O caso concreto, segundo a
narrativa do Ministério Público, foi o seguinte:
João (nome fictício) é jogador profissional de futebol.
Em 2022, atuando no time Cuiabá Esporte Clube, ele foi
escalado para partidas na Série A do Campeonato Brasileiro.
Ocorre que João teria aceitado vantagem patrimonial
indevida para forçar o recebimento de um cartão amarelo no jogo entre o Cuiabá
e o Clube Atlético Mineiro.
De acordo com o Parquet, com isso, João – ao manipular
dolosamente o andamento da partida – teria viabilizado a obtenção de lucros por
apostadores em plataformas de apostas esportivas.
Em razão dos fatos acima narrados, o Ministério Público ofereceu
denúncia contra João imputando-lhe a prática do crime previsto no art. 198 da
Lei nº 14.597/2023 (Lei Geral do Esporte):
Art. 198. Solicitar ou aceitar,
para si ou para outrem, vantagem ou promessa de vantagem patrimonial ou não
patrimonial para qualquer ato ou omissão destinado a alterar ou falsear o
resultado de competição esportiva ou evento a ela associado:
Pena – reclusão, de 2 (dois) a 6
(seis) anos, e multa.
Operação Penalidade Máxima
A denúncia contra João foi resultado de uma ação mais
ampla do Ministério Público do Estado de Goiás, que realizou a Operação
Penalidade Máxima, com o objetivo de combater fraudes em apostas esportivas por
meio da manipulação de resultados de jogos de futebol.
Em resumo, como revelado pelas investigações, alguns
atletas foram cooptados por um grupo organizado de apostadores especializados
em corrupção, que prometiam vultosas quantias de dinheiro em troca da prática,
durante as partidas, de penalidades específicas, tais como cartões amarelos,
vermelhos e cometimento de pênaltis (<https://mpgo.mp.br/portal/noticia/mpgo-gaeco-deflagra-operacao-penalidade-maxima-para-desarticular-quadrilha-especializada-em-fraudar-resultados-de-partidas-da-serie-b-do-campeonato-brasileiro-de-futebol
>).
Voltando ao caso concreto:
O juiz recebeu a denúncia.
A defesa impetrou habeas corpus argumentando que João, ao
aceitar a vantagem para receber um cartão amarelo, não praticou o crime do art.
198 da Lei nº 14.597/2023. Sua conduta seria atípica.
O art. 198 pune o agente que pratica conduta destinada “a
alterar ou falsear o resultado de competição”.
Para a defesa, o “resultado” mencionado no art. 198 se
refere exclusivamente ao placar final da competição (por exemplo, vitória,
empate ou derrota).
O recebimento de um cartão amarelo, por si só, não tem a
capacidade de alterar o resultado da partida de forma direta.
Como a conduta de João não teve o objetivo de influenciar
diretamente no placar final do jogo, a defesa entende que faltou o elemento
subjetivo do tipo penal, que é a finalidade específica de alterar ou falsear o
resultado da competição.
Em suma, a defesa argumentou que “resultado de competição
esportiva” é igual a “placar final da partida”. Como tomar um cartão amarelo
não altera o placar final da partida, não altera o resultado da competição
esportiva.
O Tribunal de Justiça do Estado de Goiás rechaçou a tese
da defesa que impetrou, então, novo habeas corpus agora diretamente no STJ.
O STJ concordou com a tese da defesa?
NÃO.
A alegação de que a elementar “resultado de competição
esportiva”, descrito no art. 198 da Lei Geral do Esporte (Lei nº 14.567/2023),
coincide com o “placar final de partida” não foi aceita pelo STJ.
O tipo penal está redigido nos seguintes termos:
Art. 198. Solicitar ou aceitar,
para si ou para outrem, vantagem ou promessa de vantagem patrimonial ou não
patrimonial para qualquer ato ou omissão destinado a alterar ou falsear o
resultado de competição esportiva ou evento a ela associado:
Pena - reclusão, de 2 (dois) a 6
(seis) anos, e multa.
A elementar “competição esportiva” é mais ampla do que o
placar de uma partida.
Embora um cartão amarelo não tenha capacidade de alterar
diretamente o placar de um jogo de futebol, a quantidade de cartões amarelos é
critério de desempate para efeito de classificação final, podendo definir os
rebaixados, os classificados para as competições internacionais, Copa
Sulamericana ou Copa Libertadores, ou mesmo o campeão.
Nesse sentido, dispunha o regulamento do Campeonato
Brasileiro de 2022:
Art. 15 – Em caso de empate em pontos ganhos entre 2
(dois) ou mais clubes ao final do CAMPEONATO, o desempate, para efeito de
classificação final, será efetuado observando-se os critérios abaixo.
1º) maior número de vitórias;
2º) maior saldo de gols;
3º) maior número de gols pró;
4º) confronto direto;
5º) menor número de cartões vermelhos recebidos;
6º) menor número de cartões amarelos recebidos;
7º) sorteio.
Dessa forma, fica de plano afastada a alegação de que a
promessa de vantagem para receber cartão amarelo não tem o condão de alterar o
resultado da competição esportiva.
Esse argumento, mais formal, tampouco é o único,
exclusivo, pois o ânimo do jogador de futebol que recebeu cartão amarelo
diminui diante da possibilidade de nova advertência por cartão amarelo e,
consequentemente, conversão em expulsão.
Assim, sua participação na marcação do time perde vigor e
altera sua conduta, podendo redundar em alteração do placar do jogo e, por
conseguinte, da competição.
Admitir que apenas a conduta que altera o placar de uma
partida é tipificado, implicaria em deixar fora da norma penal incriminadora,
por exemplo, a promessa de vantagem para cometimento de pênalti não convertido
em gol.
Desse modo, o STJ não reconheceu a atipicidade da
conduta.
Em suma:
A promessa de vantagem indevida para receber cartão
amarelo em uma partida de futebol é suficiente para, em tese, cometer o crime
do art. 198 da Lei Geral do Esporte, ainda que isso não altere diretamente o
placar do jogo.
STJ. 6ª Turma. HC 861.121-GO, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior,
julgado em 20/2/2024 (Info 21 – Edição Extraordinária).