Dizer o Direito

segunda-feira, 30 de setembro de 2024

Se um dos herdeiros fica morando em um dos imóveis objeto da herança enquanto se aguarda o encerramento do inventário, é possível, em tese, que ele adquira a propriedade do bem por usucapião?

Usucapião

Usucapião é...

- um instituto jurídico por meio do qual a pessoa que fica na posse de um bem (móvel ou imóvel)

- por determinados anos

- agindo como se fosse dono

- adquire a propriedade deste bem ou outros direitos reais a ele relacionados (exs: usufruto, servidão)

- desde que cumpridos os requisitos legais.

 

Existem diversas modalidades de usucapião. Uma delas é a usucapião extraordinária, prevista no art. 1.238 do Código Civil:

Art. 1.238. Aquele que, por quinze anos, sem interrupção, nem oposição, possuir como seu um imóvel, adquire-lhe a propriedade, independentemente de título e boa-fé; podendo requerer ao juiz que assim o declare por sentença, a qual servirá de título para o registro no Cartório de Registro de Imóveis.

Parágrafo único. O prazo estabelecido neste artigo reduzir-se-á a dez anos se o possuidor houver estabelecido no imóvel a sua moradia habitual, ou nele realizado obras ou serviços de caráter produtivo.

 

Usucapião extraordinária

Prazos:

• 15 anos de posse (regra);

• 10 anos.

 

O prazo da usucapião extraordinária será de 10 anos se:

a) o possuidor houver estabelecido no imóvel a sua moradia habitual; ou

b) nele tiver realizado obras ou serviços de caráter produtivo.

 

Não se exige que a pessoa prove que tinha um justo título ou que estava de boa-fé.

Não importa o tamanho do imóvel.

 

Feitos os esclarecimentos acima, imagine a seguinte situação hipotética:

João morreu e deixou três filhos: Pedro, Tiago e Ricardo.

Foi aberto um inventário que, devido a inúmeras complexidades, ficou se arrastando durante anos.

Vale ressaltar que, após o falecimento, Pedro passou a morar sozinho em uma casa deixada por João.

Durante 15 anos, Pedro viveu nessa casa, cuidando da manutenção, pagando impostos e se comportando como se fosse o único dono do imóvel.

Tiago e Ricardo, por sua vez, residem em outra cidade e nunca se interessaram pela casa.

Depois desses 15 anos, Pedro ingressou com ação de usucapião extraordinária pedindo para ser declarado proprietário do imóvel.

O juiz extinguiu o processo sem resolução do mérito sob o argumento de que Pedro, enquanto herdeiro, não teria legitimidade para propor ação de usucapião. Confira a argumentação do magistrado:

“Inexiste interesse de agir, uma vez que o autor não pode usucapir um imóvel que já lhe pertence. In casu, tanto o autor, quanto os herdeiros do espólio requerido, possuem o direito de domínio sobre o imóvel.

A existência de condomínio na posse, ainda que o herdeiro permanecesse no imóvel por mais de quinze anos após o falecimento do genitor, não caracteriza a posse ad usucapionem, pois durante todo esse período não exerceu a posse de forma inequívoca e inconteste, pois todos os herdeiros, inclusive o autor, sabiam da necessidade de regularização do imóvel.

A ocupação do imóvel pelo autor se traduz em atos de mera tolerância, o que não induz a posse necessária à usucapião. Tem-se que a posse exercida por ele deriva de mera liberalidade, sendo, por isso, imprestável para usucapião.”

 

A sentença foi mantida pelo Tribunal de São Paulo.

Ainda inconformado, Pedro interpôs recurso especial afirmando que possui sim legitimidade e interesse em pedir a usucapião.

 

O STJ deu provimento ao recurso de Pedro?

SIM.

Conforme vimos acima, o juiz e o TJ/SP entenderam que o autor é herdeiro do imóvel e que, apesar de estar há muito tempo na casa, não seria possível afirmar que os outros herdeiros a abandonaram, já que o inventário ainda estava em andamento. Assim, o autor teria apenas a posse, como os demais herdeiros proprietários.

Vale ressaltar, contudo, que o STJ entende que é possível sim a usucapião de imóvel herdado por um herdeiro que tenha posse exclusiva. Desse modo, o herdeiro tem legitimidade e interesse em usucapir em seu nome, desde que exerça a posse de forma exclusiva e cumpra os requisitos legais para a usucapião extraordinária.

A partir da transmissão da herança com a abertura da sucessão, “cria-se um condomínio pro indiviso sobre o acervo hereditário, regendo-se o direito dos co-herdeiros, quanto à propriedade e posse da herança, pelas normas relativas ao condomínio”. Assim, “O condômino, tem legitimidade para usucapir em nome próprio, desde que exerça a posse por si mesmo, ou seja, desde que comprovados os requisitos legais atinentes à usucapião, bem como tenha sido exercida posse exclusiva com efetivo animus domini pelo prazo determinado em lei, sem qualquer oposição dos demais proprietários” (STJ. 3ª Turma. REsp 1.631.859/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 22/5/2018).

 

Em suma:

O herdeiro que tem a posse exclusiva de imóvel objeto de herança possui legitimidade e interesse na declaração de usucapião extraordinária em nome próprio. 

STJ. 4ª Turma. AgInt no AREsp 2.355.307-SP, Rel. Min. Raul Araújo, julgado em 17/6/2024 (Info 822).


INFORMATIVO Comentado 1147 STF (completo e resumido)

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ÍNDICE DO INFORMATIVO 1147 DO STF


Direito Constitucional

TRIBUNAL DE CONTAS

§  É constitucional lei estadual, de iniciativa parlamentar, que altera a destinação dos valores arrecadados com a cobrança de multas aplicadas pelo Tribunal de Contas.

§  O Ministério Público junto ao Tribunal de Contas (Ministério Público especial) encontra-se organicamente inserido na estrutura da respectiva Corte de Contas, motivo pelo qual não detém autonomia administrativa e orçamentária.

 

DIREITO ADMINISTRATIVO

SERVIDORES PÚBLICOS

§  É compatível com a Constituição Federal de 1988 norma de lei estadual que dispõe integrarem a administração tributária as atividades de competência dos cargos de provimento efetivo da Secretaria de Estado da Fazenda (Sefaz) local.

 

DIREITO PROCESSUAL CIVIL

PRECATÓRIOS

§  A vedação ao fracionamento de créditos judiciais devidos pela Fazenda Pública (art. 100, § 8º, CF) não alcança as execuções individuais de pequeno valor promovidas por substituto processual, cujo valor global do crédito supera o limite para requisição de pequeno valor (RPV).

 

domingo, 29 de setembro de 2024

Se o motorista colide seu carro com um animal que estava na pista, ele poderá ser indenizado pela concessionária que administra a rodovia?

Imagine a seguinte situação hipotética:

ECOPISTAS é a empresa responsável pela administração da rodovia Ayrton Senna, localizada no Estado de São Paulo. Trata-se, portanto, de uma concessionária de serviço público (concessionária de rodovia).

João trafegava com seu veículo pela rodovia Ayrton Senna, à noite, em uma área com várias fazendas ao redor. Ele foi surpreendido com um boi deitado na pista. Sem tempo para desviar, João acabou colidindo com o animal, o que ocasionou danos em seu veículo.

 

Ação de indenização

Após o acidente, João ajuizou ação de indenização contra a ECOPISTAS, concessionária responsável pela administração da rodovia Ayrton Senna, requerendo o ressarcimento dos danos causados em seu carro.

O autor alegou que a ré, na qualidade de concessionária de serviço público, responde objetivamente pelos danos causados a terceiros, sujeitando-se ao risco administrativo, conforme dispõe o art. 37, § 6º da Constituição Federal de 1988:

Art. 37 (...)

§ 6º As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.

 

Além disso, argumentou que essa responsabilidade objetiva é reforçada pelo art. 14 do Código de Defesa do Consumidor:

Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos.

 

Afirmou que a se aplica, no caso, o Código de Defesa do Consumidor porque a ré se enquadra no conceito de fornecedora (art. 3º), ao assumir obrigação contratual de prestar serviços adequados de fiscalização e manutenção das estradas sob sua administração, recebendo, para tanto a correspondente remuneração de seus usuários.

 

Contestação

A ré contestou o pedido afirmando que não deveria ser aplicado o Código de Defesa do Consumidor neste caso e que não houve nexo de causalidade entre a sua conduta e o acidente uma vez que a responsabilidade era do proprietário do animal.

 

Amicus curiae

A Associação Brasileira de Concessionárias de Rodovias (ABCR), na condição de AMICUS CURIAE, defendeu que a imputação de responsabilidade das concessionárias de serviço público por acidentes causados por animais domésticos em rodovia estaria fundada em suposta conduta omissiva, devendo ser aplicada a Teoria da Culpa Administrativa, diante da:

A) impossibilidade de responsabilização da concessionária por atos de terceiros;

B) necessária demonstração de culpa pela prestadora de serviço público, sob pena de se universalizar sua responsabilidade a despeito de exigência legal – ou contratual – de conduta diversa.

 

O que decidiu o STJ? Trata-se de responsabilidade objetiva neste caso? Aplica-se o CDC?

SIM.

As concessionárias de serviços públicos (como é o caso das concessionárias de rodovias) possuem responsabilidade objetiva por acidentes causados pela presença de animais domésticos nas rodovias, aplicando-se a teoria do risco administrativo.

Isso por força do Código de Defesa do Consumidor, que se aplica às concessionárias, conforme previsão expressa do art. 22 do CDC:

Art. 22. Os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos.

Parágrafo único. Nos casos de descumprimento, total ou parcial, das obrigações referidas neste artigo, serão as pessoas jurídicas compelidas a cumpri-las e a reparar os danos causados, na forma prevista neste código.

 

A aplicação do CDC para as concessionárias é prevista também na própria Lei das Concessões (Lei nº 8.987/1995):

Art. 7º Sem prejuízo do disposto na Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990, são direitos e obrigações dos usuários:

I - receber serviço adequado;

II - receber do poder concedente e da concessionária informações para a defesa de interesses individuais ou     coletivos;

III - obter e utilizar o serviço, com liberdade de escolha entre vários prestadores de serviços, quando for o caso, observadas as normas do poder concedente.

IV - levar ao conhecimento do poder público e da concessionária as irregularidades de que tenham conhecimento, referentes ao serviço prestado;

V - comunicar às autoridades competentes os atos ilícitos praticados pela concessionária na prestação do serviço;

VI - contribuir para a permanência das boas condições dos bens públicos através dos quais lhes são prestados os serviços.

 

Esse é o entendimento não apenas do STJ, mas também do STF que já decidiu que “as pessoas jurídicas de direito privado, prestadoras de serviço público, respondem objetivamente pelos prejuízos que causarem a terceiros usuários e não usuários do serviço.” (RE 591.874-RG, Rel. Min. Ricardo Lewandowski - Tema 130).

Portanto, não cabe aplicar a teoria da culpa administrativa para eximir as concessionárias de responsabilidade.

 

As concessionárias devem seguir padrões mínimos de fiscalização e manutenção, incluindo a instalação de bases operacionais e a realização de rondas periódicas

Considerando o princípio da prevenção, as regras contratuais que impõem a instalação de bases operacionais com distâncias máximas entre elas, bem como a realização de rondas periódicas com intervalos máximos e a previsão de tempo máximo para o atendimento de ocorrências representam padrões mínimos a serem observados pelas concessionárias.

 

A responsabilidade das concessionárias não é afastada pelo dever de fiscalização do poder público

Cabe salientar também que o dever de fiscalização dos entes públicos não afasta a responsabilidade civil das concessionárias, nos termos do art. 25 da Lei das Concessões:

Art. 25. Incumbe à concessionária a execução do serviço concedido, cabendo-lhe responder por todos os prejuízos causados ao poder concedente, aos usuários ou a terceiros, sem que a fiscalização exercida pelo órgão competente exclua ou atenue essa responsabilidade.

 

Princípio da primazia do interesse da vítima

Além disso, o princípio da primazia do interesse da vítima, decorrente do princípio da solidariedade, impõe a reparação dos danos independentemente da identificação do proprietário do animal cujo ingresso na rodovia causou o acidente.

Assim, cabe à concessionária indenizar o usuário pelos danos sofridos e, se lhe aprouver, exercer eventual direito de regresso, oportunamente, contra o dono do animal envolvido no acidente.

 

Em suma:

As concessionárias de rodovias respondem, independentemente da existência de culpa, pelos danos oriundos de acidentes causados pela presença de animais domésticos nas pistas de rolamento, aplicando-se as regras do Código de Defesa do Consumidor e da Lei das Concessões. 

STJ. Corte Especial. REsp 1.908.738-SP, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em 21/8/2024 (Recurso Repetitivo – Tema 1122) (Info 822).


sexta-feira, 27 de setembro de 2024

INFORMATIVO Comentado 822 STJ (completo e resumido)

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ÍNDICE DO INFORMATIVO 822 DO STJ


DIREITO CONSTITUCIONAL

TRIBUNAL DE CONTAS

§  Conselheiro do Tribunal de Contas acusado de homicídio não pode ser julgado pelo STJ por crime de responsabilidade considerando que essa previsão não está na lei.

 

DIREITO ADMINISTRATIVO

RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO

§  Em casos de acidentes causados por animais domésticos em rodovias concedidas, a concessionária é objetivamente responsável pelos danos ao usuário; essa responsabilidade independe de culpa, da identificação do dono do animal e da fiscalização pública.

 

CONCURSOS PÚBLICOS

§  Em ação ordinária na qual se objetiva a anulação de questão de prova e reclassificação de candidato, quando eventual inclusão deste implicar na necessária exclusão de terceiros, é necessário o chamamento dos demais candidatos afetados para integrarem a lide.

 

DIREITO CIVIL

USUCAPIÃO

§  O herdeiro que tem a posse exclusiva de imóvel objeto de herança possui legitimidade e interesse na declaração de usucapião extraordinária em nome próprio.

 

ALIMENTOS

§  A maioridade civil e a capacidade, em tese, de promoção ao próprio sustento, por si só, não são capazes de desconstituir a obrigação alimentar, devendo haver prova pré-constituída da ausência de necessidade dos alimentos.

 

DIREITO EMPRESARIAL

SOCIEDADES EMPRESÁRIAS

§  Nas ações de dissolução de sociedade com apuração de haveres relativas a fatos anteriores ao Código Civil vigente, os juros de mora contam-se da citação inicial, mesmo que não tenha ainda sido quantificada a dívida.

 

DIREITO PROCESSUAL CIVIL

COMPETÊNCIA

§  Compete às Turmas da Segunda Seção do STJ julgar litígio acerca de prova para obtenção de Título de Especialista em Cardiologia (TEC), promovida pela Sociedade Brasileira de Cardiologia.

 

CITAÇÃO

§  Autor ajuizou a ação dentro do prazo prescricional; juiz determinou a complementação das custas iniciais; a parte cumpriu esse despacho no prazo concedido; não se deve reconhecer a prescrição mesmo que a citação tenha sido realizada após o prazo prescricional.

 

PROCEDIMENTOS

§  É possível a alteração do polo passivo da demanda mesmo após o saneamento do processo e sem autorização do réu, desde que não haja alteração do pedido ou da causa de pedir.

 

DIREITO PENAL

ESTUPRO

§  Falta de reação enérgica da vítima e consentimento inicial não afastam o crime de estupro.

 

DIREITO PROCESSUAL PENAL

IMPEDIMENTOS

§  A intenção normativa do art. 252, III, do CPP impede que o mesmo julgador, seja em razão do deslocamento do próprio magistrado ou da ação penal, prolate uma decisão e, posteriormente, em sede recursal, a reexamine.

 

PRISÃO

§  Concedida a liberdade provisória mediante imposição de cautelares diversas da prisão, é lícita a segregação superveniente, desde que observado o comando do art. 312, § 2º, do CPP.

 

EXECUÇÃO PENAL

§  O fornecimento de perfil genético, nos termos do art. 9º-A da LEP, não constitui violação do princípio da vedação à autoincriminação, configurando falta grave a recusa.

 

DIREITO TRIBUTÁRIO

RESTITUIÇÃO DO INDÉBITO TRIBUTÁRIO

§  O mandado de segurança não permite a restituição administrativa em dinheiro ou via precatórios/RPV, mantendo-se as restrições estabelecidas pelas Súmulas 269 e 271 do STF, mesmo após o julgamento do Tema 1.262 pelo STF.

 

ISSQN

§  O Município competente para cobrar o ISSQN sobre serviço prestado pelos laboratórios de análises clínicas é o do local em que coletado o material a ser examinado, independentemente de os procedimentos laboratoriais serem executados em município diverso.

 

DIREITO PREVIDENCIÁRIO

SALÁRIO-MATERNIDADE

§  Não é possível enquadrar como salário-maternidade os valores pagos às empregadas gestantes afastadas por força do disposto na Lei 14.151/2021, enquanto durar o respectivo afastamento.


É compatível com a Constituição Federal de 1988 a norma da Lei 5.478/1968 que dispensa a assistência de advogado na audiência inicial do procedimento especial da ação de alimentos

A ação de alimentos pode ser proposta mesmo sem advogado

A Lei nº 5.478/1968 dispõe sobre a ação de alimentos.

Os arts. 2º e 3º da Lei de Alimentos possibilita que a pessoa que pede alimentos possa ingressar com a ação mesmo sem advogado.

As normas impugnadas possibilitam ao credor que se dirija ao juiz, pessoalmente ou por advogado, e exponha os fatos e fundamentos que lastreiam seu pedido de alimentos. Assim, com base nesses dispositivos, é dispensável a assistência de advogado na audiência inicial do procedimento especial da ação de alimentos regido pela Lei nº 5.478/1968.

Vale ressaltar que, logo depois, o juiz deverá designar um advogado ou Defensor Público para fazer a assistência jurídica do credor. Veja:

Art. 2º O credor, pessoalmente, ou por intermédio de advogado, dirigir-se-á ao juiz competente, qualificando-se, e exporá suas necessidades, provando, apenas o parentesco ou a obrigação de alimentar do devedor, indicando seu nome e sobrenome, residência ou local de trabalho, profissão e naturalidade, quanto ganha aproximadamente ou os recursos de que dispõe.

(...)

§ 3º Se o credor comparecer pessoalmente e não indicar profissional que haja concordado em assisti-lo, o juiz designará desde logo quem o deva fazer.

 

Art. 3º O pedido será apresentado por escrito, em 3 (três) vias, e deverá conter a indicação do juiz a quem for dirigido, os elementos referidos no artigo anterior e um histórico sumário dos fatos.

§ 1º Se houver sido designado pelo juiz defensor para assistir o solicitante, na forma prevista no art. 2º, formulará o designado, dentro de 24 (vinte e quatro) horas da nomeação, o pedido, por escrito, podendo, se achar conveniente, indicar seja a solicitação verbal reduzida a termo.

§ 2º O termo previsto no parágrafo anterior será em 3 (três) vias, datadas e assinadas pelo escrivão, observado, no que couber, o disposto no "caput" do presente artigo.

 

ADPF

O Conselho Federal da OAB ajuizou ADPF pedindo para que a expressão “pessoalmente, ou” e todo o art. 3º fossem declarados como não recepcionados pela CF/88.

A OAB alegou que essa previsão seria incompatível com os seguintes princípios constitucionais:

·       isonomia (art. 5º, caput)

·       devido processo legal (art. 5º, LIV),

·       ampla defesa e contraditório (art. 5º, LV),

·       acesso à justiça (art. 5º XXXV),

·       razoável duração do processo (art. 5º, LXXVIII) e

·       direito à defesa técnica (arts. 133 e 134 da CF/88.

 

Nas exatas palavras da petição inicial:

“O direito à defesa técnica é garantia constitucional fundamental do processo, inscrita no art. 133 da Constituição Federal, que prevê a indispensabilidade do advogado para a administração da justiça, e complementada pelo art. 134, que estende esse direito aos hipossuficientes, mediante a criação da Defensoria Pública da União, dos Estados e do Distrito Federal.

(...)

A representação por profissional capacitado é mecanismo necessário para assegurar o equilíbrio da relação processual e a efetividade do princípio da isonomia (art. 5º, caput) em juízo.

Sem a adequada representação por advogado ou defensor público, a parte corre graves riscos: seja pelo desconhecimento do direito, seja pela incapacidade de verter os fatos em argumentos jurídicos, seja pelo desequilíbrio de armas em relação à parte adversa, diversos são os elementos aptos a comprovar que a ausência de defesa técnica leva a um acirramento das distâncias que separam a verdade material da verdade em juízo.”

 

Esses argumentos foram acolhidos pelo STF? Essa previsão da Lei de Alimentos é incompatível com a CF/88?

NÃO.

Embora seja reconhecido que o advogado desempenha um papel essencial na administração da justiça, o STF reafirmou que, em determinados procedimentos especiais previstos em lei, a representação por advogado pode ser dispensada, com base no princípio do acesso à Justiça (art. 5º, XXXV, CF/88) e visando dar maior celeridade a certos ritos processuais.

Esse mesmo princípio fundamenta a dispensa de advogado na Justiça do Trabalho (art. 791 c/c art. 839, CLT) e, na esfera criminal, nos casos de habeas corpus e revisão criminal (art. 623, CPP).

Nesse contexto, o estabelecimento de um rito especial para ações de alimentos reforça a necessidade de assegurar o acesso à Justiça e concretizar o direito constitucional à prestação de alimentos, que se baseia no princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF/88) e no direito à vida (art. 5º, caput, CF/88).

A possibilidade de dispensar o advogado no momento específico da petição inicial em ações de alimentos tem caráter cautelar, buscando resguardar a integridade do alimentando. Essa etapa é prévia à formação do litígio e se justifica pela urgência da demanda, sendo que, nesse momento, ainda não há um conflito formal entre as partes.

Além disso, se o credor comparecer ao juízo sem estar representado por um advogado, o juiz poderá imediatamente nomear um profissional para assisti-lo.

 

Em suma:

É compatível com a Constituição Federal de 1988 a norma da Lei nº 5.478/1968 que dispensa a assistência de advogado na audiência inicial do procedimento especial da ação de alimentos.

STF. Plenário. ADPF 591/DF, Rel. Min. Cristiano Zanin, julgado em 19/08/2024 (Info 1146).


quinta-feira, 26 de setembro de 2024

Decreto estadual não pode estipular prazos prescricionais para a punição de condenados que praticarem falta disciplinar; essa é uma competência privativa da União

O caso concreto foi o seguinte:

O Decreto nº 46.534/2009, editado pelo Governador do Estado do Rio Grande do Sul, aprovou o regimento disciplinar penitenciário daquele estado.

Os arts. 36, caput e parágrafo único e 37, parágrafo único, tratam sobre a prescrição da pretensão punitiva no âmbito do procedimento destinado a apurar falta disciplinar no curso da execução da pena.

Esses dispositivos estabelecem que, para punir um preso por uma falta disciplinar, o Estado precisa:

·       Iniciar a investigação em até 60 dias úteis após ter conhecimento da falta;

·       Concluir o procedimento em até 30 dias úteis (ou no máximo 60, se prorrogado).

 

Caso não cumpra esses prazos, a punição não poderá mais ser aplicada.

 

ADI

O PGR ajuizou ADI contra esses dispositivos supracitados.

O autor alegou que os dispositivos impugnados violam o art. 22, I, da Constituição Federal, uma vez que “a prescrição da pretensão punitiva estatal na seara de procedimento para apuração de falta disciplinar no curso da execução penal constitui matéria de direito penal”.

Argumentou ainda que a Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210/1984) nada diz sobre o prazo prescricional para a cominação de sanção pelo cometimento de falta disciplinar em sede de execução penal.

O PGR salientou que, na falta de lei específica sobre o tema, o Judiciário vem aplicando, por analogia,  o art. 109, inciso VI, do Código Penal, que estabelece prazo prescricional de três anos.

 

Os argumentos invocados pelo PGR foram acolhidos pelo STF? Esses dispositivos são inconstitucionais?

SIM.

O cumprimento da pena deve seguir as regras estabelecidas no Código Penal (art. 33) e na Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210/1984).

A LEP, por sua vez, estabelece que, entre os deveres do condenado, está o de manter o comportamento disciplinado e o de cumprir fielmente a sentença:

Art. 39. Constituem deveres do condenado:

I - comportamento disciplinado e cumprimento fiel da sentença;

 

Mais adiante, no art. 49, o mesmo diploma diferencia as faltas disciplinares, além de prever, de forma expressa, que somente as faltas leves e médias serão classificadas pela legislação local:

Art. 49. As faltas disciplinares classificam-se em leves, médias e graves. A legislação local especificará as leves e médias, bem assim as respectivas sanções.

 

Nesse contexto, a sanção disciplinar somente pode ser aplicada depois de instaurado o processo administrativo para apuração de falta grave (tipificadas nos arts. 50, 51 e 52 da LEP), conforme prevê o art. 59 da LEP:

Art. 59. Praticada a falta disciplinar, deverá ser instaurado o procedimento para sua apuração, conforme regulamento, assegurado o direito de defesa.

Parágrafo único. A decisão será motivada.

 

Entretanto, a Lei de Execução Penal foi omissa quando ao prazo prescricional para a formalização do referido procedimento administrativo.

Apesar da referida lacuna, o art. 22, I, da CF/88 afirma competir privativamente à União legislar sobre direito penal e processual:

Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:

I - direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho;

 

Pode-se afirmar que o prazo prescricional para instauração do processo administrativo para apuração de falta disciplinar constitui matéria revestida de natureza penal, pois interfere diretamente no exercício da pretensão executória da pena imposta.

Por esse motivo, o STF afirmou que o Decreto impugnado está maculado pela inconstitucionalidade formal e material.

Na ausência de norma específica para regular a prescrição da infração disciplinar, deve-se aplicar o disposto no art. 109, VI, do Código Penal, considerando-se o menor lapso de tempo previsto, com a finalidade de preencher a lacuna observada na Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210/1984):

Art. 109.  A prescrição, antes de transitar em julgado a sentença final, salvo o disposto no § 1o do art. 110 deste Código, regula-se pelo máximo da pena privativa de liberdade cominada ao crime, verificando-se:

(...)

VI - em 3 (três) anos, se o máximo da pena é inferior a 1 (um) ano.   

 

Em suma:

É inconstitucional — por usurpar a competência privativa da União para legislar sobre direito penal e direito processual penal (art. 22, I, CF/88) — norma de decreto estadual que determina a extinção da punibilidade pela prescrição quando não ocorrer, dentro do prazo nela estabelecido, a instauração ou a conclusão do procedimento destinado a apurar falta disciplinar no curso da execução da pena.

STF. Plenário. ADI 4.979/RS, Rel. Min. Nunes Marques, julgado em 19/08/2024 (Info 1146).

 

Com base nesse entendimento, o Plenário, por unanimidade, julgou procedente o pedido para declarar a inconstitucionalidade dos arts. 36, caput e parágrafo único, e 37, parágrafo único, ambos do Decreto nº 46.534/2009 do Estado do Rio Grande do Sul - Regimento Disciplinar Penitenciário do Estado do Rio Grande do Sul.


quarta-feira, 25 de setembro de 2024

São constitucionais as detenções e as prisões disciplinares previstas no Regulamento Disciplinar do Exército (RDE – Decreto 4.346/2002)

Onde estão previstas as transgressões disciplinares e as punições aplicáveis aos militares do Exército?

No Regulamento Disciplinar do Exército (Decreto nº 4.346/2002).

 

Regulamento Disciplinar do Exército

O Regulamento Disciplinar do Exército (R-4) tem por finalidade especificar as transgressões disciplinares e estabelecer normas relativas a punições disciplinares, comportamento militar das praças, recursos e recompensas.

 

Quem está sujeito a esse Regulamento?

Estão sujeitos a este Regulamento os militares do Exército na ativa, na reserva remunerada e os reformados.

 

Punições disciplinares

As punições disciplinares estão previstas nos arts. 23 a 33 do Regulamento.

Os incisos IV e V preveem, inclusive, sanções que restringem a liberdade do militar:

Art. 24.  Segundo a classificação resultante do julgamento da transgressão, as punições disciplinares a que estão sujeitos os militares são, em ordem de gravidade crescente:

IV - a detenção disciplinar;

V - a prisão disciplinar; e

 

Transgressões disciplinares

As transgressões disciplinares estão elencadas no Anexo I do Regulamento.

 

Qual é o fundamento legal para que um Decreto preveja as transgressões disciplinares e as punições aplicáveis aos militares do Exército?

A autorização para isso está no art. 47 da Lei nº 6.880/80 (Estatuto dos Militares):

Art. 47. Os regulamentos disciplinares das Forças Armadas especificarão e classificarão as contravenções ou transgressões disciplinares e estabelecerão as normas relativas à amplitude e aplicação das penas disciplinares, à classificação do comportamento militar e à interposição de recursos contra as penas disciplinares.

 

O art. 47 da Lei nº 6.880/80 passou a ser questionado depois da CF/88

A Constituição Federal de 1988, em seu art. 5º, LXI, trouxe a seguinte previsão:

Art. 5º (...)

LXI - ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei;

 

Diante disso, quando a Constituição Federal de 1988 foi promulgada, surgiram várias vozes sustentando que:

·       o art. 47 da Lei nº 6.880/80 não teria sido recepcionado já que transferiu para o Regulamento (ato infralegal) a definição das transgressões disciplinares e respectivas punições, inclusive sanções privativas de liberdade;

·       consequentemente, seriam inválidos os Regulamentos aprovados por Decreto que previam punições que acarretem a “prisão” do militar.

 

Tanto o revogado Decreto nº 90.608/1984 (antigo Regulamento) como o Decreto nº 4.346/2002 (atual Regulamento) estabelecem punições que implicam privação da liberdade.

 

O STF concordou com esses argumentos? O art. 47 da Lei nº 6.880/80 é incompatível com o princípio da reserva legal? Essa previsão legal foi revogada (não recepcionada)?

NÃO.

O STF refutou essa alegação e decidiu que:

São constitucionais normas do Decreto nº 4.346/2002 (Regulamento Disciplinar do Exército) que enumeram as punições disciplinares aplicáveis às transgressões disciplinares no âmbito militar.

Essas normas não violam o princípio da reserva legal.

STF. RE 603.116/RS, Rel. Min. Dias Toffoli, julgado em 19/08/2024 (Repercussão Geral – Tema 703) (Info 1146).

 

O que diz o inciso LXI do art. 5º da CF/88?

O inciso LXI afirma que:

Em regra, para que alguém seja preso é necessária ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente.

Existem duas exceções em que se pode prender sem essa ordem da autoridade judiciária:

1) flagrante delito;

2) nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei.

 

Quando a parte final do inciso LXI fala em “definidos em lei”, ela está exigindo que as transgressões disciplinares sejam previstas em lei?

NÃO.

Ao se fazer uma interpretação meramente gramatical da parte final do inciso LXI, poder-se-ia concluir que a lei formal deve prever tanto os crimes propriamente militares como também as transgressões militares. O STF afirmou, contudo, que essa não é a melhor interpretação.

 

Crimes militares

Os crimes militares propriamente ditos são aqueles que, tipificados no Código Penal Militar, só podem ser praticados por militares, consistindo na violação de deveres restritos e que lhes são próprios.

 

Transgressões militares

Por outro lado, as transgressões militares decorrem do exercício do poder disciplinar da Administração Militar, cuja matéria se sujeita apenas ao princípio da reserva legal relativa, de modo que a lei, ao descrever as condutas das infrações disciplinares, pode deixar a cargo de atos infralegais a estipulação dos detalhes segundo as peculiaridades dos serviços.

 

Reserva legal se aplica aos crimes propriamente militares

A reserva legal, no tocante aos crimes propriamente militares, é restrita, absoluta, até porque se aplicam ao direito penal militar os princípios gerais do direito penal, entre os quais se destaca o da legalidade penal. Aplica-se para os crimes propriamente militares o princípio segundo o qual “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal” (art. 5º, inciso XXXIX, da CF/88).

Assim, no que tange aos crimes propriamente militares, exige-se lei – em sentido formal – anterior à ocorrência do comportamento porventura tipificado, certa em todos os seus elementos e circunstâncias e taxativa na descrição da conduta incriminada.

 

A lei não precisa ser taxativa no que tange às infrações disciplinares

No que diz respeito às infrações disciplinares, a lei não precisa ser taxativa ao descrever as condutas proscritas, podendo deixar a cargo de atos infralegais a estipulação das minúcias segundo as peculiaridades dos serviços, as quais, muitas vezes, não poderiam sequer ser cogitadas pelo legislador.

A tipicidade das infrações disciplinares não se equipara à tipicidade penal.

Além disso, a Administração Militar, para o adequado funcionamento das organizações castrenses, precisa impor obrigações e deveres aos militares a ela vinculados sem a necessidade da pormenorizada estipulação deles em lei formal, sendo o exercício do poder disciplinar matéria sujeita apenas ao princípio da reserva legal relativa.

 

Tese fixada pelo STF:

O art. 47 da Lei nº 6.880/80 foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988, sendo válidos, por conseguinte, os incisos IV e V do art. 24 do Decreto nº 4.346/02, os quais não implicam ofensa ao princípio da reserva legal.

STF. RE 603.116/RS, Rel. Min. Dias Toffoli, julgado em 19/08/2024 (Repercussão Geral – Tema 703) (Info 1146).


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