Imagine a seguinte situação
hipotética:
Regina tem 51 anos e é portadora
de Esclerose Múltipla, doença autoimune degenerativa grave, que na ausência do tratamento
adequado acarreta incapacidade funcional progressiva em razão da degeneração
neurológica decorrente do acúmulo de lesões desmielinizantes no Encéfalo e na
Medula Espinhal.
A fim de combater a doença, a
médica neurologista que acompanha Regina prescreveu um medicamento chamado FINGOLIMODE, na dose de um comprimido
ao dia, para uso contínuo, ressaltando que “o atraso ou descontinuidade no
tratamento implica risco de novos surtos da doença com degeneração neurológica
progressiva e desenvolvimento de sequelas incapacitantes irreversíveis”.
Vale ressaltar que se trata de medicamento em comprimido, que pode ser
tomado em casa.
A caixa do remédio, com 28 comprimidos, custava cerca de R$ 7.000,00.
Regina encaminhou a solicitação médica ao plano de saúde pedindo
que fornecesse o medicamento de que necessitava.
O plano de saúde negou cobertura
sob o argumento de que se trata de medicamento administrável na forma oral, em ambiente domiciliar.
Inconformada com a recusa, Regina
ingressou com ação cominatória contra o
plano de saúde.
Na petição inicial, alegou que:
- O medicamento prescrito tem
registro na ANVISA;
- A indicação para tratamento é
expressamente prevista na bula (não é off-label);
- O medicamento consta do rol de
coberturas obrigatórias mínimas da ANS como terapia para Esclerose Múltipla.
Com esses fundamentos, requereu a
concessão de tutela de urgência para que o plano de saúde fosse compelido a
fornecer o tratamento.
Antes de tratar
especificamente sobre o caso de Regina, vou fazer uma pergunta geral sobre o
tema: o plano de saúde é obrigado a fornecer medicamentos para tratamento
domiciliar (remédios de uso domiciliar)?
REGRA: em regra, os planos de
saúde não são obrigados a fornecer medicamentos para tratamento domiciliar.
EXCEÇÕES. Os planos de saúde são
obrigados a fornecer:
a) os antineoplásicos orais (e
correlacionados);
b) a medicação assistida (home
care); e
c) os incluídos no rol da ANS (Agência
Nacional de Saúde Suplementar) para esse fim.
Assim, os medicamentos receitados
por médicos para uso doméstico e adquiridos comumente em farmácias não estão,
em regra, cobertos pelos planos de saúde. Isso porque, em regra, os planos de
saúde (que integram o Sistema da Saúde Suplementar) somente são obrigados a
custear os fármacos usados durante a internação hospitalar. As exceções ficam
por conta dos antineoplásicos orais para uso domiciliar (e correlacionados), os
medicamentos utilizados no home care e os remédios relacionados a
procedimentos listados no Rol da ANS.
O tema é tratado no art. 10,
VI, da Lei nº 9.656/98
O art. 10 lista em seus incisos
tratamentos, procedimentos e medicamentos que os planos de saúde não são
obrigados a fornecer.
O inciso VI afirma que, em regra,
o plano de saúde não é obrigado a fornecer medicamentos para tratamento
domiciliar.
Exceção 1: antineoplásicos
Antineoplásicos são medicamentos
que destroem neoplasmas ou células malignas. Têm a função, portanto, de evitar
ou inibir o crescimento e a disseminação de tumores. Servem, portanto, para
tratamento de câncer. Existem alguns medicamentos antineoplásicos que são de
uso oral e, portanto, podem ser ministrados em casa, fora do ambiente
hospitalar. A lei prevê que esses medicamentos, se prescritos pelo médico como
indicados para o tratamento do paciente, devem ser obrigatoriamente fornecidos
pelo plano de saúde.
Exceção 2: medicação
assistida (home care)
Se o paciente está em home
care (tratamento domiciliar), o plano de saúde também será obrigado a
fornecer a medicação assistida, ou seja, toda a medicação necessária para o
tratamento e que ele receberia caso estivesse no ambiente hospitalar.
O home care significa fornecer
para o paciente que está em casa o mesmo tratamento que ele receberia caso
estivesse no hospital. Se, no hospital, o paciente teria que tomar o remédio
“X” a cada 8h, este medicamento deverá ser custeado pelo plano de saúde, tal
qual ocorreria se estivesse internado.
Obs: essa exceção é uma
decorrência do fato de que o STJ entende que os planos de saúde podem ser
obrigados a custear o home care.
Exceção 3: outros fármacos
que sejam incluídos pela ANS como sendo de fornecimento obrigatório
A norma do art. 10, VI, da Lei nº
9.656/98 é voltada à operadora de plano de saúde, a qual, na contratação, pode
adotar tal limitação. Esse dispositivo, contudo, não proíbe que a ANS (“órgão
regulador setorial”) inclua determinados medicamentos como sendo de custeio
obrigatório no rol de cobertura mínima assistencial, ainda que sejam de uso
domiciliar.
Voltando agora especificamente para o
caso concreto: o pedido de Regina foi acolhido pelo STJ? O plano de saúde foi
condenado a conceder o FINGOLIMODE?
SIM.
Na hipótese, a autora não faz uso
de medicamento antineoplásico, tampouco conta com assistência por meio de “home
care”, pretendendo apenas ter custeado o medicamento fingolimode para uso oral.
O caso em exame, todavia,
apresenta peculiaridades que justificam a aplicação de entendimento diverso. A
indicação feita pelo médico assistente de Regina estabelece que é
imprescindível a terapia com o específico medicamento fingolimode em dose
diária.
Em consulta ao bulário eletrônico
da Anvisa, constata-se que o medicamento fingolimode conta com o devido
registro tanto para a versão original como para as versões genéricas e é
expressamente indicado para o tratamento de esclerose múltipla, estando disponível
apenas sob a forma de cápsula, administrável via oral, não havendo alternativa
na modalidade injetável.
Em que pese o referido fármaco
não esteja previsto como de cobertura obrigatória para o tratamento de
esclerose múltipla no Rol de Procedimentos de Eventos em Saúde da Agência
Nacional de Saúde Suplementar (Anexo II da RN n. 465/2021), a aludida normativa
contempla o uso do fingolimode como segunda ou terceira linha de tratamento,
pelas quais o paciente necessariamente precisa passar para ter direito ao
fornecimento de fármaco de cobertura obrigatória (Natalizumabe) em terceira ou
quarta linha de tratamento, quando houver falha terapêutica, eventos adversos
ou falta de adesão nas linhas anteriores.
Na espécie, há relatório médico
esclarecendo que a paciente já fez uso prévio de terapia injetável, com
utilização de outros fármacos, sem sucesso; atesta, ainda, que o caso não se
enquadra nas diretrizes clínicas para indicação da terapia endovenosa e conclui
reiterando a imprescindível necessidade da medicação oral prescrita.
Efetivamente, a orientação da
médica assistente, ao prescrever o tratamento com fingolimode em segunda linha,
está em consonância tanto com o disposto no Anexo II da RN n. 465/2021,
transcrito em linhas anteriores, como com o Protocolo Clínico e Diretrizes
Terapêuticas (PCDT) para o tratamento de esclerose múltipla, elaborado pelo
Ministério da Saúde, que considera critérios de eficácia, segurança,
efetividade e custo-efetividade das tecnologias recomendadas.
Ressalta-se que o fingolimode é
fornecido pelo SUS, sendo possível extrair do Relatório de Recomendação da
Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS - CONITEC, acostado aos
autos, informações relevantes acerca das diferenças entre as formas de
administração das terapias disponíveis (oral ou injetável), inclusive que a
administração do medicamento por via oral é mais eficaz, sobretudo porque
propicia maior adesão ao tratamento.
É absolutamente desarrazoado
submeter a autora a sofrível tratamento injetável, realizado em ambiente
hospitalar, quando pode fazer uso de tratamento via oral, mais prático, indolor
e sem gastos com deslocamento e dispêndio de tempo, além de representar custo
inferior para a operadora do plano de saúde, não afetando o equilíbrio
contratual.
Em suma:
É abusiva a negativa tratamento essencial ao controle
de doença degenerativa do sistema nervoso, apenas por ser o medicamento
administrável na forma oral em ambiente domiciliar, quando, entre outras
circunstâncias, esteja incluído no rol da ANS e faça parte de específico
tratamento escalonado pelo qual o paciente necessariamente precisa passar para
ter direito ao fornecimento de fármaco de cobertura obrigatória.
STJ. 4ª
Turma. AgInt no AREsp 2.251.773-DF, Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, Rel.
para o acórdão Min. Marco Buzzi, julgado em 21/5/2024 (Info 814).