Dizer o Direito

segunda-feira, 2 de setembro de 2024

A intimação por WhatsApp viola a prerrogativa da Defensoria Pública de intimação pessoal?

Imagine a seguinte situação hipotética:

O Ministério Público ofereceu denúncia contra João pela prática de crime de homicídio qualificado.

Após trâmite regular do processo, durante o qual Paulo teve seus interesses defendidos pela Defensoria Pública, designou-se o dia 26/07/2022 para a realização da sessão plenária de julgamento pelo Tribunal do Júri.

O magistrado prolatou decisão determinando a intimação da defesa e do Ministério Público para que apresentassem rol de testemunhas para depor em plenário, juntassem documentos ou requeressem diligências, conforme preconiza o art. 422 do CPP. Ao final da decisão, o juiz determinou que a intimação fosse feita por WhatsApp em razão da proximidade do julgamento:

“Tendo em conta a proximidade da sessão, é caso de excepcionar o art. 5º, § 3º, da Lei do Processo Eletrônico, na forma do art. 5º, § 5º. Em outros dizeres, promova-se contato direto com os defensores e promotores que atuam no processo, por telefone, aplicativo de conversa ou outro meio expedito, a fim de que se inicie, de logo, a contagem do prazo processual.”

 

A Secretaria da Vara atendeu à determinação, fazendo a seguinte certidão:

“Certifico que cumprindo determinação do M.M Juiz de Direito, no dia XXX, dei ciência à Assessoria da Defensoria Pública, através de meio eletrônico WhatsApp, da decisão que designou o julgamento pelo Plenário do Júri.

Certifico que o envio de mensagem foi observado, mas não foi respondido.

O referido é verdade e dou fé.”

 

Vale ressaltar que a mensagem do WhatsApp foi enviada para o número destinado ao atendimento dos assistidos da Defensoria Pública.

 

Correição parcial

A Defensoria Pública ingressou com correição parcial. Argumentou que a decisão do juiz caracterizou erro que importou na inversão tumultuária de atos e fórmulas legais, já que infringiu prerrogativa processual da Defensoria Pública e congestionou o bom andamento do processo. Isso porque as intimações eletrônicas deveriam ser disponibilizadas ao Defensor Público em local específico para consulta, momento em que se faculta a este o prazo de até 10 (dez) corridos para a abertura da intimação e efetiva ciência, conforme prevê a Lei nº 11.419/2006 (Lei do Processo Eletrônico):

Art. 5º As intimações serão feitas por meio eletrônico em portal próprio aos que se cadastrarem na forma do art. 2º desta Lei, dispensando-se a publicação no órgão oficial, inclusive eletrônico.

§ 1º Considerar-se-á realizada a intimação no dia em que o intimando efetivar a consulta eletrônica ao teor da intimação, certificando-se nos autos a sua realização.

§ 2º Na hipótese do § 1º deste artigo, nos casos em que a consulta se dê em dia não útil, a intimação será considerada como realizada no primeiro dia útil seguinte.

§ 3º A consulta referida nos §§ 1º e 2º deste artigo deverá ser feita em até 10 (dez) dias corridos contados da data do envio da intimação, sob pena de considerar-se a intimação automaticamente realizada na data do término desse prazo.

§ 4º Em caráter informativo, poderá ser efetivada remessa de correspondência eletrônica, comunicando o envio da intimação e a abertura automática do prazo processual nos termos do § 3º deste artigo, aos que manifestarem interesse por esse serviço.

§ 5º Nos casos urgentes em que a intimação feita na forma deste artigo possa causar prejuízo a quaisquer das partes ou nos casos em que for evidenciada qualquer tentativa de burla ao sistema, o ato processual deverá ser realizado por outro meio que atinja a sua finalidade, conforme determinado pelo juiz.

§ 6º As intimações feitas na forma deste artigo, inclusive da Fazenda Pública, serão consideradas pessoais para todos os efeitos legais.

 

Requereu o provimento da correição parcial para que fosse reconhecida a nulidade da decisão neste ponto, abrindo-se prazo para ciência e manifestação no portal eletrônico utilizado para esta finalidade.

A correição parcial foi indeferida.

 

Recurso especial

A Defensoria interpôs recurso especial sustentando a impossibilidade de relativização das prerrogativas da Defensoria Pública, em especial a intimação pessoal com entrega dos autos com vista, quando não restar caracterizada situação de urgência.

 

O STJ deu provimento ao recurso da defesa?

SIM.

A Defensoria Pública é instituição essencial à função jurisdicional do Estado, notadamente pela defesa, em todos os graus de jurisdição, dos hipossuficientes (art. 134 da Constituição Federal). Essa essencialidade pode ser traduzida pela vocação, que lhe foi conferida pelo constituinte originário, de ser um agente de transformação social, seja pela redução das desigualdades sociais, seja na afirmação do Estado Democrático de Direito ou na efetividade dos direitos humanos; mostra-se, outrossim, eficiente mecanismo de implementação do direito fundamental previsto art. 5º, LXXIV, da Constituição Federal.

Para bem desincumbir-se de suas atribuições constitucionais, arroladas no art. 134, caput, da Constituição Federal de 1988, assegurou-se à Defensoria Pública um extenso rol de prerrogativas, direitos, garantias e deveres, de estatura constitucional e legal.

A Lei Complementar nº 80/1994, a partir da redação fornecida pela LC 32/2009, estabelece, textualmente, que “são prerrogativas dos membros da Defensoria Pública do Estado, dentre outras que a lei local estabelecer: receber, inclusive quando necessário, mediante entrega dos autos com vista, intimação pessoal em qualquer processo e grau de jurisdição ou instância administrativa, contando-se lhe em dobro todos os prazos” (art. 128, I).

Na hipótese, o juízo de primeiro grau, em desrespeito à prerrogativa de intimação pessoal com vista dos autos, determinou que a intimação da Defensoria Pública se aperfeiçoasse por WhatsApp.

Ao assim proceder, o juízo de primeiro grau violou as prerrogativas da Defensoria Pública: a intimação deveria haver ocorrido pelo sistema de processo eletrônico, de forma a possibilitar a análise dos autos e o controle dos prazos processuais.

Cumpre registrar que a norma descrita no art. 5º, § 5º, da Lei de Processo Eletrônico, ao autorizar que, “nos casos urgentes em que a intimação feita na forma deste artigo possa causar prejuízo a quaisquer das partes ou nos casos em que for evidenciada qualquer tentativa de burla ao sistema, o ato processual deverá ser realizado por outro meio que atinja a sua finalidade, conforme determinado pelo juiz”, não afasta a obrigatoriedade de observância das prerrogativas da instituição.

O tumulto processual causado pela intimação por aplicativo de mensagens, devidamente impugnado por correição parcial, acarreta, inexoravelmente, um prejuízo institucional à Defensoria Pública, que precisaria se reorganizar de forma diversa da que prevê a lei para atender à mensagem enviada pelo Gabinete da Vara para o número destinado ao atendimento dos usuários da Defensoria Pública. Comodidades ou conveniências administrativas não podem se sobrepor às prerrogativas da Defensoria Pública e ao devido processo legal.

 

Em suma:

A intimação por aplicativo de mensagens viola a prerrogativa da Defensoria Pública de intimação pessoal, uma vez que impossibilita a análise dos autos e o controle dos prazos processuais. 

STJ. 6ª Turma. EDcl no AgRg no AREsp 2.300.987-PR, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, julgado em 2/4/2024 (Info 21 – Edição Extraordinária).


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