei emanada do Congresso Nacional destinada a implementar os
mandados de criminalização definidos nos incisos XLI e XLII do art. 5º da
Constituição da República, as condutas
homofóbicas e transfóbicas, reais ou supostas, que envolvem aversão odiosa à orientação sexual ou à identidade de
gênero de alguém, por traduzirem expressões de racismo, compreendido
este em sua dimensão social, ajustam-se,
por identidade de razão e mediante adequação típica, aos preceitos primários de incriminação definidos na Lei nº 7.716, de
08.01.1989, constituindo, também, na hipótese de homicídio doloso,
circunstância que o qualifica, por configurar motivo torpe (Código Penal, art.
121, § 2º, I, “in fine”);
(...)
3. O
conceito de racismo, compreendido em sua dimensão social, projeta-se para além
de aspectos estritamente biológicos ou fenotípicos, pois resulta, enquanto
manifestação de poder, de uma construção de índole histórico-cultural motivada
pelo objetivo de justificar a desigualdade e destinada ao controle ideológico,
à dominação política, à subjugação social e à negação da alteridade, da
dignidade e da humanidade daqueles que, por integrarem grupo vulnerável
(LGBTI+) e por não pertencerem ao estamento que detém posição de hegemonia em
uma dada estrutura social, são considerados estranhos e diferentes, degradados
à condição de marginais do ordenamento jurídico, expostos, em consequência de
odiosa inferiorização e de perversa estigmatização, a uma injusta e lesiva
situação de exclusão do sistema geral de proteção do direito.
STF.
Plenário. ADO 26/DF, Rel. Min. Celso de Mello; MI 4733/DF, Rel. Min. Edson
Fachin, julgados em 13/6/2019 (Info 944).
Voltando ao caso concreto:
O Ministério Público celebrou acordo de não persecução
com a investigada.
O juiz, contudo, não aceitou homologar o ANPP sob o
argumento de que ele não é aplicável para crimes raciais. Se tiver curiosidade,
veja a fundamentação utilizada pelo magistrado (se estiver sem tempo, pode
seguir sem a leitura):
“(...)
ainda que seja medida de inegável importância para a garantia do princípio da
duração razoável do processo e para a eficiência na prestação jurisdicional,
entendo como inoportuna a aplicação de um instituto despenalizador ao
tratar-se de crime violador de garantias fundamentais e da dignidade da pessoa
humana (art. 1°, inciso III, da CRFB).
No
caso concreto, é importante apontar que, ainda que não impeça a eventual
apreciação pelo Juízo Cível, o termo de evento n° 12 não tem o condão de
reparar de nenhum modo a ofensa sofrida pela vítima.
Assim,
em comunhão ao entendimento do Ministro Edson Fachin, em seu voto vencedor no
recente julgamento do RHC 222.599, vejo como inaplicável o Acordo de Não
Persecução Penal nos crimes raciais previstos na Lei 7.716/89, ou mesmo no art.
140, § 3°, do Código Penal.
A
fim de extenuar a importante discussão do tema, anoto que a inaplicabilidade do
instrumento despenalizador no âmbito dos crimes raciais tem sido alvo de
publicações emanadas pelos próprios entes do Ministério Público (Enunciado 15
SUBJUR/MPPR¹, Orientação conjunta n° 01/2020 – PGJ/SP e CGMP/SP², Recomendação
Conjunta PGJ/CGMP-PI Nº 04/2020³, Nota Técnica Orientativa Conjunta nº 01/2020
do MPAC e Enunciado n° 113/2021 do MPDFT).
Diante
do exposto, nos termos do art. 5°, incisos XLI e XLII, da CRFB, ADO 26/DF c/c
art. 28-A, §7°, do Código de Processo Penal, RECUSO A HOMOLOGAÇÃO do Acordo
de Não Persecução Penal.”
O Ministério Público interpôs recurso em sentido estrito
contra a decisão supratranscrita, no qual argumentou:
“(...)
tem-se que embora a referida declaração tenha conteúdo discriminatório, não
teve dolo exacerbado a ponto de impedir o oferecimento de acordo de não
persecução penal. Merece, como sempre, o caso ser analisado sob a ótica dos
princípios da proporcionalidade e razoabilidade, o que foi feito pelo titular
da ação penal no sistema processual acusatório. Ora, caberia, em tese, um anpp
para um homicídio culposo mas não caberia para a investigada por essa situação?”
O Tribunal de Justiça de Goiás rejeitou o recurso do
Parquet.
Ainda inconformado, o MP interpôs
recurso especial insistindo que seria possível o ANPP para o crime de racismo.
O STJ concordou com os
argumentos do MP? É cabível ANPP para a pessoa acusada de racismo?
NÃO.
O juiz pode recusar a homologação
da proposta de acordo de não persecução penal (ANPP) caso esta não atenda aos
requisitos legais, incluindo a necessidade e suficiência do acordo para a
reprovação e prevenção do crime (art. 28-A, caput e § 7º, do CPP).
Nesse sentido, a Segunda Turma do
STF consolidou o entendimento de que, conforme a excepcionalidade prevista no
inciso IV do § 2º do art. 28-A do CPP, que impede a aplicação do ANPP “nos
crimes praticados no âmbito de violência doméstica ou familiar, ou praticados
contra a mulher por razões da condição de sexo feminino, em favor do
agressor", o acordo "despenalizador" deve respeitar a
Constituição Federal e os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil,
especialmente no que se refere ao direito fundamental à não discriminação (art.
3º, inciso IV, da CF). Dessa forma, o ANPP não pode ser aplicado a crimes
raciais:
(...) 1. A construção e o efetivo
alcance de uma sociedade fraternal, pluralista e sem preconceitos, tal como
previsto no preâmbulo da Constituição Federal, perpassa, inequivocamente, pela
ruptura com a praxis de uma sociedade calcada no constante exercício da
dominação e desrespeito à dignidade da pessoa humana.
2. A promoção do bem de todos, aliás,
sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de
discriminação constitui um dos objetivos fundamentais da República Federativa
do Brasil, elencados no art. 3º da Constituição Federal de 1988.
3. Assim, a delimitação do alcance
material para a aplicação do acordo “despenalizador” e a inibição da persecutio
criminis exige conformidade com o texto Constitucional e com os compromissos
assumidos pelo Estado brasileiro internacionalmente, como limite necessário
para a preservação do direito fundamental à não discriminação e à não submissão
à tortura – seja ela psicológica ou física, ao tratamento desumano ou
degradante, operada pelo conjunto de sentidos estereotipados que circula e que
atribui tanto às mulheres quanto às pessoas negras posição inferior, numa
perversa hierarquia de humanidades.
4. Considerada, pois, a teleologia da
excepcionalidade imposta na norma e a natureza do bem jurídico a que se busca
tutelar, tal como os casos previstos no inciso IV do art. 28 do CPP, o Acordo
de Não Persecução Penal (ANPP) não abarca os crimes raciais, assim também
compreendidos aqueles previstos no art. 140, § 3º, do Código Penal (HC 154248).
5. Recurso ordinário em habeas corpus
não provido.
(RHC 222599, Relator(a): EDSON FACHIN,
Segunda Turma, julgado em 07-02-2023, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 22-03-2023 PUBLIC 23-03-2023)
No caso em questão, o Tribunal de
origem manteve a recusa da homologação do ANPP celebrado entre o Ministério
Público e a autora dos supostos atos homofóbicos. A conduta, em tese,
enquadra-se na Lei nº 7.716/1989 ou no art. 140, § 3º, do Código Penal (na
redação anterior à Lei nº 14.532/2023), sendo considerado insuficiente o ajuste
proposto para a reprovação e prevenção do crime, à luz do direito fundamental à
não discriminação. Esse entendimento está em conformidade com a jurisprudência
do STF e do STJ.
Em suma:
Não cabe acordo de não persecução penal nos crimes
raciais, o que inclui as condutas resultantes de atos homofóbicos.
STJ. 5ª Turma. AREsp 2.607.962-GO, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca,
julgado em 13/8/2024 (Info 821).