Imagine a seguinte situação
hipotética:
Em 2022, João estava cumprindo pena, em regime fechado, na unidade
prisional. Ele cumpria pena por três crimes. Vale ressaltar que esses delitos
foram todos praticados em momentos distintos. Não foram cometidos, portanto,
concurso material, formal ou continuação delitiva.
CRIME |
PENA MÁXIMA EM
ABSTRATO (para fins de
análise de indulto) |
Tráfico de drogas (art. 33, caput, da Lei nº 11.343/2006) |
Nem adianta analisar a pena máxima em
abstrato desse crime porque ele é insuscetível de indulto |
Furto simples (art. 155, caput, do CP) |
4 anos |
Furto simples (art. 155, caput, do CP) |
4 anos |
Em 2022, foi editado o Decreto nº 11.302/2022, que concedeu indulto
natalino.
A Defensoria Pública, analisando o decreto, entendeu que João
fazia jus ao benefício em relação aos dois últimos delitos da tabela acima (os
dois furtos simples). Isso com base na previsão contida no art. 5º do Decreto nº
11.302/2022:
Art. 5º Será concedido indulto
natalino às pessoas condenadas por crime cuja pena privativa de liberdade
máxima em abstrato não seja superior a cinco anos.
Parágrafo único. Para fins do disposto
no caput, na hipótese de concurso de crimes, será considerada, individualmente,
a pena privativa de liberdade máxima em abstrato relativa a cada infração
penal.
Por essa razão, João, assistido pela Defensoria Pública, formulou pedido
para concessão do indulto direcionado
ao juízo da execução criminal da comarca.
O juiz negou o benefício alegando que o disposto no art. 5º do Decreto seria aplicável somente aos indivíduos que
possuem uma única execução.
No caso de indivíduos que possuam diversas execuções – como
é o caso de João – o regramento aplicável seria aquele previsto no art. 11 do
mesmo Decreto, que dispõe:
Decreto 11.302/2022
Art. 11. Para fins do disposto neste
Decreto, as penas correspondentes a infrações diversas serão unificadas ou
somadas até 25 de dezembro de 2022, nos termos do disposto no art. 111 da Lei
nº 7.210, de 11 de julho de 1984.
Parágrafo único. Não será concedido
indulto natalino correspondente a crime não impeditivo enquanto a pessoa
condenada não cumprir a pena pelo crime impeditivo do benefício, na hipótese de
haver concurso com os crimes a que se refere o art. 7º, ressalvada a concessão
fundamentada no inciso III do caput do art. 1º.
Art. 7º
O indulto natalino concedido nos termos do disposto neste Decreto não
abrange os crimes:
I - considerados hediondos ou a eles
equiparados, nos termos do disposto na Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990;
Assim, ao se somar as penas máximas em abstrato dos crimes pelos quais o
sentenciado foi condenado, teríamos um resultado superior a 5 anos,
circunstância que afastaria a possibilidade de concessão de indulto.
Além disso, o MP argumentou que não seria possível a
concessão do indulto porque João não havia cumprido integralmente a pena do
crime de tráfico de drogas (crime impeditivo do benefício). Logo, incidiria a
proibição contida no parágrafo único do art. 11 do Decreto. Vejamos novamente a
redação:
Art. 5º (...)
Parágrafo único. Não será concedido
indulto natalino correspondente a crime não impeditivo (em nosso exemplo: furto
simples) enquanto a pessoa condenada não cumprir a pena pelo crime impeditivo
do benefício (em nosso exemplo: tráfico), na hipótese de haver concurso com os
crimes a que se refere o art. 7º, ressalvada a concessão fundamentada no inciso
III do caput do art. 1º.
O réu, assistido pela Defensoria
Pública, recorreu alegando que a
aplicação do parágrafo único do art. 11 seria restrita à hipótese de concurso
de crimes.
Assim, a exigência de cumprimento integral da pena do crime impeditivo (ex:
tráfico de drogas) somente incidiria nas hipóteses de “concurso de crimes”, e
não nas hipóteses de “soma ou unificação das penas”.
Pela leitura do parágrafo único do art. 11 do Decreto, somente haveria a
soma (concurso material ou formal impróprio) ou unificação (crime continuado ou
concurso formal próprio) para fins do Decreto Presidencial quando se tratar de concurso
de crimes — ou seja, multiplicidade de crimes praticados num mesmo contexto
e processados no mesmo processo de conhecimento.
Desse modo, quando se tratar de soma ou unificação das penas decorrentes
de condenações em processos distintos, havendo uma condenação por crime
impeditivo, somente essa condenação não seria passível de indulto.
Em outras palavras, para a
Defensoria Pública:
- se os furtos tivessem sido
praticados em concurso com o tráfico de drogas, aí sim se aplicaria o parágrafo
único do art. 11;
- como não houve concurso, o
condenado tem direito ao indulto para os crimes não impeditivos (furtos) e
continuará cumprindo pena somente pelo crime impeditivo (tráfico de drogas).
Como os crimes de furto ocorreram em momento e processos distintos do
crime impeditivo (tráfico de drogas), ou seja, sem concurso com o crime
impeditivo, a concessão do indulto não estaria condicionada ao cumprimento da
pena pelo crime impeditivo.
Os argumentos da Defensoria
Pública foram acolhidos pelo STJ?
NÃO.
O STJ até possuía julgados no
mesmo sentido do que a Defensoria alegou. Nesse sentido: STJ. 3ª Seção. AgRg no
HC 856.053-SC, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, julgado em 8/11/2023 (Info 16 –
Edição Extraordinária); STJ. 6ª Turma. AgRg no HC 838.938-SP, Rel. Min. Antonio
Saldanha Palheiro, julgado em 18/3/2024 (Info 806).
Ocorre que o STJ foi obrigado a
mudar de entendimento porque o STF não concordou com a tese sustentada pela
defesa.
O STF decidiu que o crime
impeditivo do indulto, fundamentado no Decreto Presidencial nº 11.302/2022,
deve ser considerado tanto no concurso de crimes quanto em razão da unificação
de penas. Veja:
(...) Em cognição sumária e como medida de cautela, no
intuito de preservar a segurança jurídica em torno da interpretação dada ao
art. 11, parágrafo único, do Decreto nº 11.302/2022, entendo que deve
prevalecer a compreensão no sentido da impossibilidade da concessão do
benefício quando, realizada a unificação de penas, remanescer o cumprimento da
reprimenda referente aos crimes impeditivos para a concessão do benefício,
listados no art. 7º do Decreto.
5. Referendo da medida cautelar deferida, para a suspensão
imediata das ordens concedidas pelo Superior Tribunal de Justiça nos HCs
870.883, 872.808, 875.168 e 875.774.
STF. Plenário. SL 1698 MC-Ref, Rel. Min. Luís Roberto
Barroso (Presidente), julgado em 21/02/2024.
Diante disso, a fim de prezar
pela segurança jurídica, o STJ decidiu que deveria se curvar ao entendimento do
STF e modificar sua convicção, a fim de considerar que o crime impeditivo do
benefício do indulto, fundamentado no Decreto Presidencial nº 11.302/2022, deve
ser tanto o praticado em concurso como o remanescente em razão da unificação de
penas (STJ. 3ª Seção. AgRg no HC 890.929/SE, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior,
julgado em 24/4/2024).
Em suma:
O crime impeditivo do indulto, fundamentado no
Decreto Presidencial nº 11.302/2022, deve ser considerado tanto no concurso de
crimes quanto em razão da unificação de penas.
STJ. 3ª
Seção. AgRg no HC 890.929-SE, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, julgado em
24/4/2024 (Info 812).
Os crimes impeditivos do benefício do indulto, fundamentado no
Decreto Presidencial nº 11.302/2022, devem ser tanto os praticados em concurso,
como os remanescentes em razão da unificação de penas.
STJ. 6ª Turma. AgRg no HC 835.685-SC, Rel. Min. Jesuíno Rissato
(Desembargador convocado do TJDFT), julgado em 7/5/2024 (Info 811).