domingo, 9 de junho de 2024

Há responsabilidade civil de empresa organizadora de competição automobilística que deixa de prestar socorro a piloto que falece por afogamento após acidente durante o percurso

Vamos relembrar o que é a teoria da perda de uma chance

Trata-se de teoria inspirada na doutrina francesa (perte d’une chance). Na Inglaterra é chamada de loss-of-a-chance.

Segundo esta teoria, se alguém, praticando um ato ilícito, faz com que outra pessoa perca uma oportunidade de obter uma vantagem ou de evitar um prejuízo, esta conduta enseja indenização pelos danos causados.

Em outras palavras, o autor do ato ilícito, com a sua conduta, faz com que a vítima perca a oportunidade de obter uma situação futura melhor.

Com base nesta teoria, indeniza-se não o dano causado, mas sim a chance perdida.

A teoria da perda de uma chance é adotada no Brasil. No entanto, exige-se que o dano seja REAL, ATUAL e CERTO, dentro de um juízo de probabilidade, e não mera possibilidade, porquanto o dano potencial ou incerto, no espectro da responsabilidade civil, em regra não é indenizável (REsp 1.104.665-RS, Rel. Min. Massami Uyeda, julgado em 9/6/2009).

A chance perdida deve ser REAL e SÉRIA, que proporcione ao lesado efetivas condições pessoais de concorrer à situação futura esperada (AgRg no REsp 1220911/RS, Segunda Turma, julgado em 17/03/2011).

 

Imagine agora a seguinte situação hipotética:

João participava de uma competição automobilística, denominada “Rally Motors”, organizada pela Alfa Ltda., quando perdeu a direção do veículo e caiu nas águas de um rio existente no local.

Apesar de o evento contar com ambulâncias e equipe médica disponíveis, elas não foram enviadas imediatamente ao local do acidente. O socorro foi feito pelos próprios participantes do evento e pela equipe de apoio que conseguiram retirar o piloto do veículo, mas que já estava sem sinais vitais.

Vale ressaltar que o acidente foi comunicado à direção do evento, mas, mesmo assim, em nenhum momento as ambulâncias ou a equipe médica se deslocaram ao local do acidente, nem para prestar socorro, nem para confirmar se o piloto realmente tinha falecido.

Regina, esposa de João, ajuizou ação de indenização por danos morais em face da empresa organizadora da competição. Argumentou que a ré deveria ter disponibilizado socorro e, em razão de sua omissão, teria excluído qualquer possibilidade de sobrevivência do piloto.

 

A empresa organizadora da competição foi condenada a indenizar?

SIM.

O STJ reconheceu que há responsabilidade civil de empresa organizadora de competição automobilística que deixa de prestar socorro a piloto que falece, por afogamento, em razão de capotamento e queda de automóvel em rio durante o percurso.

A organizadora de competição automobilística, que dispõe de ambulâncias com equipe médica e deixa de enviá-las para socorrer piloto participante que sofreu acidente durante o percurso, pratica ato ilícito pela falta do dever de cuidado esperado, resultando em dano moral, ao frustrar a legítima expectativa de assistência e causar profundo sofrimento e desamparo.

Vale ressaltar que não se imputa à organizadora do evento a responsabilidade pelo resultado morte. Não se trata, portanto, de analisar se a sua conduta contribuiu para a morte da vítima.

O que se concluiu é que a conduta omissiva da ré de, deliberadamente, ter deixado de enviar ambulâncias ao local do acidente resultou na perda de uma chance de a vítima sobreviver.

De acordo com a teoria da perda de uma chance, a expectativa ou a chance de alcançar um resultado ou de evitar um prejuízo é um bem que merece proteção jurídica e deve, por isso, ser indenizado. Assim, a simples privação indevida da chance de cura ou sobrevivência é passível de ser reparada.

Se a ambulância prestasse de prontidão o socorro – como era de se esperar nessa espécie de evento –, havia, ao menos, uma chance de que a vítima fosse socorrida de forma mais rápida, tendo, assim, maiores chances de sobrevida.

No entanto, nunca se saberá se seria possível salvar a vítima, justamente porque essa chance foi retirada da vítima (e, por reflexo, de sua família) por causa da omissão (negligência) da organizadora, estando provado o nexo causal necessário.

O nexo causal que autoriza a responsabilidade pela aplicação da teoria da perda de uma chance é aquele entre a conduta omissiva ou comissiva do agente e a chance perdida, sendo desnecessário que esse nexo se estabeleça diretamente com o dano final.

No caso concreto, se a empresa organizadora da competição houvesse enviado imediatamente uma ambulância ao local do acidente havia chance séria e concreta de que se teria conseguido promover o resgate em menor tempo e que, sendo prestada assistência médica ao piloto, aumentaria significativamente as chances de ele sobreviver.

 

Em suma:

De acordo com a teoria da perda de uma chance, há responsabilidade civil de empresa organizadora de competição automobilística que deixa de prestar socorro a piloto que falece por afogamento após acidente durante o percurso. 

STJ. 3ª Turma. REsp 2.108.182-MG, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 16/4/2024 (Info 811).


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