Imagine a seguinte situação
hipotética:
A 99 Tecnologia Ltda é a empresa responsável pelo
aplicativo “99”, uma plataforma digital que faz a intermediação entre motoristas
de aplicativo e passageiros.
A 99 apurou que o motorista de aplicativo João, em duas
oportunidades diferentes, sem justificativa, encerrou corridas em locais
totalmente diversos dos solicitados pelos passageiros.
Por essa razão, o acesso de João à plataforma da 99 foi
suspenso para que a situação fosse apurada, como parte de um procedimento de
segurança. Após a conclusão da apuração, decidiu-se pelo bloqueio definitivo do
perfil.
Ação de obrigação de fazer
Inconformado, João ajuizou ação contra a 99 pedindo que a
exclusão fosse declarada nula e que fosse reintegrado. O autor alegou, dentre
outros argumentos, que:
• houve uma violação do princípio da ampla defesa, já que
a empresa não deu a ele oportunidade de se manifestar, tendo ocorrido uma
interrupção abrupta no contrato;
• o desligamento do aplicativo, sem notificação prévia,
violou disposições da Lei de Proteção de Dados – LGPD (Lei nº 13.709/2018),
contrariando os princípios da transparência, integridade de dados pessoais,
acesso a informações e direito de revisão da tomada de decisão unilateral pelo
controlador.
O juiz julgou o pedido
improcedente, sentença que foi mantida pelo Tribunal de Justiça.
Ainda inconformado, João recorreu ao STJ.
Vamos entender as principais conclusões jurídicas do STJ
e, ao final, verificar o que foi decidido no caso específico.
Economia do compartilhamento
O caso
em questão envolve um exemplo de economia do compartilhamento.
A
economia do compartilhamento, também conhecida como economia colaborativa, é um
modelo econômico que se baseia na troca e no compartilhamento de bens e
serviços entre indivíduos, utilizando plataformas digitais para facilitar essas
interações.
Desplataformização
A desplataformização, também
conhecida pelo termo em inglês “deplatforming”, refere-se ao ato de remover ou
banir um usuário, grupo ou conteúdo de uma plataforma digital, geralmente por
violar as políticas de uso ou por promover comportamentos considerados
inaceitáveis pela administração da plataforma.
No
caso concreto, não há relação de consumo nem de emprego
Necessário
estabelecer que, na hipótese sob julgamento, não se cuida de relação entre a
plataforma e o consumidor, razão pela qual a temática não deve ser estudada
pela ótica do CDC.
Trata-se
aqui de exclusão de motorista de aplicativo de transporte individual. Tendo em
vista que, até o presente momento, não foi reconhecida a existência de vínculo
empregatício entre os profissionais prestadores de serviços e a plataforma, é
entendimento do STJ que esta relação possui caráter eminentemente civil e
comercial, prevalecendo a autonomia da vontade e a independência na atuação de
cada um (STJ. 3ª Turma. REsp 2.018.788/RS, julgado em 20/6/2023).
Os motoristas de aplicativo têm direito ao
contraditório e à ampla defesa antes de serem excluídos definitivamente das
plataformas (ex: 99, Uber)?
SIM. Segundo o IBGE, no ano de 2022, no Brasil, 1,5
milhão de pessoas trabalhavam por meio de aplicativos de serviço, sendo que
97,3% dos motoristas de aplicativos de transporte de passageiros e os
entregadores por aplicativos afirmaram que possuem alto grau de dependência das
plataformas.
Percebe-se,
portanto, a imensa relevância das plataformas para esses milhões de cidadãos.
Logo, é contrário aos princípios do ordenamento jurídico a possibilidade de um
sujeito ter sua atividade profissional interrompida por uma decisão sumária e
obscura da plataforma de aplicativo, sem poder defender-se ou nem mesmo saber
do que está sendo acusado.
Assim, deve-se
garantir o contraditório e a ampla defesa também no âmbito digital.
Tal
entendimento se coaduna com a necessidade de garantir a eficácia dos direitos fundamentais
nas relações privadas.
A
análise dessa suspensão/exclusão é feita, em princípio, por inteligência
artificial, atraindo a revisão prevista no art. 20 da LGPD
É
importante considerar que as análises de perfil realizadas pelas plataformas
digitais decorrem de decisões automatizadas, uma vez que a inteligência
artificial vem ganhando espaço no processamento de dados em geral, inclusive os
pessoais.
Nesses termos, o motorista de aplicativo possui o direito de
exigir a revisão de decisões automatizadas que definam seu perfil profissional,
nos termos do art. 20 da LGPD:
Art. 20. O titular dos dados tem
direito a solicitar a revisão de decisões tomadas unicamente com base em
tratamento automatizado de dados pessoais que afetem seus interesses, incluídas
as decisões destinadas a definir o seu perfil pessoal, profissional, de consumo
e de crédito ou os aspectos de sua personalidade. (Redação dada pela Lei nº
13.853, de 2019)
Resumindo
este tópico:
Conjugando a determinação do art. 20 da LGPD com a
eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas, entende-se que o
titular de dados pessoais deve ser informado sobre a razão da suspensão de seu
perfil, bem como pode requerer a revisão dessa decisão, garantido o seu direito
de defesa.
STJ. 3ª Turma.
REsp 2.135.783-DF, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 18/6/2024 (Info 817).
Em caso de violação grave, a plataforma pode
suspender imediatamente o motorista, assegurando-lhe posteriormente o
contraditório e a ampla defesa para possibilitar seu recredenciamento
A
depender da situação fática, a plataforma pode ser responsabilizada por
eventuais danos causados ou sofridos por seus usuários (ex: se um motorista
pratica um crime contra uma passageira). Diante dessa possibilidade de
responsabilização, cabe à plataforma analisar os riscos que envolvem manter
ativo determinado perfil de motorista.
Desse
modo, se o ato cometido pelo motorista for suficientemente gravoso, trazendo
riscos ao funcionamento da plataforma ou a seus usuários, a plataforma poderá
fazer a imediata suspensão do perfil do profissional, assegurando
posteriormente o exercício de defesa para que o motorista possa ser
recredenciado.
Como
exemplos de casos graves poderíamos citar: comportamento inadequado do
motorista em razão de assédio ou importunação sexual, racismo, crimes contra o
patrimônio, agressões físicas e verbais, dentre outras questões que envolvem
não somente o contratante, senão o consumidor, seu bem-estar, segurança e
dignidade.
Portanto:
A plataforma pode suspender imediatamente o perfil do
motorista quando entender que a acusação é suficientemente gravosa,
informando-lhe a razão dessa medida, mas ele poderá requerer a revisão dessa
decisão, garantido o contraditório.
STJ. 3ª
Turma. REsp 2.135.783-DF, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 18/6/2024 (Info
817).
Depois
de conferido o direito de defesa ao usuário, se ainda assim a plataforma
concluir que restou comprovada a violação aos termos de conduta, ela poderá
descredenciar o perfil do motorista. Vale ressaltar, contudo, que será possível
a revisão judicial da questão.
Se tiver sido conferido o direito de defesa ao
usuário e ainda assim a plataforma concluir que restou comprovada a violação
aos termos de conduta, não há abusividade no descredenciamento do perfil. Até
mesmo porque não se afasta a possibilidade de revisão judicial da questão.
STJ. 3ª
Turma. REsp 2.135.783-DF, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 18/6/2024 (Info
817).
O que o STJ decidiu no caso concreto?
No caso concreto, conforme vimos acima, João, na
qualidade de motorista do aplicativo 99, encerrou corridas em locais totalmente
diversos daqueles solicitados pelos passageiros, sem qualquer justificativa ou
comunicação à plataforma, o que se configura como violação aos termos de
conduta contratualmente estabelecidos entre as partes.
Por essa razão, o acesso do motorista foi inicialmente suspenso
para que a situação fosse apurada, como parte de um procedimento de segurança.
João foi informado sobre as razões da suspensão e exerceu
sua defesa afirmando que um terceiro teria utilizado fraudulentamente a sua
conta.
Após a conclusão da apuração, a plataforma não acolheu as
justificativas apresentadas e decidiu pelo bloqueio definitivo do perfil.
O que se depreende dos autos, em verdade, é o
descumprimento contratual por parte de João que, ao violar os termos de conduta
do aplicativo, ofereceu risco à segurança dos seus passageiros.