sábado, 29 de junho de 2024

Durante a apuração e o julgamento de crimes contra a dignidade sexual é proibida a realização de menções, questionamentos ou de argumentação sobre a vida sexual pregressa da vítima e seu modo de vida

O caso concreto foi o seguinte:

A Procuradoria-Geral da República ajuizou arguição de descumprimento de preceito fundamental pedindo que o STF proíba que, durante a apuração e o julgamento de crimes contra a dignidade sexual, sejam feitos questionamentos sobre a vida sexual pregressa da vítima e seu modo de vida.

Nesses tipos de processos é comum o questionamento feito por policiais, delegados, promotores, advogados e juízes sobre o tipo de roupa que a mulher usava, se ingeriu álcool, se era virgem ou com quem se relacionava.

A PGR sustentou que tais perguntas desqualificam a vítima, caracterizando uma descriminação contra mulher, pois busca justificar o crime a partir do comportamento da vítima, dando a entender que a mulher teria culpa pela violência sofrida.

A PGR alega que o discurso de desqualificação da vítima, mediante a análise e a exposição de sua conduta e hábitos de vida, parte da “concepção odiosa” de que seria possível distinguir mulheres que merecem ou não a proteção penal pela violência sofrida. “Em ambiente que haveria de ser de acolhimento, a mulher vítima de violência passa a ser, ela própria, julgada em sua moral e seu modo de vida, na tentativa da defesa de justificar a conduta do agressor, e sem a reprimenda proporcional pelo Estado”.

Outro argumento é o de que, na investigação de crimes relacionados à violência sexual contra a mulher, o consentimento da vítima é o único elemento a ser apreciado. Considerações sobre seu comportamento partem de conduta enviesada e discriminatória e devem ser prontamente contidas e repreendidas.

Requereu, portanto, que o STF vedasse expressamente a prática de desqualificação da vítima – em geral promovida pela defesa do acusado –, bem como a consideração ou ratificações judiciais de alegações nesse sentido que direcione o julgamento respectivo para a absolvição do acusado ou que o beneficie na aplicação da pena. Para o PGR, essa prática é inconstitucional e deve ser invalidada, impondo-se aos órgãos que conduzem o processo criminal a obrigação de prontamente coibi-la e de responsabilizar quem impõe violência psicológica à vítima.

 

Os argumentos invocados pelo PGR foram acolhidos pelo STF? 

SIM.

A Constituição Federal garante a dignidade humana (art. 1º, III) e a igualdade entre homens e mulheres (art. 3º, I e IV; art. 5º, caput e I; e art. 226, § 5º):

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

(...)

III - a dignidade da pessoa humana;

 

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;

(...)

IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

 

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição;

 

Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.

(...)

§ 5º Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher.

 

Apesar da evolução legal e constitucional, o Estado e a sociedade brasileira continuam aceitando a discriminação e a violência de gênero contra a mulher na apuração e judicialização dos atentados contra ela, principalmente nos crimes contra a dignidade sexual.

De fato, é comum que, nas audiências, a vítima seja inquirida quanto à sua vida pregressa e aos seus hábitos sexuais para que tais elementos sejam utilizados como argumentos para justificar a conduta do agressor.

Essas práticas não possuem base legal nem constitucional e foram construídas para relativizar a violência contra a mulher e gerar tolerância em relação a estupros praticados contra aquelas cujo comportamento fugisse do que era considerado aceitável pelo agressor. Nesses casos, culpa-se a vítima pela conduta delituosa do agente.

Nesse contexto, todos os Poderes da República devem atuar conjuntamente para coibir a violência de gênero, especialmente a vitimização secundária da pessoa agredida em sua dignidade sexual.

Questionar o histórico da vida sexual ou o modo de vida da vítima durante a apuração e julgamento dos crimes de violência contra a mulher viola a Constituição Federal. Se isso ocorrer, o processo pode ser anulado, nos termos dos arts. 563 a 573 do CPP.

O STF definiu, ainda, que o juiz responsável pelo julgamento desses crimes tem o dever de impedir tal prática durante a investigação, sob pena de responsabilização administrativa e penal.

De igual modo, o magistrado não pode levar em consideração a vida sexual da vítima no momento de fixar a pena do réu.

 

Em suma:

É inconstitucional a prática de desqualificar a mulher vítima de violência durante a instrução e o julgamento de crimes contra a dignidade sexual e todos os crimes de violência contra a mulher, de maneira que se proíbe eventual menção, inquirição ou fundamentação sobre a vida sexual pregressa ou o modo de vida da vítima em audiências e decisões judiciais.

STF. Plenário. ADPF 1.107/DF, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgado em 23/05/2024 (Info 1138).

 

Com base nesses entendimentos, o Plenário do STF, por unanimidade, julgou procedente o pedido para:

 

(i) conferir interpretação conforme a Constituição à expressão elementos alheios aos fatos objeto de apuração posta no art. 400-A do CPP, para excluir a possibilidade de invocação, pelas partes ou procuradores, de elementos referentes à vivência sexual pregressa da vítima ou ao seu modo de vida em audiência de instrução e julgamento de crimes contra a dignidade sexual e de violência contra a mulher, sob pena de nulidade do ato ou do julgamento, nos termos dos arts. 563 a 573 do CPP/1941;

Art. 400-A. Na audiência de instrução e julgamento, e, em especial, nas que apurem crimes contra a dignidade sexual, todas as partes e demais sujeitos processuais presentes no ato deverão zelar pela integridade física e psicológica da vítima, sob pena de responsabilização civil, penal e administrativa, cabendo ao juiz garantir o cumprimento do disposto neste artigo, vedadas:

I - a manifestação sobre circunstâncias ou elementos alheios aos fatos objeto de apuração nos autos;

II - a utilização de linguagem, de informações ou de material que ofendam a dignidade da vítima ou de testemunhas.

 

(ii) vedar o reconhecimento da nulidade referida no item anterior na hipótese de a defesa invocar o modo de vida da vítima ou a questionar quanto a vivência sexual pregressa com essa finalidade, considerando a impossibilidade de o acusado se beneficiar da própria torpeza;

 

(iii) conferir interpretação conforme a Constituição ao art. 59 do Código Penal, para assentar ser vedado ao magistrado, na fixação da pena em crimes sexuais, valorar a vida sexual pregressa da vítima ou seu modo de vida:

Art. 59. O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e consequências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime:

I - as penas aplicáveis dentre as cominadas;

II - a quantidade de pena aplicável, dentro dos limites previstos;

III - o regime inicial de cumprimento da pena privativa de liberdade;

IV - a substituição da pena privativa da liberdade aplicada, por outra espécie de pena, se cabível.

 

(iv) assentar ser dever do magistrado julgador atuar no sentido de impedir essa prática inconstitucional, sob pena de responsabilização civil, administrativa e penal.

 

Por fim, o Tribunal determinou o encaminhamento do acórdão deste julgamento a todos os tribunais de justiça e tribunais regionais federais do País, para que sejam adotadas as diretrizes ora determinadas.


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