EM JUNHO DE 2022, O STJ DECIDIU O
ROL DE PROCEDIMENTOS DA ANS ERA TAXATIVO
Imagine a seguinte situação
hipotética:
João, cliente da Unimed, estava
acometido de uma doença grave.
Seu médico receitou determinado tratamento
hospitalar contínuo, que o paciente é obrigado a realizar todos os meses.
Ocorre que o plano de saúde não
autorizou o custeio, argumentando que esse tratamento não estava no rol de
procedimentos previstos pela Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS.
Diante disso, João ajuizou ação
contra a Unimed sustentando a tese de que o rol de procedimentos e eventos da
ANS é meramente explicativo (e não exaustivo). Assim, o autor pediu que o plano
de saúde fosse condenado a custear, todos os meses, esse tratamento.
O que decidiu o STJ? O rol
de procedimentos e eventos da ANS é meramente explicativo ou taxativo?
Antes de responder à pergunta,
vamos entender melhor o tema.
O que é a ANS?
ANS é a sigla para Agência
Nacional de Saúde Suplementar.
Trata-se de uma autarquia sob
regime especial criada pela Lei nº 9.961/2000.
Competência para elaborar a
lista de procedimentos
Uma das atribuições da ANS é a de elaborar uma lista de
procedimentos que deverão ser custeados pelas operadoras de planos de saúde.
Essa competência está prevista no art. 4º, III, da Lei nº 9.961/2000:
Art. 4º Compete à ANS:
(...)
III - elaborar o rol de procedimentos
e eventos em saúde, que constituirão referência básica para os fins do disposto
na Lei nº 9.656, de 3 de junho de 1998, e suas excepcionalidades;
Obs: a Lei nº 9.656/98 é a Lei
dos Planos de Saúde.
Assim, a ANS prepara uma lista de
tratamentos que deverão ser obrigatoriamente fornecidos pelos planos de saúde.
O art. 10, § 4º da Lei nº 9.656/98
também confere essa atribuição à ANS.
Esse rol da ANS é
obrigatório para os planos de saúde? Em outras palavras, se o tratamento
estiver ali previsto, o plano de saúde deverá fornecer?
SIM. Trata-se de um rol de
procedimentos de cobertura obrigatória.
Onde está, atualmente,
previsto esse rol?
Na Resolução Normativa RN nº
428/2017, atualizada pela RN 439/2018.
Diretrizes técnicas que
norteiam a elaboração deste rol
O rol da ANS, em consonância com
o Direito Comparado, foi elaborado com base em diretrizes técnicas que levaram
em consideração:
a) os princípios da Avaliação de
Tecnologias em Saúde - ATS;
b) a observância aos preceitos da
Saúde Baseada em Evidências - SBE; e
c) o resguardo da manutenção do
equilíbrio econômico-financeiro do setor.
Retomando o tema: qual é a
natureza do rol de procedimentos e eventos da ANS?
Em junho de 2022, a 2ª Seção do
STJ decidiu que o rol era, em regra, TAXATIVO, podendo ser mitigado quando
atendidos determinados critérios. Na ocasião, foram adotados os seguintes
parâmetros para a apreciação de casos concretos:
1 - O rol de Procedimentos e Eventos em
Saúde Suplementar é, em regra, taxativo;
3 - É possível a contratação de cobertura ampliada ou a
negociação de aditivo contratual para a cobertura de procedimento extra rol;
4 - Não havendo substituto
terapêutico ou esgotados os procedimentos do rol da ANS, pode haver, a título
excepcional, a cobertura do tratamento indicado pelo médico ou odontólogo
assistente, desde que:
(i) não tenha sido indeferido expressamente, pela ANS, a
incorporação do procedimento ao rol da Saúde Suplementar;
(ii) haja comprovação da eficácia do tratamento à luz da
medicina baseada em evidências;
(iii) haja recomendações de órgãos técnicos de renome nacionais
(como CONITEC e NATJUS) e estrangeiros; e
(iv) seja realizado, quando possível, o diálogo
interinstitucional do magistrado com entes ou pessoas com expertise técnica na
área da saúde, incluída a Comissão de Atualização do rol de Procedimentos e
Eventos em Saúde Suplementar, sem deslocamento da competência do julgamento do
feito para a Justiça Federal, ante a ilegitimidade passiva ad causam da ANS.
STJ. 2ª Seção. EREsps 1.886.929/SP e 1.889.704/SP, Rel. Min.
Luis Felipe Salomão, julgado em 08/06/2022 (Info 740).
EM SET/2022, FOI APROVADA A LEI 14.454/2022, EDITADA PARA
ALTERAR O ENTENDIMENTO DO STJ
A decisão do STJ acima mencionada causou
uma grande mobilização popular, porque sua repercussão atingia especialmente
pessoas com deficiência e com doenças raras, que necessitam de tratamentos
muitas vezes ainda não incorporados pela ANS.
Diante desse cenário, o Congresso
Nacional editou a Lei nº 14.454/2022, que buscou superar o entendimento firmado
pelo STJ no EREsp 1.886.929-SP.
A Lei nº 14.454/2022 alterou o art. 10 da Lei dos Planos de
Saúde (Lei nº 9.656/98), incluindo o § 12, que prevê o caráter exemplificativo
do rol da ANS (o dispositivo passou a falar em “referência básica”, ou seja, um
mínimo de procedimentos). Veja:
Art. 10 (...)
§ 12. O rol de procedimentos e
eventos em saúde suplementar, atualizado pela ANS a cada nova incorporação,
constitui a referência
básica para os planos privados de assistência à saúde contratados a
partir de 1º de janeiro de 1999 e para os contratos adaptados a esta Lei e fixa
as diretrizes de atenção à saúde.
Vale ressaltar, contudo, que, para o plano de saúde ser
compelido a custear, é necessário que esteja comprovada a eficácia do
tratamento ou procedimento, nos termos do § 13, também inserido:
§ 13. Em caso de tratamento ou procedimento prescrito por
médico ou odontólogo assistente que não estejam previstos no rol referido no §
12 deste artigo, a cobertura deverá ser autorizada pela operadora de
planos de assistência à saúde, desde que:
I - exista comprovação da
eficácia, à luz das ciências da saúde, baseada em evidências científicas e
plano terapêutico; ou
II - existam recomendações pela
Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde
(Conitec), ou exista recomendação de, no mínimo, 1 (um) órgão de avaliação de
tecnologias em saúde que tenha renome internacional, desde que sejam aprovadas
também para seus nacionais.
Obs: a Lei nº 14.454/2022 entrou em
vigor no dia 22/09/2022.
STJ DECIDIU QUE A LEI 14.454/2022 ALTEROU A CONFIGURAÇÃO DO
ROL DE PROCEDIMENTOS DA ANS, MAS QUE ESSA MUDANÇA NÃO É RETROATIVA
Alegação de que a Lei nº
14.454/2022 seria uma forma de interpretação autêntica e deveria ser aplicada
retroativamente
Vamos voltar à nossa situação
hipotética:
Suponhamos que, em janeiro de
2022, João ajuizou a ação contra o plano de saúde sustentando a tese de que o
rol procedimentos e eventos da ANS é meramente explicativo (e não exaustivo).
Assim, o autor pediu que o plano de saúde fosse condenado a custear, todos os
meses, esse tratamento.
Em junho de 2022, o juiz,
invocando a decisão do STJ no EREsp 1.886.929/SP, julgou o pedido improcedente
sob o argumento de que o rol seria taxativo.
Em setembro de 2022, o TJ manteve
a sentença.
Três dias depois do acórdão do TJ,
entrou em vigor a Lei nº 14.454/2022.
Diante disso, João interpôs
recurso especial alegando o seguinte:
- o STJ, de fato, nos EREsps
1.886.929/SP e 1.889.704/SP, decidiu que o rol da ANS seria taxativo;
- ocorre que o Congresso
Nacional, órgão responsável pela Lei dos Planos de Saúde (Lei nº 9.656/98),
editou a Lei nº 14.454/2022, afirmando que o rol é exemplificativo;
- isso significa que o Congresso
Nacional, ao editar a Lei nº 14.454/2022, realizou uma interpretação autêntica
para espancar qualquer dúvida sobre a natureza exemplificativa do rol de
procedimentos e eventos em saúde da ANS, mesmo com os temperamentos do § 13,
acrescentado ao art. 10 da Lei nº 9.656/98.
João argumentou, então, que as
disposições da Lei nº 14.454/2022 deveriam ser aplicadas retroativamente para
os processos que ainda estivessem em curso. Em outras palavras, João afirmou:
como meu processo ainda não foi julgado, deve-se aplicar a Lei nº 14.454/2022 a
fim de que o plano de saúde seja obrigado a ressarcir os custos que estou tendo
mensalmente desde janeiro de 2022, quando ingressei com a ação e o plano foi
citado.
Assim, o rol exemplificativo da
Lei nº 14.454/2022 deve ser aplicado retroativamente.
O STJ concordou com essa
tese?
NÃO.
A Lei nº 14.454/2022 modificou o formato da lista da ANS. Em
razão disso, o Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, redator para o acórdão, afirmou
que não faz mais sentido discutir se o rol é taxativo ou exemplificativo. Confira
as exatas palavras do Ministro:
(...) a Lei nº
14.454/2022 promoveu alteração na Lei nº 9.656/1998 para estabelecer critérios
que permitam a cobertura de exames ou tratamentos de saúde que não estão
incluídos no Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde Suplementar.
Assim, com a
edição da Lei nº 14.454/2022, o Rol da ANS passou por sensíveis modificações em
seu formato, suplantando a
eventual oposição rol taxativo/rol exemplificativo.
Cabe ressaltar
que os efeitos práticos do ‘rol taxativo mitigado’ ou do ‘rol exemplificativo
mitigado’ serão similares, isto é, tais efeitos ultrapassam eventuais rótulos
reducionistas (...)”
Com a edição da Lei nº
14.454/2022, o procedimento de análise do deferimento, ou não, do tratamento
pode ser assim resumido:
Enunciado nº 109 das Jornadas de Direito da Saúde do CNJ: Solicitado
procedimento ou tratamento médico não previsto no Rol da ANS, cabe verificar,
além das condições legais descritas no artigo 10, § 13 da Lei nº 9.656/98:
a) se existe, para o tratamento do paciente, outro procedimento eficaz,
efetivo e seguro já incorporado ao Rol da ANS;
b) se não foi indeferida pela ANS a incorporação do procedimento
ou tratamento;
c) se há expressa exclusão regulamentar ou legal em relação ao
procedimento ou tratamento solicitado;
d) se há notas ou pareceres técnicos de órgãos tais como a
Conitec e o NatJus que avaliaram tecnicamente a eficácia, acurácia e
efetividade do plano terapêutico.
Como argumento para negar a retroatividade, o STJ afirmou o
seguinte: ainda que se cogite que a alteração
legislativa promovida pela Lei nº 14.454/2022 foi uma forma de “interpretação autêntica”,
mesmo assim essa mudança não produz efeitos retroativos, operando apenas
efeitos ex nunc, já que a nova regra modificadora ostenta caráter inovador.
É o que defende Carlos Maximiliano:
“92 - Opera-se
a exegese autêntica, em regra, por meio de disposição geral, e, ainda que
defeituosa, injusta, em desacordo com o verdadeiro espírito do texto primitivo,
prevalece enquanto não a revoga o Poder Legislativo; é obrigatória, deve ser
observada por autoridades e particulares. Entretanto só se aplica aos casos
futuros, não vigora desde a data do ato interpretado, respeita os direitos
adquiridos em consequência da maneira de entender um dispositivo por parte do
Judiciário, ou do Executivo.
(...)
Por outro
lado, é quase impossível fazer uma norma exclusivamente interpretativa, simples
declaração do sentido e alcance de outra; em verdade, o que se apresenta com
esse caráter, é uma nova regra, semelhante à primeira e desta modificadora de
modo quase imperceptível. (...)”
(MAXIMILIANO,
Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 18ª ed., Rio de Janeiro: Forense,
1999, p. 88)
Embora
a lei nova não possa, em regra, retroagir, é possível a sua aplicação imediata,
ainda mais em contratos de trato sucessivo.
Dessa
forma, nos tratamentos de caráter continuado, deverão ser observadas, a partir
da sua vigência, as inovações trazidas pela Lei nº 14.454/2022, diante da
aplicabilidade imediata da lei nova.
Na prática significa o que para
João:
- até 21/09/2022, o plano de
saúde não é obrigado a pagar para ele o tratamento prescrito. Isso porque até
essa data, vigorava o rol taxativo e a Lei nº 14.454/2022 não pode retroagir
para mudar essa situação;
- no dia 22/09/2022, entrou em
vigor a Lei nº 14.454/2022. Essa lei tem aplicação imediata (e não retroativa).
Isso significa que, a partir dessa data, o plano de saúde passou a ser obrigado
a custear o tratamento, preenchidos os requisitos do § 13 do art. 10 da Lei nº
9.656/98.
A respeito dos graus de retroatividade, cumpre colacionar o
seguinte trecho do voto proferido pelo Min. Roberto Barroso na ADI nº 1.220/DF:
“6. (...)
Seguindo essa lógica, a retroatividade máxima ocorre 'quando a lei nova abrange
a coisa julgada (sentença irrecorrível) ou os fatos jurídicos consumados'; a
retroatividade média se dá 'quando a lei nova
atinge os
direitos exigíveis, mas não realizados antes de sua vigência'; a retroatividade
mínima sucede 'quando a lei nova atinge apenas os efeitos dos fatos anteriores,
verificados após a sua entrada em vigor'. De acordo com distinção feita pelo
Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADC 29, Rel. Min. Luiz Fux, j. em
16.02.2012, a retroatividade mínima se diferencia das hipóteses em que ocorre a
aplicação imediata da lei porque 'enquanto nesta [retroatividade mínima] são
alteradas, por lei, as consequências jurídicas de fatos ocorridos anteriormente
– consequências estas certas e previsíveis ao tempo da ocorrência do fato –,
naquela [aplicação imediata da lei] a lei atribui novos efeitos jurídicos, a
partir de sua edição, a fatos ocorridos anteriormente'.
7. A
jurisprudência do Supremo Tribunal Federal não considera possível que a lei
disponha retroativamente, ainda que veicule normas de ordem pública (RE
204.769, Rel. Min. Celso de Mello, j. em 10.12.1996). A Corte admite, no
entanto, a aplicação imediata de leis que estipulem regras que não possam ser
modificadas pela vontade das partes, para alcançar direitos ainda não
adquiridos sob a vigência de lei anterior.” (STF, ADI nº 1.220/DF, Rel. Min.
ROBERTO BARROSO, DJe 13/3/2020).
É por isso que não se pode
agregar efeito retroativo à nova lei, ainda que com base em interpretação que
busque resgatar, com temperamentos, entendimentos jurisprudenciais já
superados.
Logo, deve ser mantida a
jurisprudência da Segunda Seção do STJ, que uniformizou a interpretação da
legislação da época, devendo incidir aos casos regidos pelas normas que
vigoravam quando da ocorrência dos fatos, podendo a nova lei incidir, a partir
de sua vigência, aos fatos daí sucedidos.
Em suma:
Nos tratamentos de caráter continuado, deverão ser
observadas, a partir da sua vigência, as inovações trazidas pela Lei n.
14.454/2022, diante da aplicabilidade imediata da lei nova.
STJ. 2ª Seção.
REsp 2.037.616-SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, Rel. para acórdão Min. Ricardo
Villas Bôas Cueva, julgado em 24/4/2024 (Info 812).
Pela relevância do assunto,
confira alguns trechos da ementa:
2. Quando do julgamento
dos EREsps nºs 1.886.929/SP e 1.889.704/SP, a Segunda Seção desta Corte
Superior uniformizou o entendimento de ser o Rol da ANS, em regra, taxativo,
podendo ser mitigado quando atendidos determinados critérios.
3. A Lei nº 14.454/2022
promoveu alteração na Lei nº 9.656/1998 (art. 10, § 13) para estabelecer
critérios que permitam a cobertura de exames ou tratamentos de saúde que não
estão incluídos no Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde Suplementar.
4. Com a edição da Lei
nº 14.454/2022, o Rol da ANS passou por sensíveis modificações em seu formato,
suplantando a eventual oposição rol taxativo/rol exemplificativo.
5. A superveniência do
novo diploma legal (Lei nº 14.454/2022) foi capaz de fornecer nova solução
legislativa, antes inexistente, provocando alteração substancial do complexo
normativo. Ainda que se quisesse cogitar, erroneamente, que a modificação legislativa
havida foi no sentido de trazer uma “interpretação autêntica”, ressalta-se que
o sentido colimado não vigora desde a data do ato interpretado, mas apenas
opera efeitos ex nunc, já que a nova regra modificadora ostenta caráter
inovador.
6. Em âmbito cível,
conforme o Princípio da Irretroatividade, a lei nova não alcança fatos
passados, ou seja, aqueles anteriores à sua vigência. Seus efeitos somente
podem atingir fatos presentes e futuros, salvo previsão expressa em outro
sentido e observados o ato jurídico perfeito, a coisa julgada e o direito
adquirido.
7. Embora a lei nova
não possa, em regra, retroagir, é possível a sua aplicação imediata, ainda mais
em contratos de trato sucessivo.
Assim, nos tratamentos
de caráter continuado, deverão ser observadas, a partir da sua vigência, as
inovações trazidas pela Lei nº 14.454/2022, diante da aplicabilidade imediata
da lei nova.
Aplicação também do
Enunciado nº 109 das Jornadas de Direito da Saúde, ocorridas sob a coordenação
do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). (...)
(REsp n. 2.037.616/SP,
relatora Ministra Nancy Andrighi, relator para acórdão Ministro Ricardo Villas
Bôas Cueva, Segunda Seção, julgado em 24/4/2024, DJe de 8/5/2024.)