Dizer o Direito

quarta-feira, 3 de julho de 2024

Plano de saúde foi condenado a conceder o medicamento fingolimode para tratar esclerose múltipla, mesmo sendo um medicamento oral que se toma em casa

Imagine a seguinte situação hipotética:

Regina tem 51 anos e é portadora de Esclerose Múltipla, doença autoimune degenerativa grave, que na ausência do tratamento adequado acarreta incapacidade funcional progressiva em razão da degeneração neurológica decorrente do acúmulo de lesões desmielinizantes no Encéfalo e na Medula Espinhal.

A fim de combater a doença, a médica neurologista que acompanha Regina prescreveu um medicamento chamado FINGOLIMODE, na dose de um comprimido ao dia, para uso contínuo, ressaltando que “o atraso ou descontinuidade no tratamento implica risco de novos surtos da doença com degeneração neurológica progressiva e desenvolvimento de sequelas incapacitantes irreversíveis”.

Vale ressaltar que se trata de medicamento em comprimido, que pode ser tomado em casa.

A caixa do remédio, com 28 comprimidos, custava cerca de R$ 7.000,00.

Regina encaminhou a solicitação médica ao plano de saúde pedindo que fornecesse o medicamento de que necessitava.

O plano de saúde negou cobertura sob o argumento de que se trata de medicamento administrável na forma oral, em ambiente domiciliar.

Inconformada com a recusa, Regina ingressou com ação cominatória contra o plano de saúde.

Na petição inicial, alegou que:

- O medicamento prescrito tem registro na ANVISA;

- A indicação para tratamento é expressamente prevista na bula (não é off-label);

- O medicamento consta do rol de coberturas obrigatórias mínimas da ANS como terapia para Esclerose Múltipla.

 

Com esses fundamentos, requereu a concessão de tutela de urgência para que o plano de saúde fosse compelido a fornecer o tratamento.

 

Antes de tratar especificamente sobre o caso de Regina, vou fazer uma pergunta geral sobre o tema: o plano de saúde é obrigado a fornecer medicamentos para tratamento domiciliar (remédios de uso domiciliar)?

REGRA: em regra, os planos de saúde não são obrigados a fornecer medicamentos para tratamento domiciliar.

 

EXCEÇÕES. Os planos de saúde são obrigados a fornecer:

a) os antineoplásicos orais (e correlacionados);

b) a medicação assistida (home care); e

c) os incluídos no rol da ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar) para esse fim.

 

Assim, os medicamentos receitados por médicos para uso doméstico e adquiridos comumente em farmácias não estão, em regra, cobertos pelos planos de saúde. Isso porque, em regra, os planos de saúde (que integram o Sistema da Saúde Suplementar) somente são obrigados a custear os fármacos usados durante a internação hospitalar. As exceções ficam por conta dos antineoplásicos orais para uso domiciliar (e correlacionados), os medicamentos utilizados no home care e os remédios relacionados a procedimentos listados no Rol da ANS.

 

O tema é tratado no art. 10, VI, da Lei nº 9.656/98

O art. 10 lista em seus incisos tratamentos, procedimentos e medicamentos que os planos de saúde não são obrigados a fornecer.

O inciso VI afirma que, em regra, o plano de saúde não é obrigado a fornecer medicamentos para tratamento domiciliar.

 

Exceção 1: antineoplásicos

Antineoplásicos são medicamentos que destroem neoplasmas ou células malignas. Têm a função, portanto, de evitar ou inibir o crescimento e a disseminação de tumores. Servem, portanto, para tratamento de câncer. Existem alguns medicamentos antineoplásicos que são de uso oral e, portanto, podem ser ministrados em casa, fora do ambiente hospitalar. A lei prevê que esses medicamentos, se prescritos pelo médico como indicados para o tratamento do paciente, devem ser obrigatoriamente fornecidos pelo plano de saúde.

 

Exceção 2: medicação assistida (home care)

Se o paciente está em home care (tratamento domiciliar), o plano de saúde também será obrigado a fornecer a medicação assistida, ou seja, toda a medicação necessária para o tratamento e que ele receberia caso estivesse no ambiente hospitalar.

O home care significa fornecer para o paciente que está em casa o mesmo tratamento que ele receberia caso estivesse no hospital. Se, no hospital, o paciente teria que tomar o remédio “X” a cada 8h, este medicamento deverá ser custeado pelo plano de saúde, tal qual ocorreria se estivesse internado.

Obs: essa exceção é uma decorrência do fato de que o STJ entende que os planos de saúde podem ser obrigados a custear o home care.

 

Exceção 3: outros fármacos que sejam incluídos pela ANS como sendo de fornecimento obrigatório

A norma do art. 10, VI, da Lei nº 9.656/98 é voltada à operadora de plano de saúde, a qual, na contratação, pode adotar tal limitação. Esse dispositivo, contudo, não proíbe que a ANS (“órgão regulador setorial”) inclua determinados medicamentos como sendo de custeio obrigatório no rol de cobertura mínima assistencial, ainda que sejam de uso domiciliar.

 

Voltando agora especificamente para o caso concreto: o pedido de Regina foi acolhido pelo STJ? O plano de saúde foi condenado a conceder o FINGOLIMODE?

SIM.

Na hipótese, a autora não faz uso de medicamento antineoplásico, tampouco conta com assistência por meio de “home care”, pretendendo apenas ter custeado o medicamento fingolimode para uso oral.

O caso em exame, todavia, apresenta peculiaridades que justificam a aplicação de entendimento diverso. A indicação feita pelo médico assistente de Regina estabelece que é imprescindível a terapia com o específico medicamento fingolimode em dose diária.

Em consulta ao bulário eletrônico da Anvisa, constata-se que o medicamento fingolimode conta com o devido registro tanto para a versão original como para as versões genéricas e é expressamente indicado para o tratamento de esclerose múltipla, estando disponível apenas sob a forma de cápsula, administrável via oral, não havendo alternativa na modalidade injetável.

Em que pese o referido fármaco não esteja previsto como de cobertura obrigatória para o tratamento de esclerose múltipla no Rol de Procedimentos de Eventos em Saúde da Agência Nacional de Saúde Suplementar (Anexo II da RN n. 465/2021), a aludida normativa contempla o uso do fingolimode como segunda ou terceira linha de tratamento, pelas quais o paciente necessariamente precisa passar para ter direito ao fornecimento de fármaco de cobertura obrigatória (Natalizumabe) em terceira ou quarta linha de tratamento, quando houver falha terapêutica, eventos adversos ou falta de adesão nas linhas anteriores.

Na espécie, há relatório médico esclarecendo que a paciente já fez uso prévio de terapia injetável, com utilização de outros fármacos, sem sucesso; atesta, ainda, que o caso não se enquadra nas diretrizes clínicas para indicação da terapia endovenosa e conclui reiterando a imprescindível necessidade da medicação oral prescrita.

Efetivamente, a orientação da médica assistente, ao prescrever o tratamento com fingolimode em segunda linha, está em consonância tanto com o disposto no Anexo II da RN n. 465/2021, transcrito em linhas anteriores, como com o Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas (PCDT) para o tratamento de esclerose múltipla, elaborado pelo Ministério da Saúde, que considera critérios de eficácia, segurança, efetividade e custo-efetividade das tecnologias recomendadas.

Ressalta-se que o fingolimode é fornecido pelo SUS, sendo possível extrair do Relatório de Recomendação da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS - CONITEC, acostado aos autos, informações relevantes acerca das diferenças entre as formas de administração das terapias disponíveis (oral ou injetável), inclusive que a administração do medicamento por via oral é mais eficaz, sobretudo porque propicia maior adesão ao tratamento.

É absolutamente desarrazoado submeter a autora a sofrível tratamento injetável, realizado em ambiente hospitalar, quando pode fazer uso de tratamento via oral, mais prático, indolor e sem gastos com deslocamento e dispêndio de tempo, além de representar custo inferior para a operadora do plano de saúde, não afetando o equilíbrio contratual.

 

Em suma:

É abusiva a negativa tratamento essencial ao controle de doença degenerativa do sistema nervoso, apenas por ser o medicamento administrável na forma oral em ambiente domiciliar, quando, entre outras circunstâncias, esteja incluído no rol da ANS e faça parte de específico tratamento escalonado pelo qual o paciente necessariamente precisa passar para ter direito ao fornecimento de fármaco de cobertura obrigatória. 

STJ. 4ª Turma. AgInt no AREsp 2.251.773-DF, Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, Rel. para o acórdão Min. Marco Buzzi, julgado em 21/5/2024 (Info 814).


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