Dizer o Direito

domingo, 25 de agosto de 2024

Se um hóspede discute e mata o outro, o dono do hotel ou pousada também será condenado a pagar indenização aos parentes da vítima?

Imagine a seguinte situação hipotética:

João e sua esposa Regina decidem passar o fim do ano em um balneário chamado “Águas Claras” (Carlos da Silva ME), localizado em uma pequena cidade do interior.

O balneário oferecia chalés para alugar, restaurante, piscina, campo e um ambiente tranquilo para relaxar.

Na noite de Ano Novo, João e Regina estavam celebrando com outros hóspedes em uma área comum do balneário.

Pedro, outro hóspede, já estava bastante alcoolizado, se aproxima de João e insiste para que ele lhe venda algumas cervejas que estava bebendo. João recusa, e uma discussão acalorada começa. De repente, Pedro, em um ato impulsivo e descontrolado, saca uma arma de fogo e dispara contra João, causando sua morte.

Regina ingressou com ação de indenização por danos morais contra Pedro (o autor do homicídio) e contra Carlos da Silva, dono da pousada.

A autora alegou que o estabelecimento falhou em garantir a segurança de seus hóspedes.

O juiz condenou Pedro a pagar a indenização, mas afirmou que o estabelecimento de hospedagem não tinha responsabilidade civil no caso. A sentença foi mantida pelo Tribunal de Justiça.

Inconformada, a autora interpôs recurso especial pedindo que Carlos, o dono da pousada, também fosse condenada a pagar a indenização.

 

O que decidiu o STJ? O estabelecimento de hospedagem responde civilmente por danos morais em razão de homicídio praticado em suas dependências por visitante hospedado no local?

NÃO.

O art. 932 do CC consagra hipóteses de responsabilidade civil por atos praticados por terceiros, dentre as quais há a previsão dos donos de estabelecimentos onde se alberga por dinheiro:

Art. 932. São também responsáveis pela reparação civil:

(...)

IV - os donos de hotéis, hospedarias, casas ou estabelecimentos onde se albergue por dinheiro, mesmo para fins de educação, pelos seus hóspedes, moradores e educandos;

 

Essa regra tem origem romana e foi redigida em uma época em que os proprietários das hospedarias eram, de algum modo, obrigados a referendar os seus hóspedes.

A propósito, MARIA HELENA DINIZ lembra que:

“(...) Isto é assim porque o hoteleiro, além de assumir o risco de sua atividade, tem não só a obrigação de zelar pelo comportamento de seus hóspedes, estabelecendo normas regulamentares sobre a conduta ou atividade de cada um deles em relação aos demais, mas também o dever de adotar certa disciplina na escolha dos hóspedes que admitir em seu hotel.” (Curso de direito civil brasileiro: responsabilidade civil. v.7, São Paulo: Saraiva, 2023, p. 209).

 

Na atualidade, contudo, o alcance total dessa norma merece ser repensado, principalmente após a vigência do Código de Defesa do Consumidor, que estabeleceu a responsabilidade objetiva direta para todos os fornecedores de serviços, em relação aos danos que tenham por causa o fato do serviço, e não, o fato de outrem.

Os donos de hospedarias continuam sendo responsáveis pela segurança física e patrimonial dos seus hóspedes, no entanto, a extensão dessa obrigação deve depender do contexto específico de cada caso, sob pena de se admitir a responsabilidade pelo risco integral deste ofício.

A teoria do risco integral é adotada no ordenamento jurídico brasileiro apenas em casos excepcionais, de atividades potencialmente perigosas normalmente desenvolvidas, ou seja, aquelas que apresentam probabilidade elevada de ocasionar danos a terceiros, como, por exemplo, um dano nuclear, ou dano ambiental.

Estabelecer, de forma objetiva, que o estabelecimento de hospedagem seja obrigado a indenizar pelo simples fato de a atividade econômica ser voltada ao serviço hoteleiro é incompatível com o nosso sistema, pois a hotelaria não se enquadra como “atividade perigosa”.

Como explicam CRISTIANO CHAVES DE FARIAS, FELIPE PEIXOTO BRAGA NETTO e NELSON ROSENVALD (...) apenas quem tem condições de evitar um risco ou mitigá-lo de forma eficiente deverá suportá-lo caso ocorra. (Novo Tratado de Responsabilidade Civil. São Paulo, Atlas, 2015, p. 521).

O risco assumido – ou o risco que o empresário cria no desenvolvimento de sua atividade – é somente aquele que, por sua natureza, decorra do exercício do negócio, isto é, o risco que dimana dos meios normais de exercício do seu mister.

Logo, quando o acontecimento é estranho e externo, sem vínculo com o negócio em si, não é possível a responsabilização.

No caso concreto, não se pode considerar que a tutela dos hóspedes quanto ao risco de lesão física por eventuais condutas advindas de outro hóspede seja uma atividade “própria” de um parque aquático que faz locação de chalés e cabanas.

Nota-se, inclusive, que, no caso concreto, o Balneário adotava critérios de gestão para desestimular atitudes criminosas, como a contratação de uma equipe de segurança que fazia rondas no local do parque.

O dever de vigilância e de segurança imputável ao dono de hotel não significa exigir que ele tenha total controle sobre as ações de seus respectivos hóspedes, até porque esse dever de vigilância extremo é inviável.

Ao contrário do que alegou a autora, a presença de mais seguranças e monitoramento no local não seriam capazes de evitar o dano, pois não é possível que existe um segurança para cada hóspede.

A atividade desenvolvida pelo Balneário não criou o risco. O homicídio ocorreu por conta de uma conduta imprevisível e despropositada de um dos hóspedes que ceifou a vida da vítima por conta de uma discussão envolvendo cerveja, ou seja, algo totalmente alheia ao negócio de hospedagem. O estabelecimento não passou de mera ocasião ou palco para o evento danoso.

Assim, muito embora se trate de uma responsabilidade imposta pelo Código Civil, de natureza objetiva e indireta, balizada na teoria do risco, a sua aplicação não pode ser automática, mas sim, contextualizada, para averiguar se o dano está, de fato, relacionado com os riscos inerentes à atividade realizada pelo balneário. Caso contrário, até que ponto o seu dono seria garantidor das consequências danosas dos atos dos seus hóspedes?

Afinal, não se pode perder de vista que o instituto da responsabilidade civil possui como pressupostos gerais um descumprimento obrigacional, um dano e um nexo de causalidade entre ele e a ação.

Mesmo o moderno princípio da imputação civil dos danos exige essa relação causal. A teoria objetiva permite a responsabilização do fornecedor sem culpa, mas não sem uma causa.

A jurisprudência do STJ sustenta que o nexo de causalidade deve ser avaliado conforme a teoria da causalidade adequada, que identifica como causa o antecedente que, de acordo com a experiência comum, teria a possibilidade e a probabilidade de produzir o resultado.

Destaca-se que a própria doutrina é cautelosa quanto a aplicação total e irrestrita da responsabilidade fundada no art. 932, IV do CC, incitando a aferição do nexo causal, caso a caso.

A título exemplificativo, citam-se os ensinamentos de PABLO STOLZE GAGLIANO:

“(...) Pode até parecer engraçado, mas, desde o sistema legal anterior, os donos de hotéis, hospedarias e outros estabelecimentos onde se albergue por dinheiro (albergues, motéis etc.) são solidariamente responsáveis pelos danos causados a terceiros por seus hóspedes ou moradores.

Claro que se o dano resulta da atuação de preposto do estabelecimento, a responsabilidade civil do seu titular é indiscutível.

O problema, entretanto, ganha proporções, se o dano é causado por outro hóspede, caso em que somente a análise do caso concreto, com a aferição da atuação causal do dono do hotel, poderá autorizar a conclusão por sua responsabilidade.” (Novo Curso de Direito Civil. Vol. III, 21ª ed. São Paulo: Saraiva, 2023, p. 97).

 

No caso concreto, o evento danoso se caracterizou como fortuito externo, pois o dever de segurança não estaria inserido nos riscos inerentes à atividade do Balneário, não havendo de se falar em falha na prestação de serviço.

A atuação efetiva e ostensiva de segurança, com revista pessoal e de bagagem foge da essência da atividade de lazer a que se destina o estabelecimento em questão.

O incidente certamente ocorreu por fatores absolutamente estranhos e desvinculados da atividade do Balneário.

Se nem o próprio Estado, titular do Poder de Polícia, tem condição de oferecer segurança absoluta aos cidadãos, como se poderia exigi-la de um particular?

 

Em suma:

Dono de estabelecimento de hospedagem onerosa de visitantes não responde civilmente por danos morais em razão de homicídio praticado em suas dependências por visitante hospedado no local. 

STJ. 3ª Turma. REsp 2.114.079-RS, Rel. Min. Nancy Andrighi, Rel. para acórdão Min. Moura Ribeiro, julgado em 23/4/2024 (Info 20 – Edição Extraordinária).


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