Imagine a seguinte situação hipotética:
Desde a década de 80, a empresa Alfa Ltda era proprietária
de um imóvel (um casarão do século XIX) localizado no centro histórico da
cidade.
Em 2000, o Município declarou esse casarão como sendo um
imóvel de interesse público em razão de sua relevância arquitetônica, histórica
e cultural para a cidade.
Durante anos, a empresa Alfa negligenciou a manutenção do imóvel,
permitindo que ele se deteriorasse.
Em 2008, o Ministério Público ingressou com ação civil
pública contra a empresa Alfa (então proprietária do imóvel) e o Município,
alegando que os réus não cumpriram suas responsabilidades para a preservação
desse bem de interesse histórico e cultural, gerando danos ao meio ambiente
cultural da cidade.
Na ACP, o Ministério Público pediu que a empresa e o
Município fossem condenados a:
1) reparar o dano ambiental causado no bem (reparar o dano
ao meio ambiente cultural);
2) pagar indenização por danos morais coletivos.
Em 2012, antes que o processo fosse sentenciado, o Município
desapropriou o imóvel com o objetivo de implementar, no local, um
projeto de revitalização do centro histórico.
Em 2014, o juiz julgou os pedidos da ACP procedentes
condenando tanto a empresa como o Município a:
i) reparar o dano ambiental no bem desapropriado; e a
ii) pagar a indenização por dano moral coletivo.
A empresa recorreu alegando que, como o bem foi
desapropriado, ela não teria mais legitimidade passiva para figurar na lide e
muito menos para ser condenada, recaindo a responsabilidade agora unicamente
sobre o Município.
O Ministério Público apresentou contrarrazões alegando que o
argumento da empresa não poderia ser acolhido considerando que contraria a
Súmula 623 do STJ e o Tema Repetitivo 1.204:
Súmula 623-STJ: As obrigações ambientais possuem natureza
propter rem, sendo admissível cobrá-las do proprietário ou possuidor atual e/ou
dos anteriores, à escolha do credor.
As obrigações ambientais possuem natureza propter rem, sendo
possível exigi-las, à escolha do credor, do proprietário ou possuidor atual, de
qualquer dos anteriores, ou de ambos, ficando isento de responsabilidade o
alienante cujo direito real tenha cessado antes da causação do dano, desde que
para ele não tenha concorrido, direta ou indiretamente.
STJ. 1ª Seção. REsps 1.953.359-SP e 1.962.089-MS, Rel. Min.
Assusete Magalhães, julgados em 13/9/2023 (Recurso Repetitivo – Tema 1204)
(Info 787).
A discussão chegou até o STJ. O STJ concordou com os
argumentos da empresa?
Em parte.
Não se aplica a Súmula 623 e o Tema 1.204
Inicialmente, o STJ afirmou que, no caso concreto, não se
aplica a Súmula 623 do STJ nem o Tema repetitivo 1.204. Isso porque aqui existe
um distinguishing: o bem não foi transferido de forma voluntária pela empresa
(não foi vendido, doado etc.). O bem foi objeto de desapropriação.
A Súmula 623 e o Tema 1.204 foram baseados em casos nos
quais houve a aquisição derivada da propriedade (transferência voluntária).
Aqui, no entanto, se está diante de aquisição originária por desapropriação,
que tem contornos próprios e distintos.
Empresa não tem que pagar pela reparação do dano
ambiental, já que esse valor do passivo ambiental já foi abatido do valor que
ela recebeu a título de indenização
O art. 31 do Decreto-Lei nº 3.365/1941, que disciplina a
desapropriação por utilidade pública, preconiza:
Art. 31. Ficam subrogados no
preço quaisquer onus ou direitos que recaiam sobre o bem expropriado.
Isso implica dizer que o ônus de reparação que recaía sobre
o bem (de natureza histórico-cultural) expropriado já foi considerado no preço
(justa indenização) que foi desembolsado pelo Município para a aquisição do
imóvel, isto é, a Fazenda municipal já descontou o passivo ambiental do valor
pago.
Explicando melhor: no cálculo do valor do bem desapropriado,
a perícia já considerou (ou deveria ter considerado) os gastos ambientais que o
Município teria para recuperar o bem. Esse valor foi levado em consideração
para definir o preço a ser pago à empresa. Ex: imaginemos que o bem valesse R$
1 milhão. A perícia, contudo, calculou que a sua reparação ambiental custaria R$
200 mil. Logo, o preço pago foi, hipoteticamente, R$ 800 mil.
Se a empresa (parte expropriada) fosse condenada a pagar
pela reparação do imóvel desapropriado, isso significaria “bis in idem”, uma
vez que o particular experimentaria duplo prejuízo pelo mesmo fato: 1) recebeu indenização
menor (descontada) em razão do passivo ambiental; e 2) mesmo assim, ainda foi
condenado a pagar esse passivo ambiental novamente na ação civil pública.
Desse modo, embora a obrigação de reparação ambiental
permaneça de natureza propter rem, competirá ao ente expropriante
atendê-la (a obrigação), pois o valor relativo ao passivo ambiental já deve ter
sido excluído da indenização.
Empresa deve ser pagar danos morais coletivos
Por outro lado, é possível reconhecer a legitimidade passiva
do particular em relação ao dever, em tese, de reparar o suposto dano moral
coletivo, pois, nesse caso, a obrigação ou o ônus não estão relacionados ao
próprio bem, inexistindo sub-rogação no preço.
O dano moral, nessa modalidade, é experimentado pela
coletividade em caráter difuso, de modo que o dever de indenizar é
completamente independente do destino do imóvel expropriado.
Em suma:
O expropriado não tem o dever de pagar pela reparação
do dano ambiental no bem desapropriado, podendo responder, no entanto, por
eventual dano moral coletivo.
STJ. 1ª
Turma. AREsp 1.886.951-RJ, Rel. Min. Gurgel de Faria, julgado em 11/6/2024
(Info 818).