Imagine a seguinte situação adaptada:
Lucas nasceu prematuro, com 29
semanas de idade gestacional e foi encaminhado para a UTI Neonatal de um
hospital público, onde permaneceu por 16 dias em uma incubadora.
A criança precisou de tratamento
intensivo com ventilação mecânica e antibioticoterapia, diante da gravidade de
sua condição de saúde, até receber alta médica.
Aos nove meses de vida, Lucas
apresentou quadro de febre intensa, tosse seca e vômitos. Os pais o levaram
para a Unidade de Pronto Atendimento 24h (UPA), onde ele recebeu, inicialmente,
a classificação de risco muito urgente. Contudo, o infante não foi internado e
apenas lhe foi prescrito medicamento sem efeito antibiótico ou
anti-inflamatório.
Em seguida, quando estava em
casa, o bebê continuou a apresentar os mesmos sintomas e, novamente, precisou
de atendimento médico de emergência. Retornando ao hospital, a equipe de
profissionais diagnosticou o caso como pneumonia bacteriana, prescreveu tratamento
com medicamento antibiótico e concedeu novamente alta médica.
Na residência da família, o bebê
dormiu na madrugada do dia seguinte, mas não acordou novamente.
Ação de indenização
Os pais da criança ingressaram
com ação de indenização por danos morais contra o Distrito Federal.
O juiz julgou o pedido procedente
e condenou o Distrito Federal ao pagamento de indenização.
Ocorre que o Tribunal de Justiça
deu provimento à apelação da Fazenda Pública para afastar a indenização, nos
seguintes termos:
O
Ministério da Saúde orienta a internação para crianças portadoras de pneumonia
com histórico de doença de base debilitante, como a filha dos autores, que
possuía displasia broncopulmonar (doença pulmonar crônica do prematuro).
Mesmo
assim, não se pode presumir que a ausência de internação, por si só, tenha sido
determinante para o falecimento da criança.
O
garoto foi devidamente atendido, diagnosticado e teve alta após ser medicado.
Conforme os registros da listagem de atendimento, ele estava em regular estado
geral, sem problemas de respiração (eupneico), hidratado, corado e os seus
hemogramas não apresentaram alterações significativas. A conduta era,
efetivamente, ante o diagnóstico, a antibioticoterapia.
Desse
modo, não é possível dizer que a morte da criança foi decorrente da ausência de
internação.
Diante
dessas circunstâncias, não se vislumbram falhas da equipe médica ou nexo de
causalidade entre as condutas empregadas e os danos relatados, não havendo que
se falar em indenização.
Inconformados com o acórdão proferido pelo TJ, os pais da
criança interpuseram recurso especial.
Para o STJ, existe o dever de indenizar neste caso?
SIM.
A equipe médica não seguiu a
orientação do Ministério da Saúde. Isso porque em casos como esse, em que a
criança nasceu prematura e com histórico de displasia broncopulmonar, a
orientação é pela internação.
Apesar de o Tribunal de Justiça
ter reconhecido expressamente essa circunstância, a Corte estadual afirmou que os
autores não conseguiram comprovar que a falta dessa internação foi a causa da
morte da criança. Assim, os autores não teriam conseguido comprovar a falha no
serviço ou nexo de causalidade entre as condutas empregadas no atendimento
médico e a morte da criança.
Ao julgar dessa maneira, o Tribunal de Justiça violou o art.
373, § 1º, do CPC:
Art. 373 (...)
§ 1º Nos casos previstos em lei
ou diante de peculiaridades da causa relacionadas à impossibilidade ou à
excessiva dificuldade de cumprir o encargo nos termos do caput ou à maior
facilidade de obtenção da prova do fato contrário, poderá o juiz atribuir o
ônus da prova de modo diverso, desde que o faça por decisão fundamentada, caso
em que deverá dar à parte a oportunidade de se desincumbir do ônus que lhe foi
atribuído.
Isso porque estamos diante de um
caso no qual há hipossuficiência probatória por parte dos autores. Seria
impossível ou extremamente difícil que eles conseguissem provar que a falta de
internação foi a causa da morte. Logo, nessa situação, deve-se reconhecer a
redistribuição do ônus da prova. Nesse sentido:
É cabível inversão do ônus da prova nas ações que tratam de
responsabilidade civil por erro médico, quando configurada situação de
hipossuficiência técnica da parte autora.
STJ. 1ª Turma. AgInt no AREsp 1.723.285/DF, Rel. Min. Sérgio
Kukina, julgado em 23/2/2021.
Assim, o ente público é quem possuía
o ônus de comprovar que a morte do bebê não foi fruto da ausência de internação
no momento em que se detectou a pneumonia bacteriana, especialmente quando
considerada a orientação assentada pelo Ministério da Saúde sobre a necessidade
de internação das crianças portadoras de doença de base debilitante (displasia
broncopulmonar), perfil no qual se encaixava o pequeno paciente.
Com base na teoria da perda de
uma chance, se o infante, diagnosticado com pneumonia bacteriana pela equipe
médica, tivesse sido oportunamente internado na unidade hospitalar, sua morte
poderia ter sido evitada, acaso providenciado o monitoramento médico de que
necessitava em razão de sua grave condição de saúde.
A teoria da perda de uma chance pode ser aplicada no âmbito
da responsabilidade civil por erro na prestação de serviços médico-hospitalares,
conforme destaca a doutrina: YAMASHITA, Hugo Tubone; Duarte Filho, Marco
Antonio Savazzo. Indenização por perda de chance. Revista de Direito Privado.
vol. 117. ano 24. p. 161-182. São Paulo: Ed. RT, jul./set. 2023.)
No mesmo caminho da doutrina, o
STJ possui julgados aplicando a teoria da perda de uma chance em caso de erro
médico:
À luz da teoria da perda de uma chance, o liame causal a ser
demonstrado é aquele existente entre a conduta ilícita e a chance perdida,
sendo desnecessário que esse nexo se estabeleça diretamente com o dano final.
No erro médico, o nexo causal que autoriza a responsabilidade
pela aplicação da teoria da perda de uma chance decorre da relação entre a
conduta do médico, omissiva ou comissiva, e o comprometimento real da
possibilidade de um diagnóstico e tratamento da patologia do paciente.
STJ. 3ª Turma. AgInt no REsp 1.923.907/PR, Rel. Min. Paulo de
Tarso Sanseverino, julgado em 20/3/2023.
Em suma:
Aplica-se a responsabilidade civil pela perda de uma
chance no caso de atuação dos profissionais médicos que não observam orientação
do Ministério da Saúde, retirando do paciente uma chance concreta e real de ter
um diagnóstico correto e de alçar as consequências normais que dele se poderia
esperar.
STJ. 1ª
Turma. REsp 1.985.977-DF, Rel. Min. Sérgio Kukina, julgado em 18/6/2024 (Info
19 – Edição Extraordinária).