Imagine a seguinte situação
hipotética:
Em Porto Alegre (RS), foi
decretada a prisão preventiva de Regina por tráfico de drogas.
A Defensoria Pública impetrou
habeas corpus em favor da custodiada requerendo a concessão de prisão
domiciliar. Alegou que Regina é mãe de duas filhas menores de 12 anos, uma
delas com apenas 5 meses de vida e que a sua presença em casa seria
indispensável para garantir os cuidados necessários às filhas.
O Tribunal de Justiça negou o
pedido. Afirmou que:
• a decisão judicial que decretou
a prisão preventiva da paciente está fundamentada, em observância ao art. 93,
IX, da Constituição Federal, estando presentes os requisitos da segregação
cautelar como forma de garantir a ordem pública, tendo em vista a gravidade
concreta dos crimes imputado ao paciente.
• além disso, o fato de a
paciente ter duas filhas menores de idade não justifica, por si só, a
substituição da prisão preventiva por medidas cautelares diversas, ou ainda por
prisão domiciliar, pois que não há qualquer elemento indicativo concreto de que
a paciente, mesmo sendo mãe, esteja na guarda jurídica ou fática das crianças,
o que se fazia necessário em razão da excepcionalidade da medida postulada, nos
termos do parágrafo único do art. 318 do CPP, tampouco ficou demonstrada a
imprescindibilidade da paciente aos seus cuidados.
Inconformada, a Defensoria
interpôs recurso ordinário ao STJ insistindo nos argumentos.
Antes que o recurso fosse
julgado, iniciou-se no Estado do Rio Grande do Sul a triste calamidade pública
causada pelas chuvas e extensas inundações, que afetaram mais de 80% das
cidades do Estado.
Diante disso, a Defensoria
peticionou nos autos requerendo:
• que a situação de calamidade
pública do Estado fosse levada em consideração no momento da decisão como sendo
um fato novo e notório; e
• que a decisão que conceder prisão domiciliar para Regina
seja também estendida em favor de todas as presas do Estado do Rio Grande do
Sul, por meio de uma ordem de habeas corpus coletivo, nos termos do art. 647-A
do CPP:
Art. 647-A. No âmbito de sua
competência jurisdicional, qualquer autoridade judicial poderá expedir de
ofício ordem de habeas corpus, individual ou coletivo, quando, no curso de
qualquer processo judicial, verificar que, por violação ao ordenamento jurídico,
alguém sofre ou se acha ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade
de locomoção. (Incluído pela Lei nº
14.836, de 2024)
Primeira pergunta: o STJ
concedeu a prisão domiciliar em favor de Regina?
SIM.
Em situações de desastres
públicos, a flexibilização das prisões pode ser justificada por motivos
humanitários ou por questões práticas e operacionais relativas à crise e aos
órgãos responsáveis pelo gerenciamento das ações estatais.
Eventos como pandemias,
catástrofes naturais ou emergências em larga escala exigem uma reavaliação das
prioridades e capacidades do sistema prisional, que pode ser gravemente afetado
nessas circunstâncias.
Do ponto de vista humanitário, a
superlotação e as condições, muitas vezes precárias das prisões, podem se
tornar ainda mais problemáticas durante uma calamidade. Questões como higiene
precária, acesso limitado a cuidados médicos e a impossibilidade de manter o
distanciamento social podem transformar as prisões em focos de propagação de
doenças, representando um risco não apenas para os detentos, mas também para os
funcionários penitenciários e a comunidade em geral.
Sob uma ótica mais pragmática, a
liberação temporária ou a aplicação de penas alternativas à prisão domiciliar
ou liberdade condicional podem ser medidas necessárias para reduzir a pressão
sobre as instalações carcerárias. Isso possibilita que a administração
prisional concentre seus recursos limitados na gerência da crise e na proteção
dos detentos sob custódia, especialmente aqueles que não podem ser liberados
por conta da natureza de seus crimes ou do perigo que representam para a
sociedade.
Ademais, tais ações podem ser
consideradas uma maneira de garantir a incolumidade e os direitos humanos das
pessoas presas, garantindo que não sejam desproporcionalmente prejudicados
durante uma crise que requer medidas extraordinárias. É crucial que tais
decisões sejam baseadas em avaliações minuciosas e personalizadas dos riscos
envolvidos para cada detento, a fim de assegurar que a segurança pública
permaneça como prioridade.
No caso da calamidade instalada no Estado do Rio Grande do
Sul, as diretrizes do Conselho Nacional de Justiça são claras quanto aos casos
de prisões provisórias e indicam nas orientações 8 e 9:
Orientação 8. Reavaliar as
prisões provisórias, nos termos do artigo 316 do Código de Processo Penal,
priorizando-se:
a) Mulheres gestantes, lactantes,
mães ou pessoas responsáveis por criança de até doze anos ou por pessoa com
deficiência, assim como pessoas idosas, indígenas e pessoas com deficiência;
b) Pessoas privadas de liberdade
em estabelecimentos penais atingidos pela calamidade pública, em risco de
inundação ou nos quais os serviços essenciais e as garantias básicas à vida e à
dignidade da pessoa humana estejam afetados ou potencialmente afetados;
c) Prisões preventivas que tenham
excedido o prazo de 90 (noventa) dias ou que estejam relacionadas a crimes
praticados sem violência ou grave ameaça à pessoa.
Orientação 9. Nos casos de
pessoas em prisão domiciliar, ampliar o conceito de domicílio para abranger
qualquer local seguro em que a pessoa possa estar recolhida, além de não
considerar como descumprimento da medida os deslocamentos que sejam necessários
em decorrência do estado de calamidade pública.
No caso concreto, Regina é mãe de
duas filhas menores de 12 anos, uma delas com 5 meses de vida, as quais
dependem inteiramente dos cuidados maternos para sobrevivência.
A paciente é tecnicamente
primária e o delito não foi praticado com violência ou grave ameaça.
Desse modo, a situação se
enquadra nos casos elencados pelo CNJ para a flexibilização do rigor relativo à
segregação cautelar.
A excepcionalidade exigida na
norma para a concessão da prisão domiciliar está presente no caso concreto,
exigindo-se a aplicação do princípio da fraternidade no caso concreto, para que
Poder Judiciário garanta à infante o cuidado necessário enquanto durar o
trâmite do processo criminal ao qual está submetida a paciente.
Faz-se necessário cumprir-se, em
preservação aos direitos das próprias crianças e, evitando a reiteração da
suposta conduta criminosa, que sejam aplicadas medidas cautelares de forma
cumulada, para que não haja risco de descumprimento por parte da paciente.
Segunda pergunta: o STJ
aceitou estender essa decisão para todas as demais presas do Estado do Rio
Grande do Sul?
NÃO.
A regra relativa à extensão,
dispõe o art. 580 do CPP que “No caso de concurso de agentes (Código Penal,
art. 25), a decisão do recurso interposto por um dos réus, se fundado em
motivos que não sejam de caráter exclusivamente pessoal, aproveitará aos
outros.”
A jurisprudência do STJ afirma
que “o deferimento do pedido de extensão exige que o corréu esteja na mesma
condição fático-processual daquele já beneficiado, a teor do art. 580 do Código
de Processo Penal, o que não se observa no caso, ou seja, frise-se que a
extensão do julgado referente a um réu não se opera automaticamente aos demais.
Urge reunir dois requisitos: objetivo (identidade fática) e subjetivo
(circunstâncias pessoais)” (STJ. 5ª Turma. AgRg no HC 780.474/BA, Rel. Min. Reynaldo
Soares da Fonseca, DJe 14/12/2022).
São duas, portanto, “as hipóteses
de ordem objetiva que não legitimam a invocação do art. 580 do Código de
Processo Penal: I) quando o agente que postular a extensão não participar da
mesma relação jurídica processual daquele que foi beneficiado por decisão
judicial da Corte, o que, estreme de dúvidas, evidencia a ilegitimidade do
requerente; e II) quando se invoca extensão de decisão para outros processos
que não foram objeto de análise pela Corte, o que denuncia engenhosa fórmula de
transcendência dos motivos determinantes com o propósito de promover análise
per saltum do título processual” adotado como paradigma, expondo a risco o sistema
de competências constitucionalmente estabelecido (STF. 1ª Turma. RE 1313494
Extn, Rel. Min. Dias Toffoli, julgado em 16/05/2022).
Em se tratando de prisões
definitivas e provisórias no Estado do Rio Grande do Sul, que enfrenta o que
talvez se possa afirmar ser o pior desastre natural de sua história, a atenção
do Poder Judiciário e a garantia da paz social exigem um cuidado redobrado dos
operadores do direito. Essa é a razão da positivação das diretrizes pelo CNJ.
A extensão extra processual
pretendida pela Defensoria extrapolaria a competência da Turma, uma vez que se
trata de providência pleiteada em habeas corpus individual, inexistindo a
possibilidade de exame da similaridade exigida na norma processual.
Ainda que com grande esforço
interpretativo na avaliação dos requisitos da prisão preventiva das pessoas
presas no Estado afligido pela calamidade, não se pode correr o risco de
agravar-se o caos e o sentimento de insegurança das vítimas e da sociedade em
geral. Pessoas com histórico de violência, acusadas de crimes graves, ainda que
sem o trânsito em julgado, não podem ser libertadas sem uma avaliação
individualizada de sua segregação.
O STJ recomendou que a Defensoria Pública atue junto ao Grupo de
Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e Socioeducativo - GMF e dos
Comitês Interinstitucionais de Crise criados pelo Tribunal de Justiça Estadual
e pelo TRF-4, como determinado pelo CNJ, ou impetre habeas corpus individuais
com a situação concreta de cada preso, para uma devida análise por este
Superior Tribunal de Justiça, para garantir os direitos e a incolumidade das
pessoas presas.
O STJ recomendou ainda que o
Juízo das Execuções de cada uma das comarcas atingidas pela calamidade pública,
siga as orientações do Conselho Nacional de Justiça.
Em síntese:
O STJ concedeu parcialmente a
ordem, para determinar a substituição da segregação cautelar da paciente por prisão
domiciliar, na forma da orientação 9 das diretrizes do CNJ para a calamidade pública
enfrentada pelo Rio Grande do Sul, segundo a qual deve-se ampliar o conceito de
domicílio para abranger qualquer local seguro em que a pessoa possa estar
recolhida, além de não considerar como descumprimento da medida os deslocamentos
que sejam necessários em decorrência do estado de calamidade pública.
Por outro lado, indeferiu o pedido
de extensão dos efeitos da decisão deduzido pela Defensoria Pública.
Em suma:
Em situações de desastres públicos, a flexibilização
das prisões, mediante avaliação individualizada da segregação cautelar, pode
ser justificada por motivos humanitários ou por questões práticas e
operacionais relativas à crise e aos órgãos responsáveis pelo gerenciamento das
ações estatais.
STJ. 5ª Turma. RHC 191.995-RS, Rel. Min. Daniela Teixeira, julgado em
14/5/2024 (Info 812).