Dizer o Direito

quinta-feira, 15 de agosto de 2024

O princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica, previsto no art. 5º, XL, da CF/88, também se aplica para o direito administrativo sancionador?

Imagine a seguinte situação hipotética:

No dia 07 de junho de 2016, um veículo da Transportadora Alfa Ltda. foi autuado por ter dificultado a fiscalização que seria exercida na carga. Trata-se de infração administrativa que, na época, era prevista no art. 36, I, da Resolução nº 4.799/2015*, da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT):

Art. 36. Constituem infrações, quando:

I - o transportador, inscrito ou não no RNTRC, evadir, obstruir ou, de qualquer forma, dificultar a fiscalização durante o transporte rodoviário de cargas: multa de R$ 5.000,00 (cinco mil reais);

 

A Transportadora ingressou com ação anulatória em face da ANTT pedindo a anulação do auto de infração em virtude de vícios formais.

Durante o curso do processo judicial, já depois do despacho de saneamento, a autora peticionou nos autos informando que que havia entrado em vigor a Resolução ANTT nº 5.847/2019, que tinha alterado a redação do art. 36, I, da Resolução 4.799/2015, reduzindo o valor da multa para R$ 550,00.

Diante disso, a autora defendeu que, se fosse mantida a autuação, o valor da multa deveria ser reduzido para R$ 550,00, em atenção ao princípio da retroatividade da lei mais benéfica.

 

A autora tem razão, segundo a posição atual da 1ª Turma do STJ?

NÃO.

 

Posição antiga do STJ:

O art. 5º, XL, da CF/88 prevê que:

Art. 5º (...)

XL - a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu;

 

O STJ afirmava que esse art. 5º, XL, da Constituição da República também se aplicava ao Direito Sancionatório, ou seja, a lei mais benéfica sempre retroagia.

O STJ argumentava o seguinte: ora, se até no caso de sanção penal, que é a mais grave das punições, a Constituição determina a retroação da lei mais benéfica, com maior razão a lei nova mais benéfica também deverá retroagir para o caso de sanções administrativas (que são menos graves que crimes).

Por este motivo, o STJ, em vários desses casos envolvendo a ANTT, afirmou que era possível a redução do valor da multa administrativa aplicada porque houve a superveniência de norma que diminuiu a infração.

Veja recente julgado nesse sentido que foi explicado em Informativo:

O art. 5º, XL, da Constituição da República prevê a possibilidade de retroatividade da lei penal, sendo cabível extrair-se do dispositivo constitucional princípio implícito do Direito Sancionatório, segundo o qual a lei mais benéfica retroage no caso de sanções menos graves, como a administrativa.

STJ. 1ª Turma. AgInt no REsp 2.024.133-ES, Rel. Min. Regina Helena Costa, julgado em 13/3/2023 (Info 769).

 

* apenas a título de informação, a Resolução nº 4.799/2015 não está, atualmente, em vigor, tendo sido revogada pela Resolução DC/ANTT nº 5982, de 23/06/2022.

 

Nova posição da 1ª Turma do STJ:

Conforme já explicado acima, durante longos anos, o STJ afirmou que “que a retroação de lei mais benéfica é um princípio geral de Direito Sancionatório”.

Ocorre que o STF decidiu de forma contrária.

Ao julgar o Tema 1.199, envolvendo as mudanças na Lei de Improbidade Administrativa, o STF afirmou que “a retroatividade das leis é hipótese excepcional no ordenamento jurídico, sob pena de ferimento à segurança e estabilidade jurídicas; e, dessa maneira, inexistindo disposição expressa na Lei 14.230/2021 [que reformou a Lei de Improbidade Administrativa], não há como afastar o princípio do tempus regit actum” (STF. Plenário. ARE 843989/PR, Rel. Min. Alexandre de Moraes, julgado em 18/8/2022 (Repercussão Geral – Tema 1199) (Info 1065).

O Ministro Alexandre de Moraes, em seu voto no Tema 1.199, afirmou que:

• o princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica, previsto no art. 5º, XL, da CF/88, não tem aplicação automática para a responsabilidade por atos ilícitos civis de improbidade administrativa, por ausência de expressa previsão legal;

• se fosse aplicada retroativamente as mudanças haveria um enfraquecimento do direito administrativo sancionador;

• a regra do art. 5º, XL, da CF/88 existe em homenagem ao direito à liberdade (princípio do favor libertatis), fundamento inexistente no direito administrativo sancionador.

• no âmbito da improbidade administrativa prevalece o princípio do tempus regit actum. A retroatividade da lei penal mais benéfica é uma exceção que, como tal, deve ser interpretada restritivamente, prestigiando-se a regra geral da irretroatividade da lei e a preservação dos atos jurídicos perfeitos, especialmente porque, no âmbito da jurisdição civil, prevalece o princípio tempus regit actum.

 

Esse entendimento do STF, manifestado no Tema 1.199, é um precedente obrigatório e vem sendo aplicado pelo STJ quanto aos processos envolvendo improbidade administrativa.

Logo, deve-se aplicar também esse entendimento para os casos envolvendo mera redução do valor de multa administrativa.

Diante desses argumentos, a 1ª Turma do STJ decidiu superar seu entendimento anterior.

O que prevalece agora na 1ª Turma do STJ é que a penalidade administrativa deve se basear pelo princípio do tempus regit actum, salvo se houver previsão autorizativa de aplicação do normativo mais benéfico posterior às condutas pretéritas.

Assim, a penalidade aplicada conforme o ato normativo vigente à época da infração constitui ato jurídico perfeito, não tendo, inclusive, eventual e posterior discussão na esfera judicial o condão de afastar a perfeição daquele ato, consubstanciada na esfera administrativa, com o encerramento de seu ciclo de formação.

 

Em suma:

A penalidade administrativa deve se basear pelo princípio do tempus regit actum, salvo se houver previsão expressa de retroatividade da lei mais benéfica. 

STJ. 1ª Turma. REsp 2.103.140-ES, Rel. Min. Gurgel de Faria, julgado em 4/6/2024 (Info 19 – Edição Extraordinária).

 

2ª Turma do STJ

Até o fechamento desses comentários, a 2ª Turma do STJ continuava ainda adotando o seu entendimento tradicional: AgInt no REsp n. 2.111.400/ES, Rel. Min. Francisco Falcão, julgado em 10/6/2024.

É provável, contudo, que haja uma mudança em breve.


Dizer o Direito!