quarta-feira, 26 de junho de 2024
O magistrado pode exigir que a defesa apresente justificativa para que seja autorizada a intimação judicial das testemunhas? O magistrado pode exigir que, se a testemunha for abonatória, o seu depoimento oral seja substituído pela juntada de declaração escrita?
Imagine a seguinte situação hipotética:
João estava dirigindo seu veículo
em uma região de fronteira do Brasil com o Paraguai.
Ele foi parado pela polícia, em
uma blitz de rotina.
Os policiais encontraram no carro
de João 296 celulares da marca Xiaomi.
João confessou que a mercadoria
seria transportada para Londrina/PR e que ele não pagou imposto de importação
para trazer os produtos para o Brasil.
O MPF denunciou João pelo crime de
descaminho (art. 334, caput, do Código Penal).
A denúncia foi recebida.
Na resposta à acusação, o réu arrolou cinco testemunhas. O
advogado pediu que essas testemunhas fossem intimadas judicialmente, conforme
autoriza o art. 396-A do CPP:
Art. 396-A. Na resposta, o acusado poderá arguir
preliminares e alegar tudo o que interesse à sua defesa, oferecer documentos e
justificações, especificar as provas pretendidas e arrolar testemunhas,
qualificando-as e requerendo
sua intimação, quando necessário.
O juiz proferiu decisão
envolvendo dois pontos:
1) o magistrado negou o pedido
para que as testemunhas fossem intimadas judicialmente, sob o argumento de que
a defesa não apresentou razões que justificassem essa providência. Segundo
argumentou o juiz, em regra, as testemunhas de defesa são intimadas pela
própria defesa e a intimação judicial somente será determinada se for
apresentada uma justificativa para isso;
2) o magistrado afirmou que, se
as testemunhas que a defesa arrolou fossem apenas para defender o caráter e a
vida pregressa do réu (testemunhas abonatórias), elas não precisariam ser
ouvidas em juízo, bastando que o advogado juntasse uma declaração escrita delas
até a data da audiência.
Na audiência de instrução e
julgamento, as testemunhas de defesa arroladas por João não se apresentaram.
Somente foram ouvidas duas testemunhas de acusação e realizado o interrogatório
do réu.
Em alegações finais por
memoriais, a defesa arguiu a nulidade da audiência de instrução por violação ao
art. 396-A, caput, do CPP.
Em sentença, o magistrado rejeitou
a arguição de nulidade e condenou o réu.
O condenado interpôs sucessivos
recursos até que a questão chegou ao STJ.
O STJ concordou com a
defesa? Houve nulidade por ofensa ao art. 396-A do CPP?
SIM. A 5ª Turma do STJ deu
provimento ao recurso especial para anular os atos processuais desde a
audiência, determinando ao juízo criminal que intime judicialmente as
testemunhas da defesa.
Vamos analisar os dois pontos da
decisão que foi anulada pelo STJ.
1) O magistrado pode exigir
que o advogado/Defensor Público apresente, na resposta à acusação,
justificativa para que seja autorizada a intimação judicial das testemunhas?
NÃO.
O art. 396-A do CPP foi
introduzido no Código pela reforma processual operada pela Lei nº 11.719/2008. A
reforma teve como objetivo, entre outros aspectos, o de ampliar as
garantias do acusado, facultando-lhe o direito de arrolar testemunhas sem a
exigência de justificar previamente a necessidade de sua intimação. Essa
previsão coaduna-se com o princípio constitucional da ampla defesa, o qual
abrange não apenas o direito de resposta, mas também o direito à produção de
todas as provas relevantes para o esclarecimento da verdade.
Se a defesa requereu a intimação
judicial das testemunhas, há a presunção de que tal providência e tais
depoimentos são necessários. A exigência de uma justificação adicional para a
intimação das testemunhas arroladas implica um ônus desnecessário, que não
encontra respaldo no texto legal e representa uma limitação ao exercício da
defesa.
Além disso, se o juiz exige a apresentação das testemunhas à
audiência sem a devida intimação formal, caso elas não compareçam, não será
possível a condução coercitiva (art. 218 do CPP) e a aplicação de multa (art.
219 do CPP):
Art. 218. Se, regularmente intimada, a testemunha
deixar de comparecer sem motivo justificado, o juiz poderá requisitar à
autoridade policial a sua apresentação ou determinar seja conduzida por oficial
de justiça, que poderá solicitar o auxílio da força pública.
Art. 219. O juiz poderá aplicar à
testemunha faltosa a multa prevista no art. 453, sem prejuízo do processo penal
por crime de desobediência, e condená-la ao pagamento das custas da diligência.
Em outras palavras, ao determinar
a apresentação das testemunhas à audiência sem intimação judicial, o juiz inviabiliza
o exercício desses instrumentos necessários para garantir o depoimento das
testemunhas. Tal situação evidencia um claro cerceamento de defesa, ao
restringir indevidamente as possibilidades de o réu demonstrar sua versão dos
fatos.
Vale ressaltar que o Ministério
Público não é obrigado a solicitar a intimação de suas testemunhas. Logo, não
se pode impor essa exigência unicamente para a defesa. Ao se fazer isso, há um desequilíbrio
processual que compromete a imparcialidade e a equidade do processo. Há,
portanto, violação ao princípio da paridade de armas.
Conclui-se, portanto, que a
exigência de justificação para a intimação das testemunhas arroladas pela
defesa não apenas extrapola os limites do art. 396-A do CPP, como também
afronta os princípios da ampla defesa e da paridade de armas.
Adicionalmente, a estratégia de
mobilização das testemunhas diretamente pela defesa pode inadvertidamente
induzi-las a testemunhar sobre aspectos específicos, mesmo ante o
comprometimento formal e as advertências acerca das consequências legais
inerentes ao crime de falso testemunho. Tal prática detém o potencial de
acarretar danos significativos ao processo, comprometendo sua integridade e a
busca pela verdade material.
Importante registrar que essa
exigência representa um impedimento (obstáculo) à produção de prova oral. Isso
não configura mera irregularidade processual. Trata-se de claro cerceamento de
defesa que impacta diretamente o equilíbrio entre as partes e a capacidade da
defesa de apresentar uma contestação efetiva à acusação. Nesse contexto, a
impossibilidade de realizar a prova oral devido à ausência de intimação formal
das testemunhas arroladas constitui um prejuízo palpável e mensurável, que não
apenas compromete a posição processual da defesa, mas também desafia os
princípios basilares do processo penal democrático.
2) O magistrado pode exigir
que, se a testemunha for meramente abonatória, o seu depoimento oral em
audiência seja substituído pela mera juntada de declaração escrita?
NÃO.
A legislação processual penal, em
especial o art. 396-A do CPP, não estabelece critérios que diferenciem as
testemunhas por sua natureza (fática ou abonatória) para fins de intimação.
A exigência de uma justificação
para a intimação das testemunhas abonatórias, portanto, não encontra respaldo
legal expresso e implica uma limitação discricionária que compromete a essência
da defesa.
As testemunhas abonatórias
desempenham um papel fundamental no processo, ao atestar o caráter e a índole
do acusado. Esta função, longe de ser meramente acessória, pode influenciar
decisivamente na avaliação da credibilidade do réu e na interpretação dos fatos
em julgamento. Portanto, a premissa de que tais testemunhas possam ser
preteridas ou substituídas por declarações escritas, sem a devida oportunidade
de contraditório e inquirição em audiência, constitui um cerceamento do direito
de defesa.
É fundamental ressaltar que a
dinâmica do processo penal, solidamente ancorada nos princípios da oralidade,
contraditório e ampla defesa, exige que as partes tenham a liberdade de apresentar
uma vasta gama de provas relevantes para a descoberta da verdade. Assim, a
decisão que nega a intimação das testemunhas de defesa, permitindo somente a
apresentação de depoimentos escritos para testemunhas consideradas abonatórias,
sem apresentar uma justificação robusta que demonstre a inadmissibilidade ou
irrelevância de suas declarações orais, carece de fundamentação adequada.
A prática de limitar-se a aceitar
apenas depoimentos escritos de testemunhas abonatórias não se alinha, portanto,
com os princípios que regem o processo penal.
Em suma:
1) O indeferimento do pedido da intimação de
testemunhas de defesa pelo juízo criminal baseada unicamente na ausência de
justificativa para a intimação pessoal, previsto no art. 396-A do CPP,
configura cerceamento de defesa e infringe os princípios do contraditório e da
ampla defesa.
2) É vedado ao juízo recusar a intimação judicial das
testemunhas de defesa, nos termos do art. 396-A do CPP, por falta de
justificação do pedido, substituindo a intimação por declarações escritas das
testemunhas consideradas pelo juízo como meramente abonatórias, configurando
violação do princípio da paridade de armas e do direito de ampla defesa.
STJ. 5ª
Turma. REsp 2.098.923-PR, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 21/5/2024 (Info
813).