Súmula 670-STJ: Nos crimes sexuais
cometidos contra a vítima em situação de vulnerabilidade temporária, em que ela
recupera suas capacidades físicas e mentais e o pleno discernimento para
decidir acerca da persecução penal de seu ofensor, a ação penal é pública
condicionada à representação se o fato houver sido praticado na vigência da
redação conferida ao art. 225 do Código Penal pela Lei n. 12.015, de 2009.
STJ. 3ª
Seção. Aprovada em 20/06/2024, DJe 24/06/2024 (Info 817).
Imagine a seguinte situação
hipotética (ocorrida na época em que vigorava o art. 225 do CP com a redação
dada pela Lei nº 12.015/2009):
Em 2012, “A”, mulher de 20 anos,
sem qualquer enfermidade ou deficiência mental, estava em uma festa e acabou
bebendo demais, ficando completamente embriagada.
“L”, sob o pretexto de dar uma
carona para “A”, levou a moça para um motel e com ela praticou conjunção
carnal.
Vale ressaltar que “A” estava tão
bêbada que não podia oferecer qualquer tipo de resistência ao ato sexual.
“A” não ofereceu representação contra “L”.
O Ministério
Público denunciou o agente por estupro de vulnerável (art. 217-A, § 1º)
alegando que a vítima, em virtude da embriaguez, não podia oferecer
resistência:
Estupro de vulnerável
Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou
praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos:
Pena - reclusão, de 8 (oito) a 15
(quinze) anos.
§ 1º Incorre na mesma pena quem
pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou
deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato,
ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência.
(...)
No interrogatório, ocorrido mais
de seis meses após a autoria ter sido descoberta, o acusado confessou a prática
do delito.
Em memoriais, o MP pediu a
condenação do réu.
A defesa, por
seu turno, alegou uma única tese: o delito praticado pelo réu é crime
de ação penal pública CONDICIONADA à representação. Veja a redação do
art. 225 do CP antes da
Lei nº 13.718/2018:
Art. 225. Nos crimes definidos nos
Capítulos I e II deste Título, procede-se mediante ação penal pública
condicionada à representação.
Parágrafo único. Procede-se,
entretanto, mediante ação penal pública incondicionada se a vítima é
menor de 18 (dezoito) anos ou pessoa vulnerável.
Obs: essa é a redação dada pela Lei
nº 12.015/2009.
Obs2: posteriormente, houve uma
nova mudança realizada pela Lei nº 13.718/2018.
Abrindo um parêntese:
O art. 225 do
CP teve três redações diferentes:
Redação
original |
Redação dada
pela Lei nº 12.015/2009 |
Redação dada
pela Lei nº
13.718/2018 (atualmente) |
Art.
225. Nos crimes definidos nos capítulos anteriores, somente se procede
mediante queixa. §
1º Procede-se, entretanto, mediante ação pública: I
- se a vítima ou seus pais não podem prover às despesas do processo, sem
privar-se de recursos indispensáveis à manutenção própria ou da família; II
- se o crime é cometido com abuso do pátrio poder, ou da qualidade de
padrasto, tutor ou curador. §
2º - No caso do nº I do parágrafo anterior, a ação do Ministério Público
depende de representação. |
Art.
225. Nos crimes definidos nos Capítulos I e II deste Título, procede-se
mediante ação penal pública condicionada à representação. Parágrafo
único. Procede-se, entretanto, mediante ação penal pública incondicionada se
a vítima é menor de 18 (dezoito) anos ou pessoa vulnerável. |
Art.
225. Nos crimes definidos nos Capítulos I e II deste Título, procede-se
mediante ação penal pública incondicionada. |
Regra:
ação penal privada. Exceções: a)
se a vítima ou seus pais não tivessem dinheiro para o processo: ação pública
condicionada à representação. b)
se o crime era cometido com abuso do poder familiar, ou da qualidade de
padrasto, tutor ou curador: ação pública incondicionada. c)
se da violência resultasse lesão grave ou morte da vítima: ação pública
incondicionada. d)
se o crime de estupro fosse praticado mediante o emprego de violência real:
ação pública incondicionada. |
Regra:
ação penal pública condicionada à representação. Exceções: a)
Vítima menor de 18 anos: incondicionada. b)
Vítima vulnerável: incondicionada. c)
Se foi praticado mediante violência real: incondicionada (Súm. 608-STF). d)
Se resultou lesão corporal grave ou morte: polêmica, mas prevalecia que
deveria ser aplicado o mesmo raciocínio da Súmula 608-STF. |
Ação
pública incondicionada (sempre). Todos
os crimes contra a dignidade sexual são de ação pública incondicionada. Não
há exceções! |
Voltando ao caso concreto:
Como não houve representação no prazo de 6 meses (art. 38 do
CPP), ocorreu a decadência, que é causa de extinção da punibilidade (art. 107,
IV, do CP):
Art. 38. Salvo disposição em contrário, o ofendido, ou
seu representante legal, decairá no direito de queixa ou de representação, se
não o exercer dentro do prazo de seis meses, contado do dia em que vier a saber
quem é o autor do crime, ou, no caso do art. 29, do dia em que se esgotar o
prazo para o oferecimento da denúncia.
Segundo a tese da defesa:
• o estupro de vulnerável somente
é crime de ação penal pública incondicionada quando a vulnerabilidade
for permanente (ex: doente mental);
• se a vulnerabilidade for
temporária (ex: decorrente de embriaguez), a ação penal seria
condicionada à representação.
Assim, quando o art. 225,
parágrafo único do CP (com redação dada pela Lei nº 12.015/2009) fala em
“pessoa vulnerável”, ele está se referindo à pessoa que é vulnerável
(vulnerabilidade permanente) e não à pessoa que está vulnerável
(vulnerabilidade temporária).
A tese defensiva acima
exposta é acolhida pelo STJ?
SIM.
A “pessoa vulnerável” de que
trata o parágrafo único do art. 225 do CP (na vigência da Lei nº 12.015/2009) é
somente aquela que possui uma incapacidade permanente de oferecer resistência à
prática dos atos libidinosos.
Se a pessoa é incapaz de oferecer
resistência apenas na ocasião da ocorrência dos atos libidinosos, ela não pode
ser considerada vulnerável para os fins do parágrafo único do art. 225, de
forma que a ação penal permanece sendo condicionada à representação da vítima.
No crime sexual cometido durante
vulnerabilidade temporária da vítima, sob a égide do art. 225 do Código Penal
com a redação dada pela Lei nº 12.015/2009, a ação penal pública é condicionada
à representação.
Hipnose
O exemplo dado acima envolveu uma
vítima embriagada, no entanto, o STJ possui julgado aplicando o mesmo
entendimento para uma mulher que havia sido hipnotizada:
2. Vítima de 38 anos, estuprada enquanto se encontrava
hipnotizada, estaria em situação de vulnerabilidade temporária, condição que
não guarda relação com idade, tampouco com enfermidade ou deficiência mental, a
exigir a propositura de ação penal pública condicionada à representação da
vítima, procedimento que não se deu no prazo de 6 meses previsto no art. 103 do
CP. [...]
4. À época dos fatos, vigia a redação do art. 226 do Código
Penal dada pela Lei 12.015/2009, a qual definia
que os 'crimes definidos nos Capítulos I e II deste Título,
procede-se mediante ação penal pública condicionada à representação', bem como
que a redação do parágrafo único do mesmo artigo dispunha, de outra banda, que
o processamento daqueles crimes seria 'mediante ação penal pública
incondicionada se a vítima é menor de 18 (dezoito) anos ou pessoa vulnerável'.
[...]
STJ. 6ª Turma. AgRg no HC 753124 SC, Rel. Min. Olindo Menezes
(Desembargador Convocado do TRF 1ª Região), Sexta Turma, julgado em 6/12/2022.
Lei nº 13.718/2018 acabou
com a discussão, mas a Súmula 670 vale para as situações ocorridas antes da sua
entrada em vigor
A discussão acima exposta existia
antes da Lei nº 13.718/2018. Isso porque, conforme vimos, a Lei nº 13.718/2018
alterou a redação do art. 225 do CP e passou a prever que TODOS os crimes
contra a dignidade sexual são de ação pública incondicionada (sempre). Não há mais
exceções!
Veja mais uma
vez a nova redação do art. 225 do CP:
Art. 225. Nos crimes definidos
nos Capítulos I e II deste Título, procede-se mediante ação
penal pública incondicionada. (Redação dada pela Lei nº 13.718/2018).
Vale ressaltar, no entanto, que
a Lei nº 13.718/2018 entrou em vigor na data de sua publicação
(25/09/2018). Como se trata de lei penal mais gravosa (novatio legis
in pejus), ela é irretroativa, não alcançando fatos praticados antes
da sua vigência.
Essa regra de irretroatividade
vale, inclusive, para as ações penais. Assim, por exemplo, se, em 24/09/2018, o
agente praticou conjunção carnal ou ato libidinoso contra uma pessoa
“temporariamente vulnerável”, vale a conclusão exposta na Súmula 670 do STJ porque
a Lei nº 13.718/2018 não poderá retroagir.
Por que a ação penal nos crimes
sexuais (que são delitos graves e abomináveis) eram, em regra, de ação penal
pública condicionada à representação?
Para evitar o strepitus judicii do processo e a
revitimização.
Strepitus judicii
Em uma tradução literal do latim,
strepitus judicii significa o
barulho, o ruído, o escândalo decorrente do julgamento.
Quando uma mulher é vítima de um
estupro, por exemplo, o fato de se instaurar um inquérito policial e,
posteriormente, uma ação penal gera uma exposição do seu caso na comunidade.
Isso porque, por mais que o processo corra em sigilo (art. 234-B do CP), é
normal que a notícia acerca da existência da ação penal se torne conhecida de
outras pessoas, gerando um sentimento de vergonha na vítima.
Além disso, infelizmente, no
passado era comum que algumas teses defensivas buscassem transferir ou dividir
a responsabilidade pelos crimes sexuais para a vítima. Submeter a vítima a
ouvir ou ler tal espécie de argumentação implicava, sem dúvidas, mais sofrimento.
Obs: o STF proibiu recentemente essa tese defensiva (para mais informações,
veja ADPF 1.107/DF, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgado em 23/05/2024. Info 1138).
Revitimização
A vítima de um crime, especialmente em
delitos sexuais ou violentos, todas as vezes em que for inquirida sobre os
fatos, ela é, de alguma forma, submetida a um novo trauma, um novo sofrimento
ao ter que relatar um episódio triste e difícil de sua vida para pessoas
estranhas, normalmente em um ambiente formal e frio. Desse modo, a cada
depoimento, a vítima sofre uma violência psíquica.
Assim, revitimização consiste nesse
sofrimento continuado ou repetido da vítima ao ter que relembrar esses fatos.
Alguns autores afirmam que a
revitimização é uma forma de “violência institucional” cometida pelo Estado
contra a vítima.
Por essas duas razões, o
legislador entendia que, sendo a vítima maior de idade e pessoa não vulnerável,
ela é quem deveria decidir se desejaria ou não deflagrar a instauração do
processo, ponderando seu desejo de justiça com as agruras que ainda teria que
enfrentar.
O certo é que o legislador fez
uma opção e acabou com a ação penal condicionada nos crimes sexuais. São todos
eles agora delitos de ação pública incondicionada. Obviamente que, na prática,
a vítima ainda continuará tendo certa autonomia. Isso porque a maioria desses
delitos ocorrem às escondidas, sem testemunhas, cabendo a decisão à vítima se
irá levar tal fato ao conhecimento das autoridades.