Dizer o Direito

sexta-feira, 28 de junho de 2024

É inconstitucional a concessão de bonificação de inclusão regional incidente sobre a nota final do Enem para o ingresso em universidade federal

STF decidiu as cotas baseadas em critérios étnico-racial é constitucional; também são válidas as cotas para alunos de escolas públicas

Algumas universidades públicas em nosso país adotam sistemas de cotas.

Por meio deste sistema, alguns alunos, por ostentarem características peculiares ligadas à cor, etnia, classe social ou por serem oriundos de escolas públicas têm direito a um percentual de vagas que não é submetido à concorrência ampla.

O STF afirmou que, em regra, esse sistema de cotas é constitucional. Nesse sentido:

O sistema de cotas em universidades, com base em critério étnico-racial, é CONSTITUCIONAL.

É também constitucional fixar cotas para alunos que sejam egressos de escolas públicas.

STF. Plenário. RE 597285/RS, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgado em 9/5/2012.

 

STF tem decidido que é inconstitucional o sistema de cotas baseado no local onde o aluno estudou

O Reitor da Universidade Federal do Maranhão (UFMA) editou a Resolução nº 2.648/2022 que, em linhas gerais, disse que, se o aluno que fizer o Enem (Exame Nacional do Ensino Médio), concluiu o ensino médio nos Municípios das microrregiões do Estado, ele terá um acréscimo em sua nota final, ou seja, uma espécie de bonificação.

Veja os arts. 1º e 2º dessa Resolução:

Art. 1º Estabelecer o critério de inclusão regional, acréscimo na nota final do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) no Sistema de Seleção Unificada (SISU), com o objetivo de estimular o ingresso aos cursos mais concorridos da Universidade Federal do Maranhão (UFMA) dos estudantes que concluíram o Ensino Médio nas microrregiões, conforme o disposto nos arts. 4º e 6º desta Resolução ou no Estado do Maranhão.

Parágrafo Único. Este critério de inclusão regional é válido para os candidatos que concorrerem na modalidade de ampla concorrência nos cursos de Medicina ofertados nos campi de Imperatriz, Pinheiro e São Luís.

Art. 2º A política afirmativa de bonificação regional não será aplicada para os demais cursos de graduação oferecidos pela UFMA.

(...)

 

O bônus foi fixado tão somente para o ingresso no curso de medicina, sob a justificativa da dificuldade de arregimentação de médicos para a localidade.

João queria cursar medicina na UFMA. Se não existisse o sistema de bonificação, a nota que ele obteve no Enem seria suficiente para conseguir uma vaga na Universidade. Ocorre que, em razão de ele não se enquadrar como beneficiário da cota, acabou perdendo a vaga para um aluno oriundo de uma escola do interior do Estado e que recebeu a bonificação.

João não concordou e impetrou mandado de segurança, na primeira instância da Justiça Federal, pedindo que a bonificação para inclusão regional fosse declarada inconstitucional e, que, em razão disso, ele tivesse direito à vaga.

O Juiz Federal, contudo, rejeitou o pedido.

Inconformado, João ingressou com reclamação, diretamente no STF, argumentando que essa decisão do magistrado desrespeitou a autoridade das decisões proferidas pelo STF no julgamento da ADI 4.868 e no RE 614.873:

É inconstitucional a lei distrital que preveja que 40% das vagas das universidades e faculdades públicas do Distrito Federal serão reservadas para alunos que estudaram em escolas públicas do Distrito Federal.

Essa lei, ao restringir a cota apenas aos alunos que estudaram no Distrito Federal, viola o art. 3º, IV e o art. 19, III, da CF/88, tendo em vista que faz uma restrição injustificável entre brasileiros.

Vale ressaltar que a inconstitucionalidade não está no fato de ter sido estipulada a cota em favor de alunos de escolas públicas, mas sim em razão de a lei ter restringido as vagas para alunos do Distrito Federal, em detrimento dos estudantes de outros Estados da Federação.

STF. Plenário ADI 4868, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 27/03/2020.

 

É inconstitucional lei estadual que assegura, de forma infundada e/ou desproporcional, percentual das vagas oferecidas para a universidade pública local a candidatos que cursaram integralmente o ensino médio em instituições públicas ou privadas da mesma unidade federativa.

Essa lei viola a garantia de tratamento igualitário a todos os cidadãos brasileiros, que veda a criação de distinções ou preferências entre si (art. 19, III, da CF/88).

STF. Plenário. RE 614.873/AM, Rel. Min. Marco Aurélio, redator do acórdão Min. Alexandre de Moraes, julgado em 19/10/2023 (Repercussão Geral – Tema 474) (Info 1113).

 

Em regra, caberia reclamação neste caso?

NÃO. Isso porque o STF exige o esgotamento das instâncias ordinárias para examinar reclamação ajuizada com o objetivo de corrigir decisão pela qual se aplica a sistemática da repercussão geral.

Nesse sentido é o art. 988, § 5º, II, do CPC/2015:

Art. 988. Caberá reclamação da parte interessada ou do Ministério Público para:

(...)

§ 5º É inadmissível a reclamação:

(...)

II – proposta para garantir a observância de acórdão de recurso extraordinário com repercussão geral reconhecida ou de acórdão proferido em julgamento de recursos extraordinário ou especial repetitivos, quando não esgotadas as instâncias ordinárias.

 

Contudo, havendo perigo de perecimento de direito pelo decurso do tempo, o STF tem relativizado essa exigência e admitido a análise da reclamação para corrigir comprovada má aplicação de tese da repercussão geral pelas instâncias de origem.

 

Demonstrado o perigo de perecimento do direito pelo decurso do tempo, pode ser relativizada a exigência do esgotamento das instâncias ordinárias (art. 988, § 5º, II, CPC/2015) e admitida a reclamação, a fim de corrigir a má aplicação de tese da repercussão geral e garantir direitos.

STF. 1ª Turma. Rcl 65.976/MA, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgado em 21/05/2024 (Info 1138).

 

No caso em exame, o reclamante informa risco de perecimento de seu direito, pois a Universidade Federal do Maranhão daria continuidade ao procedimento de matrícula e início do ano letivo para os demais alunos aprovados para o curso de medicina e a sua vaga seria preenchida por outro aluno, eventualmente beneficiado pelo bônus de inclusão regional de 20% incidente sobre a nota obtida no ENEM. Entretanto, pelo que predomina na jurisprudência do STF, contraria o princípio constitucional da isonomia exigência de atendimento a critério que distingue os brasileiros ou criam preferências entre eles, sobretudo pela sua origem.

Assim, haveria risco de perecimento do direito, em face da continuidade do procedimento de matrícula e início do ano letivo para os demais alunos aprovados no curso de medicina, e da possibilidade da vaga do reclamante, nesse curso, ser preenchida por outro aluno eventualmente beneficiado por um bônus de inclusão regional.

Como corolário do princípio da isonomia (art. 5º, caput, CF/88), o texto constitucional enuncia expressamente ser vedado à União, aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si (art. 19, III, CF/88).

Apesar da melhor das intenções, a fixação do aludido critério, embasado apenas na origem ou na procedência dos cidadãos, contraria o princípio da igualdade e afronta a autoridade de decisões proferidas pelo STF.

 

É inconstitucional — por violar o princípio da igualdade — o estabelecimento de bonificação de inclusão regional incidente sobre a nota final do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), no Sistema de Seleção Unificada (Sisu), para o ingresso em universidade federal, a beneficiar os alunos que concluíram o ensino médio nas imediações da instituição de ensino, mesmo que o bônus seja fixado tão somente para o ingresso no curso de medicina, sob a justificativa da dificuldade de arregimentação de médicos para a localidade.

STF. 1ª Turma. Rcl 65.976/MA, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgado em 21/05/2024 (Info 1138).

 

Com base nesses e em outros entendimentos, a Primeira Turma, por unanimidade, julgou procedente a reclamação para, confirmando a medida liminar deferida, cassar a decisão reclamada e determinar que outra seja proferida, em observância ao decidido por este Tribunal na ADI 4.868/DF e no RE 614.873/AM, paradigma do Tema 474 da repercussão geral, prejudicado o agravo regimental interposto.

 

Observação pessoal:

Se você reparar bem neste caso o STF, apesar de não falar expressamente isso (portanto, não mencione em uma prova de concurso), adotou a teoria da transcendência dos motivos determinantes. Isso porque os dois precedentes invocados como violados (ADI 4868 e RE 614.873/AM) não se referiam à Resolução nº 2.648/2022 nem a qualquer outro ato relacionado com a Universidade Federal do Maranhão.

Perceba, assim, que, na prática, o STF afirmou que a decisão reclamada violou os fundamentos de dois paradigmas do STF que não tratavam exatamente da mesma situação enfrentada na decisão reclamada.

Trata-se, contudo, de uma mera observação pessoal que não constou expressamente dos debates.

Importante também relembrar que essa mesma solução que o STF deu no caso acima ele também utiliza nas reclamações envolvendo afronta à liberdade de expressão. Nesse sentido: STF. 1ª Turma. Rcl 22328/RJ, Rel. Min. Roberto Barroso, julgado em 6/3/2018 (Info 893).

 

Esqueceu o que é a teoria da transcendência dos motivos determinantes? Vamos relembrar:

A Constituição Federal, em seu art. 102, § 2º, estabelece os efeitos da decisão proferida pelo STF no controle abstrato de constitucionalidade:

Art. 102 (...)

§ 2º As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal.

 

Vou explicar melhor esses efeitos:

1) Quanto ao aspecto SUBJETIVO (quem é atingido pela decisão?)

• Eficácia contra todos (erga omnes).

• Efeito vinculante.

 

2) Quanto ao aspecto OBJETIVO (que partes da decisão produzem eficácia erga omnes e efeito vinculante?)

1ª corrente: teoria restritiva.

Somente o dispositivo da decisão produz efeito vinculante.

Os motivos invocados na decisão (fundamentação) não são vinculantes.

 

2ª corrente: teoria extensiva.

Além do dispositivo, os motivos determinantes (ratio decidendi) da decisão também são vinculantes.

Admite-se a transcendência dos motivos que embasaram a decisão.

Em suma, pela teoria da transcendência dos motivos determinantes (efeitos irradiantes dos motivos determinantes), a ratio decidendi, ou seja, os fundamentos determinantes da decisão também teriam efeito vinculante.

Ocorre que o STF, em regra, não adota a teoria da transcendência dos motivos determinantes (teoria extensiva).

O STF já chegou a manifestar apreço pela teoria da transcendência dos motivos determinantes, mas atualmente, a posição da Corte é no sentido de que não pode ser acolhida.


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