O caso concreto foi o seguinte:
A
Procuradoria-Geral da República ajuizou arguição de descumprimento de preceito
fundamental pedindo que o STF proíba que, durante a apuração e o julgamento de
crimes contra a dignidade sexual, sejam feitos questionamentos sobre a vida
sexual pregressa da vítima e seu modo de vida.
Nesses
tipos de processos é comum o questionamento feito por policiais, delegados,
promotores, advogados e juízes sobre o tipo de roupa que a mulher usava, se
ingeriu álcool, se era virgem ou com quem se relacionava.
A
PGR sustentou que tais perguntas desqualificam a vítima, caracterizando uma
descriminação contra mulher, pois busca justificar o crime a partir do
comportamento da vítima, dando a entender que a mulher teria culpa pela
violência sofrida.
A
PGR alega que o discurso de desqualificação da vítima, mediante a análise e a
exposição de sua conduta e hábitos de vida, parte da “concepção odiosa” de que
seria possível distinguir mulheres que merecem ou não a proteção penal pela
violência sofrida. “Em ambiente que haveria de ser de acolhimento, a mulher
vítima de violência passa a ser, ela própria, julgada em sua moral e seu modo
de vida, na tentativa da defesa de justificar a conduta do agressor, e sem a
reprimenda proporcional pelo Estado”.
Outro
argumento é o de que, na investigação de crimes relacionados à violência sexual
contra a mulher, o consentimento da vítima é o único elemento a ser apreciado.
Considerações sobre seu comportamento partem de conduta enviesada e
discriminatória e devem ser prontamente contidas e repreendidas.
Requereu,
portanto, que o STF vedasse expressamente a prática de desqualificação da
vítima – em geral promovida pela defesa do acusado –, bem como a consideração
ou ratificações judiciais de alegações nesse sentido que direcione o julgamento
respectivo para a absolvição do acusado ou que o beneficie na aplicação da
pena. Para o PGR, essa prática é inconstitucional e deve ser invalidada,
impondo-se aos órgãos que conduzem o processo criminal a obrigação de
prontamente coibi-la e de responsabilizar quem impõe violência psicológica à
vítima.
Os argumentos invocados pelo PGR foram
acolhidos pelo STF?
SIM.
A
Constituição Federal garante a dignidade humana (art. 1º, III) e a igualdade
entre homens e mulheres (art. 3º, I e IV; art. 5º, caput e I; e art. 226, § 5º):
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união
indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em
Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
(...)
III - a dignidade da pessoa humana;
Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do
Brasil:
I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;
(...)
IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo,
cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes:
I - homens e
mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição;
Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
(...)
§ 5º Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos
igualmente pelo homem e pela mulher.
Apesar
da evolução legal e constitucional, o Estado e a sociedade brasileira continuam
aceitando a discriminação e a violência de gênero contra a mulher na apuração e
judicialização dos atentados contra ela, principalmente nos crimes contra a
dignidade sexual.
De
fato, é comum que, nas audiências, a vítima seja inquirida quanto à sua vida
pregressa e aos seus hábitos sexuais para que tais elementos sejam utilizados
como argumentos para justificar a conduta do agressor.
Essas
práticas não possuem base legal nem constitucional e foram construídas para
relativizar a violência contra a mulher e gerar tolerância em relação a
estupros praticados contra aquelas cujo comportamento fugisse do que era
considerado aceitável pelo agressor. Nesses casos, culpa-se a vítima pela
conduta delituosa do agente.
Nesse
contexto, todos os Poderes da República devem atuar conjuntamente para coibir a
violência de gênero, especialmente a vitimização secundária da pessoa agredida
em sua dignidade sexual.
Questionar
o histórico da vida sexual ou o modo de vida da vítima durante a apuração e
julgamento dos crimes de violência contra a mulher viola a Constituição
Federal. Se isso ocorrer, o processo pode ser anulado, nos termos dos arts. 563
a 573 do CPP.
O
STF definiu, ainda, que o juiz responsável pelo julgamento desses crimes tem o
dever de impedir tal prática durante a investigação, sob pena
de responsabilização administrativa e penal.
De
igual modo, o magistrado não pode levar em consideração a vida sexual da vítima
no momento de fixar a pena do réu.
Em suma:
É inconstitucional a prática de desqualificar a mulher
vítima de violência durante a instrução e o julgamento de crimes contra a
dignidade sexual e todos os crimes de violência contra a mulher, de maneira que
se proíbe eventual menção, inquirição ou fundamentação sobre a vida sexual
pregressa ou o modo de vida da vítima em audiências e decisões judiciais.
STF. Plenário. ADPF 1.107/DF, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgado em
23/05/2024 (Info 1138).
Com
base nesses entendimentos, o Plenário do STF, por unanimidade, julgou
procedente o pedido para:
(i) conferir
interpretação conforme a Constituição à expressão elementos alheios aos fatos
objeto de apuração posta no art. 400-A do CPP, para excluir a
possibilidade de invocação, pelas partes ou procuradores, de elementos
referentes à vivência sexual pregressa da vítima ou ao seu modo de vida em
audiência de instrução e julgamento de crimes contra a dignidade sexual e de
violência contra a mulher, sob pena de nulidade do ato ou do julgamento,
nos termos dos arts. 563 a 573 do CPP/1941;
Art. 400-A. Na audiência de instrução e julgamento, e, em especial, nas
que apurem crimes contra a dignidade sexual, todas as partes e demais sujeitos
processuais presentes no ato deverão zelar pela integridade física e
psicológica da vítima, sob pena de responsabilização civil, penal e
administrativa, cabendo ao juiz garantir o cumprimento do disposto neste
artigo, vedadas:
I - a manifestação sobre circunstâncias ou elementos alheios aos fatos
objeto de apuração nos autos;
II - a utilização de linguagem, de informações ou de material que
ofendam a dignidade da vítima ou de testemunhas.
(ii) vedar o reconhecimento da nulidade referida no item
anterior na hipótese de a defesa invocar o modo de vida da vítima ou a questionar
quanto a vivência sexual pregressa com essa finalidade, considerando a
impossibilidade de o acusado se beneficiar da própria torpeza;
(iii)
conferir interpretação conforme a Constituição ao art. 59 do Código Penal, para
assentar ser vedado ao magistrado, na fixação da pena em crimes sexuais,
valorar a vida sexual pregressa da vítima ou seu modo de vida:
Art. 59. O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta
social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e
consequências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá,
conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime:
I - as penas aplicáveis dentre as cominadas;
II - a quantidade de pena aplicável, dentro dos limites previstos;
III - o regime inicial de cumprimento da pena privativa de liberdade;
IV - a substituição da pena privativa da liberdade aplicada, por outra
espécie de pena, se cabível.
(iv) assentar ser dever do magistrado julgador atuar no
sentido de impedir essa prática inconstitucional, sob pena de responsabilização
civil, administrativa e penal.
Por fim, o Tribunal determinou o encaminhamento do
acórdão deste julgamento a todos os tribunais de justiça e tribunais regionais
federais do País, para que sejam adotadas as diretrizes ora determinadas.