Dizer o Direito

sexta-feira, 16 de agosto de 2024

Se o médico do SUS não observou a orientação do Ministério da Saúde no atendimento do paciente e ele morreu, é possível a condenação da Fazenda Pública aplicando-se a teoria da perda de uma chance

Imagine a seguinte situação adaptada:

Lucas nasceu prematuro, com 29 semanas de idade gestacional e foi encaminhado para a UTI Neonatal de um hospital público, onde permaneceu por 16 dias em uma incubadora.

A criança precisou de tratamento intensivo com ventilação mecânica e antibioticoterapia, diante da gravidade de sua condição de saúde, até receber alta médica.

Aos nove meses de vida, Lucas apresentou quadro de febre intensa, tosse seca e vômitos. Os pais o levaram para a Unidade de Pronto Atendimento 24h (UPA), onde ele recebeu, inicialmente, a classificação de risco muito urgente. Contudo, o infante não foi internado e apenas lhe foi prescrito medicamento sem efeito antibiótico ou anti-inflamatório.

Em seguida, quando estava em casa, o bebê continuou a apresentar os mesmos sintomas e, novamente, precisou de atendimento médico de emergência. Retornando ao hospital, a equipe de profissionais diagnosticou o caso como pneumonia bacteriana, prescreveu tratamento com medicamento antibiótico e concedeu novamente alta médica.

Na residência da família, o bebê dormiu na madrugada do dia seguinte, mas não acordou novamente.

 

Ação de indenização

Os pais da criança ingressaram com ação de indenização por danos morais contra o Distrito Federal.

O juiz julgou o pedido procedente e condenou o Distrito Federal ao pagamento de indenização.

Ocorre que o Tribunal de Justiça deu provimento à apelação da Fazenda Pública para afastar a indenização, nos seguintes termos:

 

O Ministério da Saúde orienta a internação para crianças portadoras de pneumonia com histórico de doença de base debilitante, como a filha dos autores, que possuía displasia broncopulmonar (doença pulmonar crônica do prematuro).

Mesmo assim, não se pode presumir que a ausência de internação, por si só, tenha sido determinante para o falecimento da criança.

O garoto foi devidamente atendido, diagnosticado e teve alta após ser medicado. Conforme os registros da listagem de atendimento, ele estava em regular estado geral, sem problemas de respiração (eupneico), hidratado, corado e os seus hemogramas não apresentaram alterações significativas. A conduta era, efetivamente, ante o diagnóstico, a antibioticoterapia.

Desse modo, não é possível dizer que a morte da criança foi decorrente da ausência de internação.

Diante dessas circunstâncias, não se vislumbram falhas da equipe médica ou nexo de causalidade entre as condutas empregadas e os danos relatados, não havendo que se falar em indenização.

 

Inconformados com o acórdão proferido pelo TJ, os pais da criança interpuseram recurso especial.

 

Para o STJ, existe o dever de indenizar neste caso?

SIM.

A equipe médica não seguiu a orientação do Ministério da Saúde. Isso porque em casos como esse, em que a criança nasceu prematura e com histórico de displasia broncopulmonar, a orientação é pela internação.

Apesar de o Tribunal de Justiça ter reconhecido expressamente essa circunstância, a Corte estadual afirmou que os autores não conseguiram comprovar que a falta dessa internação foi a causa da morte da criança. Assim, os autores não teriam conseguido comprovar a falha no serviço ou nexo de causalidade entre as condutas empregadas no atendimento médico e a morte da criança.

Ao julgar dessa maneira, o Tribunal de Justiça violou o art. 373, § 1º, do CPC:

Art. 373 (...)

§ 1º Nos casos previstos em lei ou diante de peculiaridades da causa relacionadas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o encargo nos termos do caput ou à maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário, poderá o juiz atribuir o ônus da prova de modo diverso, desde que o faça por decisão fundamentada, caso em que deverá dar à parte a oportunidade de se desincumbir do ônus que lhe foi atribuído.

 

Isso porque estamos diante de um caso no qual há hipossuficiência probatória por parte dos autores. Seria impossível ou extremamente difícil que eles conseguissem provar que a falta de internação foi a causa da morte. Logo, nessa situação, deve-se reconhecer a redistribuição do ônus da prova. Nesse sentido:

É cabível inversão do ônus da prova nas ações que tratam de responsabilidade civil por erro médico, quando configurada situação de hipossuficiência técnica da parte autora.

STJ. 1ª Turma. AgInt no AREsp 1.723.285/DF, Rel. Min. Sérgio Kukina, julgado em 23/2/2021.

 

Assim, o ente público é quem possuía o ônus de comprovar que a morte do bebê não foi fruto da ausência de internação no momento em que se detectou a pneumonia bacteriana, especialmente quando considerada a orientação assentada pelo Ministério da Saúde sobre a necessidade de internação das crianças portadoras de doença de base debilitante (displasia broncopulmonar), perfil no qual se encaixava o pequeno paciente.

Com base na teoria da perda de uma chance, se o infante, diagnosticado com pneumonia bacteriana pela equipe médica, tivesse sido oportunamente internado na unidade hospitalar, sua morte poderia ter sido evitada, acaso providenciado o monitoramento médico de que necessitava em razão de sua grave condição de saúde.

A teoria da perda de uma chance pode ser aplicada no âmbito da responsabilidade civil por erro na prestação de serviços médico-hospitalares, conforme destaca a doutrina: YAMASHITA, Hugo Tubone; Duarte Filho, Marco Antonio Savazzo. Indenização por perda de chance. Revista de Direito Privado. vol. 117. ano 24. p. 161-182. São Paulo: Ed. RT, jul./set. 2023.)

No mesmo caminho da doutrina, o STJ possui julgados aplicando a teoria da perda de uma chance em caso de erro médico:

À luz da teoria da perda de uma chance, o liame causal a ser demonstrado é aquele existente entre a conduta ilícita e a chance perdida, sendo desnecessário que esse nexo se estabeleça diretamente com o dano final.

No erro médico, o nexo causal que autoriza a responsabilidade pela aplicação da teoria da perda de uma chance decorre da relação entre a conduta do médico, omissiva ou comissiva, e o comprometimento real da possibilidade de um diagnóstico e tratamento da patologia do paciente.

STJ. 3ª Turma. AgInt no REsp 1.923.907/PR, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, julgado em 20/3/2023.

 

Em suma:

Aplica-se a responsabilidade civil pela perda de uma chance no caso de atuação dos profissionais médicos que não observam orientação do Ministério da Saúde, retirando do paciente uma chance concreta e real de ter um diagnóstico correto e de alçar as consequências normais que dele se poderia esperar. 

STJ. 1ª Turma. REsp 1.985.977-DF, Rel. Min. Sérgio Kukina, julgado em 18/6/2024 (Info 19 – Edição Extraordinária).


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