Em que consiste a alienação
fiduciária?
“A alienação fiduciária em garantia é
um contrato instrumental em que uma das partes, em confiança, aliena a outra a
propriedade de um determinado bem, ficando esta parte (uma instituição
financeira, em regra) obrigada a devolver àquela o bem que lhe foi alienado
quando verificada a ocorrência de determinado fato.” (RAMOS, André Luiz Santa
Cruz. Direito Empresarial. Salvador: Juspodivm, 2021, p. 827).
Regramento
O Código Civil de 2002 trata de forma
genérica sobre a propriedade fiduciária em seus arts. 1.361 a 1.368-B. Existem,
no entanto, leis específicas que também regem o tema:
• alienação fiduciária envolvendo bens
imóveis: Lei nº 9.514/97;
• alienação fiduciária de bens móveis
no âmbito do mercado financeiro e de capitais: Lei nº 4.728/65 e Decreto-Lei nº
911/69. É o caso, por exemplo, de um automóvel comprado por meio de
financiamento bancário com garantia de alienação fiduciária.
Nas
hipóteses em que houver legislação específica, as regras do CC-2002 aplicam-se
apenas de forma subsidiária:
Art. 1.368-A. As demais espécies de
propriedade fiduciária ou de titularidade fiduciária submetem-se à disciplina
específica das respectivas leis especiais, somente se aplicando as disposições
deste Código naquilo que não for incompatível com a legislação especial.
Resumindo:
Alienação fiduciária
de bens MÓVEIS fungíveis
e infungíveis quando o credor fiduciário for instituição
financeira |
Alienação fiduciária
de bens MÓVEIS
infungíveis quando o credor fiduciário for pessoa natural ou jurídica (sem ser banco) |
Alienação fiduciária
de bens IMÓVEIS |
Lei nº
4.728/65 Decreto-Lei
nº 911/69 |
Código
Civil de 2002 (arts.
1.361 a 1.368-A) |
Lei nº
9.514/97 |
Alienação fiduciária de bem
imóvel
Na alienação fiduciária de bem
imóvel, alguém (fiduciante) toma dinheiro emprestado de outrem (fiduciário) e,
como garantia de que irá pagar a dívida, transfere a propriedade resolúvel de
um bem imóvel para o credor, ficando este obrigado a devolver ao devedor o bem
que lhe foi alienado quando houver o adimplemento integral do débito.
Veja agora o
conceito dado pela Lei nº 9.514/97:
Art. 22. A alienação fiduciária
regulada por esta Lei é o negócio jurídico pelo qual o fiduciante, com o escopo
de garantia de obrigação própria ou de terceiro, contrata a transferência ao
credor, ou fiduciário, da propriedade resolúvel de coisa imóvel. (Redação dada
pela Lei nº 14.711, de 2023)
Imagine agora a seguinte situação
hipotética:
A Caixa Econômica Federal
emprestou dinheiro a João para que ele comprasse uma casa.
O contrato celebrado entre eles
tinha uma cláusula de alienação fiduciária em garantia.
João se comprometeu a pagar o
valor financiado em 239 parcelas.
Após 11 parcelas, ele parou de
pagar.
O que a Lei prevê em caso
de inadimplemento do mutuário?
Havendo mora por parte do
mutuário, o credor deverá fazer a notificação extrajudicial (“intimação”) do
devedor de que este se encontra em débito, comprovando, assim, a mora.
Para que serve essa
intimação?
O devedor é notificado para ter a possibilidade de purgar a
mora, no prazo de 15 dias, mediante o pagamento das prestações vencidas e não
pagas. Veja o que diz o § 1º do art. 26:
Art. 26 (...)
§ 1º Para fins do disposto neste
artigo, o devedor e, se for o caso, o terceiro fiduciante serão intimados, a
requerimento do fiduciário, pelo oficial do registro de imóveis competente, a
satisfazer, no prazo de 15 (quinze) dias, a prestação vencida e aquelas que
vencerem até a data do pagamento, os juros convencionais, as penalidades e os
demais encargos contratuais, os encargos legais, inclusive os tributos, as
contribuições condominiais imputáveis ao imóvel e as despesas de cobrança e de
intimação. (Redação dada pela Lei nº
14.711, de 2023)
Se o devedor purgar a mora
Se o devedor purgar a mora, o
contrato de alienação fiduciária se convalescerá (§ 5º do art. 26).
O oficial do Registro de Imóveis,
nos três dias seguintes à purgação da mora, entregará ao fiduciário (banco) as
importâncias recebidas, deduzidas as despesas de cobrança e de intimação.
Se o devedor não purgar a
mora
Se, passados 15 dias da intimação, o fiduciante não pagar a
dívida (purgar a mora), o art. 26 da Lei nº 9.514/97 afirma que ocorre a
consolidação da propriedade em nome do fiduciário:
Art. 26. Vencida e não paga a
dívida, no todo ou em parte, e constituídos em mora o devedor e, se for o caso,
o terceiro fiduciante, será consolidada, nos termos deste artigo, a propriedade
do imóvel em nome do fiduciário.
(Redação dada pela Lei nº 14.711, de 2023)
(...)
Vale ressaltar que, antes de
fazer a consolidação da propriedade, o registrador deverá exigir do fiduciário
o pagamento do imposto de transmissão inter vivos (ITBI) e, se for o caso, do
laudêmio.
Art. 27. Consolidada a
propriedade em seu nome, o fiduciário promoverá leilão público para a alienação
do imóvel, no prazo de 60 (sessenta) dias, contado da data do registro de que
trata o § 7º do art. 26 desta Lei. (Redação dada pela Lei nº 14.711, de 2023)
(...)
Art. 27 (...)
§ 4º Nos 5 (cinco) dias que se
seguirem à venda do imóvel no leilão, o credor entregará ao fiduciante a
importância que sobejar, nela compreendido o valor da indenização de
benfeitorias, depois de deduzidos os valores da dívida, das despesas e dos
encargos de que trata o § 3º deste artigo, o que importará em recíproca
quitação, hipótese em que não se aplica o disposto na parte final do art. 516
da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil).
Impossibilidade de
arrematação do imóvel a preço vil
A execução extrajudicial de
imóvel dado em alienação fiduciária tem regramento próprio estabelecido na Lei
nº 9.514/97. Esse regramento foi recentemente alterado pela Lei nº 14.711/2023,
que promoveu inúmeras mudanças.
Os procedimentos para a realização do respectivo leilão
estão estabelecidos no art. 27 da Lei nº 9.514/97. Confira como era antes e
atualmente:
LEI 9.514/97 |
|
Antes da Lei
14.711/2023 |
Depois da Lei
14.711/2023 |
Art. 27. Uma vez consolidada a
propriedade em seu nome, o fiduciário, no prazo de trinta dias, contados da
data do registro de que trata o § 7º do artigo anterior, promoverá público
leilão para a alienação do imóvel. |
Art. 27. Consolidada a
propriedade em seu nome, o fiduciário promoverá leilão público para a
alienação do imóvel, no prazo de 60 (sessenta) dias, contado da data do
registro de que trata o § 7º do art. 26 desta Lei. |
§ 1º Se, no primeiro público
leilão, o maior lance oferecido for inferior ao valor do imóvel, estipulado
na forma do inciso VI do art. 24, será realizado o segundo leilão, nos quinze
dias seguintes. |
§ 1º Se no primeiro leilão
público o maior lance oferecido for inferior ao valor do imóvel, estipulado
na forma do inciso VI e do parágrafo único do art. 24 desta Lei, será
realizado o segundo leilão nos quinze dias seguintes. |
§ 2º No segundo leilão, será
aceito o maior lance oferecido, desde que igual ou superior ao valor da
dívida, das despesas, dos prêmios de seguro, dos encargos legais, inclusive
tributos, e das contribuições condominiais. |
§ 2º No segundo leilão, será
aceito o maior lance oferecido, desde que seja igual ou superior ao valor
integral da dívida garantida pela alienação fiduciária, das despesas,
inclusive emolumentos cartorários, dos prêmios de seguro, dos encargos
legais, inclusive tributos, e das contribuições condominiais, podendo, caso
não haja lance que alcance referido valor, ser aceito pelo credor fiduciário,
a seu exclusivo critério, lance que corresponda a, pelo menos, metade do
valor de avaliação do bem. |
A partir da vigência da Lei nº 14.711/2023, não há mais
dúvidas de que, em segundo leilão, não pode ser aceito lance inferior à metade
do valor de avaliação do bem, ainda que superior ao valor da dívida (acrescido
das demais despesas), à semelhança da disposição contida no art. 891 do
CPC/2015:
Art. 891. Não será aceito lance
que ofereça preço vil.
Parágrafo único. Considera-se vil
o preço inferior ao mínimo estipulado pelo juiz e constante do edital, e, não
tendo sido fixado preço mínimo, considera-se vil o preço inferior a cinquenta
por cento do valor da avaliação.
E antes da Lei nº 14.711/2023?
Nos leilões realizados antes da Lei nº 14.711/2023 já era proibida a
arrematação por preço vil?
SIM. No âmbito doutrinário, há
muito já se defendia a impossibilidade de alienação extrajudicial a preço vil,
não só por invocação do art. 891 do CPC/2015, mas também de outras normas,
tanto de direito processual quanto material, que:
i) desautorizam o exercício
abusivo de um direito (art. 187 do Código Civil);
ii) condenam o enriquecimento sem
causa (art. 884 do Código Civil);
iii) determinam a mitigação dos
prejuízos do devedor (art. 422 do Código Civil) e
iv) prelecionam que a execução
deve ocorrer da forma menos gravosa para o executado (art. 805 do CPC/2015).
Assim, mesmo antes da inovação
legislativa, a posição que prevalecia já era no sentido de que não era possível
a arrematação a preço vil na execução extrajudicial de imóvel alienado
fiduciariamente. Nesse sentido:
“Não obstante a contundência do
instituto, o art. 27, § 2º, da Lei 9.514/97 há de ser interpretado com as
limitações até então impostas pela jurisprudência à semelhante questão,
orientação corroborada pelo arts. 891 e 903, § 1º, I do CPC de 2015, segundo os
quais: a) não será aceito lance que ofereça preço vil, considerando-se vil, não
tendo sido fixado preço mínimo, o preço inferior a cinquenta por cento do valor
da avaliação (art. 891); b) a arrematação poderá ser invalidada quando
realizada por preço vil ou com outro vício (art. 903)” (AgInt no REsp
1.892.965/ES, Rel. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, julgado
em 20/3/2023).
Em suma:
As normas que impedem a arrematação por preço vil são
aplicáveis à execução extrajudicial de imóvel alienado fiduciariamente.
STJ. 3ª Turma. REsp 2.096.465-SP, Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas
Cueva, julgado em 14/5/2024 (Info 812).