Dizer o Direito

quarta-feira, 7 de agosto de 2024

Comentários à súmula 670 do STJ

Súmula 670-STJ: Nos crimes sexuais cometidos contra a vítima em situação de vulnerabilidade temporária, em que ela recupera suas capacidades físicas e mentais e o pleno discernimento para decidir acerca da persecução penal de seu ofensor, a ação penal é pública condicionada à representação se o fato houver sido praticado na vigência da redação conferida ao art. 225 do Código Penal pela Lei n. 12.015, de 2009.

STJ. 3ª Seção. Aprovada em 20/06/2024, DJe 24/06/2024 (Info 817).

 

Imagine a seguinte situação hipotética (ocorrida na época em que vigorava o art. 225 do CP com a redação dada pela Lei nº 12.015/2009):

Em 2012, “A”, mulher de 20 anos, sem qualquer enfermidade ou deficiência mental, estava em uma festa e acabou bebendo demais, ficando completamente embriagada.

“L”, sob o pretexto de dar uma carona para “A”, levou a moça para um motel e com ela praticou conjunção carnal.

Vale ressaltar que “A” estava tão bêbada que não podia oferecer qualquer tipo de resistência ao ato sexual.

“A” não ofereceu representação contra “L”.

O Ministério Público denunciou o agente por estupro de vulnerável (art. 217-A, § 1º) alegando que a vítima, em virtude da embriaguez, não podia oferecer resistência:

Estupro de vulnerável

Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos:

Pena - reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos.

§ 1º Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência.

(...)

 

No interrogatório, ocorrido mais de seis meses após a autoria ter sido descoberta, o acusado confessou a prática do delito.

Em memoriais, o MP pediu a condenação do réu.

A defesa, por seu turno, alegou uma única tese: o delito praticado pelo réu é crime de ação penal pública CONDICIONADA à representação. Veja a redação do art. 225 do CP antes da Lei nº 13.718/2018:

Art. 225. Nos crimes definidos nos Capítulos I e II deste Título, procede-se mediante ação penal pública condicionada à representação.

Parágrafo único. Procede-se, entretanto, mediante ação penal pública incondicionada se a vítima é menor de 18 (dezoito) anos ou pessoa vulnerável.

Obs: essa é a redação dada pela Lei nº 12.015/2009.

Obs2: posteriormente, houve uma nova mudança realizada pela Lei nº 13.718/2018.

 

Abrindo um parêntese:

O art. 225 do CP teve três redações diferentes:

Redação original

Redação dada pela

Lei nº 12.015/2009

Redação dada pela

Lei nº 13.718/2018 (atualmente)

Art. 225. Nos crimes definidos nos capítulos anteriores, somente se procede mediante queixa.

§ 1º Procede-se, entretanto, mediante ação pública:

I - se a vítima ou seus pais não podem prover às despesas do processo, sem privar-se de recursos indispensáveis à manutenção própria ou da família;

II - se o crime é cometido com abuso do pátrio poder, ou da qualidade de padrasto, tutor ou curador.

§ 2º - No caso do nº I do parágrafo anterior, a ação do Ministério Público depende de representação.

Art. 225. Nos crimes definidos nos Capítulos I e II deste Título, procede-se mediante ação penal pública condicionada à representação.

Parágrafo único. Procede-se, entretanto, mediante ação penal pública incondicionada se a vítima é menor de 18 (dezoito) anos ou pessoa vulnerável.

Art. 225. Nos crimes definidos nos Capítulos I e II deste Título, procede-se mediante ação penal pública incondicionada.

Regra: ação penal privada.

 

Exceções:

a) se a vítima ou seus pais não tivessem dinheiro para o processo: ação pública condicionada à representação.

b) se o crime era cometido com abuso do poder familiar, ou da qualidade de padrasto, tutor ou curador: ação pública incondicionada.

c) se da violência resultasse lesão grave ou morte da vítima: ação pública incondicionada.

d) se o crime de estupro fosse praticado mediante o emprego de violência real: ação pública incondicionada.

Regra: ação penal pública condicionada à representação.

 

Exceções:

a) Vítima menor de 18 anos: incondicionada.

b) Vítima vulnerável: incondicionada.

c) Se foi praticado mediante violência real: incondicionada (Súm. 608-STF).

d) Se resultou lesão corporal grave ou morte: polêmica, mas prevalecia que deveria ser aplicado o mesmo raciocínio da Súmula 608-STF.

Ação pública incondicionada (sempre).

Todos os crimes contra a dignidade sexual são de ação pública incondicionada. Não há exceções!

 

Voltando ao caso concreto:

Como não houve representação no prazo de 6 meses (art. 38 do CPP), ocorreu a decadência, que é causa de extinção da punibilidade (art. 107, IV, do CP):

Art. 38.  Salvo disposição em contrário, o ofendido, ou seu representante legal, decairá no direito de queixa ou de representação, se não o exercer dentro do prazo de seis meses, contado do dia em que vier a saber quem é o autor do crime, ou, no caso do art. 29, do dia em que se esgotar o prazo para o oferecimento da denúncia.

 

Segundo a tese da defesa:

• o estupro de vulnerável somente é crime de ação penal pública incondicionada quando a vulnerabilidade for permanente (ex: doente mental);

• se a vulnerabilidade for temporária (ex: decorrente de embriaguez), a ação penal seria condicionada à representação.

Assim, quando o art. 225, parágrafo único do CP (com redação dada pela Lei nº 12.015/2009) fala em “pessoa vulnerável”, ele está se referindo à pessoa que é vulnerável (vulnerabilidade permanente) e não à pessoa que está vulnerável (vulnerabilidade temporária).

 

A tese defensiva acima exposta é acolhida pelo STJ?

SIM.

A “pessoa vulnerável” de que trata o parágrafo único do art. 225 do CP (na vigência da Lei nº 12.015/2009) é somente aquela que possui uma incapacidade permanente de oferecer resistência à prática dos atos libidinosos.

Se a pessoa é incapaz de oferecer resistência apenas na ocasião da ocorrência dos atos libidinosos, ela não pode ser considerada vulnerável para os fins do parágrafo único do art. 225, de forma que a ação penal permanece sendo condicionada à representação da vítima.

No crime sexual cometido durante vulnerabilidade temporária da vítima, sob a égide do art. 225 do Código Penal com a redação dada pela Lei nº 12.015/2009, a ação penal pública é condicionada à representação.

 

Hipnose

O exemplo dado acima envolveu uma vítima embriagada, no entanto, o STJ possui julgado aplicando o mesmo entendimento para uma mulher que havia sido hipnotizada:

2. Vítima de 38 anos, estuprada enquanto se encontrava hipnotizada, estaria em situação de vulnerabilidade temporária, condição que não guarda relação com idade, tampouco com enfermidade ou deficiência mental, a exigir a propositura de ação penal pública condicionada à representação da vítima, procedimento que não se deu no prazo de 6 meses previsto no art. 103 do CP. [...]

4. À época dos fatos, vigia a redação do art. 226 do Código Penal dada pela Lei 12.015/2009, a qual definia

que os 'crimes definidos nos Capítulos I e II deste Título, procede-se mediante ação penal pública condicionada à representação', bem como que a redação do parágrafo único do mesmo artigo dispunha, de outra banda, que o processamento daqueles crimes seria 'mediante ação penal pública incondicionada se a vítima é menor de 18 (dezoito) anos ou pessoa vulnerável'. [...]

STJ. 6ª Turma. AgRg no HC 753124 SC, Rel. Min. Olindo Menezes (Desembargador Convocado do TRF 1ª Região), Sexta Turma, julgado em 6/12/2022.

 

Lei nº 13.718/2018 acabou com a discussão, mas a Súmula 670 vale para as situações ocorridas antes da sua entrada em vigor

A discussão acima exposta existia antes da Lei nº 13.718/2018. Isso porque, conforme vimos, a Lei nº 13.718/2018 alterou a redação do art. 225 do CP e passou a prever que TODOS os crimes contra a dignidade sexual são de ação pública incondicionada (sempre). Não há mais exceções!

Veja mais uma vez a nova redação do art. 225 do CP:

Art. 225. Nos crimes definidos nos Capítulos I e II deste Título, procede-se mediante ação penal pública incondicionada. (Redação dada pela Lei nº 13.718/2018).

 

Vale ressaltar, no entanto, que a Lei nº 13.718/2018 entrou em vigor na data de sua publicação (25/09/2018). Como se trata de lei penal mais gravosa (novatio legis in pejus), ela é irretroativa, não alcançando fatos praticados antes da sua vigência.

Essa regra de irretroatividade vale, inclusive, para as ações penais. Assim, por exemplo, se, em 24/09/2018, o agente praticou conjunção carnal ou ato libidinoso contra uma pessoa “temporariamente vulnerável”, vale a conclusão exposta na Súmula 670 do STJ porque a Lei nº 13.718/2018 não poderá retroagir. 

 

Por que a ação penal nos crimes sexuais (que são delitos graves e abomináveis) eram, em regra, de ação penal pública condicionada à representação?

Para evitar o strepitus judicii do processo e a revitimização.

 

Strepitus judicii

Em uma tradução literal do latim, strepitus judicii significa o barulho, o ruído, o escândalo decorrente do julgamento.

Quando uma mulher é vítima de um estupro, por exemplo, o fato de se instaurar um inquérito policial e, posteriormente, uma ação penal gera uma exposição do seu caso na comunidade. Isso porque, por mais que o processo corra em sigilo (art. 234-B do CP), é normal que a notícia acerca da existência da ação penal se torne conhecida de outras pessoas, gerando um sentimento de vergonha na vítima.

Além disso, infelizmente, no passado era comum que algumas teses defensivas buscassem transferir ou dividir a responsabilidade pelos crimes sexuais para a vítima. Submeter a vítima a ouvir ou ler tal espécie de argumentação implicava, sem dúvidas, mais sofrimento. Obs: o STF proibiu recentemente essa tese defensiva (para mais informações, veja ADPF 1.107/DF, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgado em 23/05/2024. Info 1138).

 

Revitimização

A vítima de um crime, especialmente em delitos sexuais ou violentos, todas as vezes em que for inquirida sobre os fatos, ela é, de alguma forma, submetida a um novo trauma, um novo sofrimento ao ter que relatar um episódio triste e difícil de sua vida para pessoas estranhas, normalmente em um ambiente formal e frio. Desse modo, a cada depoimento, a vítima sofre uma violência psíquica.

Assim, revitimização consiste nesse sofrimento continuado ou repetido da vítima ao ter que relembrar esses fatos.

Alguns autores afirmam que a revitimização é uma forma de “violência institucional” cometida pelo Estado contra a vítima.

Por essas duas razões, o legislador entendia que, sendo a vítima maior de idade e pessoa não vulnerável, ela é quem deveria decidir se desejaria ou não deflagrar a instauração do processo, ponderando seu desejo de justiça com as agruras que ainda teria que enfrentar.

O certo é que o legislador fez uma opção e acabou com a ação penal condicionada nos crimes sexuais. São todos eles agora delitos de ação pública incondicionada. Obviamente que, na prática, a vítima ainda continuará tendo certa autonomia. Isso porque a maioria desses delitos ocorrem às escondidas, sem testemunhas, cabendo a decisão à vítima se irá levar tal fato ao conhecimento das autoridades.


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