domingo, 16 de junho de 2024

As normas que impedem a arrematação por preço vil são aplicáveis à execução extrajudicial de imóvel alienado fiduciariamente

Em que consiste a alienação fiduciária?

“A alienação fiduciária em garantia é um contrato instrumental em que uma das partes, em confiança, aliena a outra a propriedade de um determinado bem, ficando esta parte (uma instituição financeira, em regra) obrigada a devolver àquela o bem que lhe foi alienado quando verificada a ocorrência de determinado fato.” (RAMOS, André Luiz Santa Cruz. Direito Empresarial. Salvador: Juspodivm, 2021, p. 827).

 

Regramento

O Código Civil de 2002 trata de forma genérica sobre a propriedade fiduciária em seus arts. 1.361 a 1.368-B. Existem, no entanto, leis específicas que também regem o tema:

• alienação fiduciária envolvendo bens imóveis: Lei nº 9.514/97;

• alienação fiduciária de bens móveis no âmbito do mercado financeiro e de capitais: Lei nº 4.728/65 e Decreto-Lei nº 911/69. É o caso, por exemplo, de um automóvel comprado por meio de financiamento bancário com garantia de alienação fiduciária.

Nas hipóteses em que houver legislação específica, as regras do CC-2002 aplicam-se apenas de forma subsidiária:

Art. 1.368-A. As demais espécies de propriedade fiduciária ou de titularidade fiduciária submetem-se à disciplina específica das respectivas leis especiais, somente se aplicando as disposições deste Código naquilo que não for incompatível com a legislação especial.

 

 

 

Resumindo:

Alienação fiduciária de

bens MÓVEIS fungíveis e infungíveis quando o credor fiduciário for

instituição financeira

Alienação fiduciária de

bens MÓVEIS infungíveis quando o credor fiduciário for pessoa natural ou jurídica

(sem ser banco)

Alienação fiduciária de

bens IMÓVEIS

Lei nº 4.728/65

Decreto-Lei nº 911/69

Código Civil de 2002

(arts. 1.361 a 1.368-A)

Lei nº 9.514/97

 

Alienação fiduciária de bem imóvel

Na alienação fiduciária de bem imóvel, alguém (fiduciante) toma dinheiro emprestado de outrem (fiduciário) e, como garantia de que irá pagar a dívida, transfere a propriedade resolúvel de um bem imóvel para o credor, ficando este obrigado a devolver ao devedor o bem que lhe foi alienado quando houver o adimplemento integral do débito.

Veja agora o conceito dado pela Lei nº 9.514/97:

Art. 22. A alienação fiduciária regulada por esta Lei é o negócio jurídico pelo qual o fiduciante, com o escopo de garantia de obrigação própria ou de terceiro, contrata a transferência ao credor, ou fiduciário, da propriedade resolúvel de coisa imóvel. (Redação dada pela Lei nº 14.711, de 2023)

 

Imagine agora a seguinte situação hipotética:

A Caixa Econômica Federal emprestou dinheiro a João para que ele comprasse uma casa.

O contrato celebrado entre eles tinha uma cláusula de alienação fiduciária em garantia.

João se comprometeu a pagar o valor financiado em 239 parcelas.

Após 11 parcelas, ele parou de pagar.

 

O que a Lei prevê em caso de inadimplemento do mutuário?

Havendo mora por parte do mutuário, o credor deverá fazer a notificação extrajudicial (“intimação”) do devedor de que este se encontra em débito, comprovando, assim, a mora.

 

Para que serve essa intimação?

O devedor é notificado para ter a possibilidade de purgar a mora, no prazo de 15 dias, mediante o pagamento das prestações vencidas e não pagas. Veja o que diz o § 1º do art. 26:

Art. 26 (...)

§ 1º Para fins do disposto neste artigo, o devedor e, se for o caso, o terceiro fiduciante serão intimados, a requerimento do fiduciário, pelo oficial do registro de imóveis competente, a satisfazer, no prazo de 15 (quinze) dias, a prestação vencida e aquelas que vencerem até a data do pagamento, os juros convencionais, as penalidades e os demais encargos contratuais, os encargos legais, inclusive os tributos, as contribuições condominiais imputáveis ao imóvel e as despesas de cobrança e de intimação.   (Redação dada pela Lei nº 14.711, de 2023)

 

Se o devedor purgar a mora

Se o devedor purgar a mora, o contrato de alienação fiduciária se convalescerá (§ 5º do art. 26).

O oficial do Registro de Imóveis, nos três dias seguintes à purgação da mora, entregará ao fiduciário (banco) as importâncias recebidas, deduzidas as despesas de cobrança e de intimação.

 

Se o devedor não purgar a mora

Se, passados 15 dias da intimação, o fiduciante não pagar a dívida (purgar a mora), o art. 26 da Lei nº 9.514/97 afirma que ocorre a consolidação da propriedade em nome do fiduciário:

Art. 26. Vencida e não paga a dívida, no todo ou em parte, e constituídos em mora o devedor e, se for o caso, o terceiro fiduciante, será consolidada, nos termos deste artigo, a propriedade do imóvel em nome do fiduciário.   (Redação dada pela Lei nº 14.711, de 2023)

(...)

 

Se passarem os 15 dias sem que o devedor purgue a mora, o oficial do Registro de Imóveis irá certificar esse fato e promoverá a averbação, na matrícula do imóvel, da consolidação da propriedade em nome do fiduciário (§ 7º do art. 26). Em outras palavras, o fiduciário (credor) torna-se o proprietário pleno.

Vale ressaltar que, antes de fazer a consolidação da propriedade, o registrador deverá exigir do fiduciário o pagamento do imposto de transmissão inter vivos (ITBI) e, se for o caso, do laudêmio.

Após a consolidação da propriedade, a Lei impõe ao fiduciário a obrigação de tentar alienar o imóvel por meio de leilão público:

Art. 27. Consolidada a propriedade em seu nome, o fiduciário promoverá leilão público para a alienação do imóvel, no prazo de 60 (sessenta) dias, contado da data do registro de que trata o § 7º do art. 26 desta Lei. (Redação dada pela Lei nº 14.711, de 2023)

(...)

 

Vendido o imóvel no leilão, o credor utiliza o valor obtido para pagar a dívida e entrega ao devedor eventual quantia que sobrar:

Art. 27 (...)

§ 4º Nos 5 (cinco) dias que se seguirem à venda do imóvel no leilão, o credor entregará ao fiduciante a importância que sobejar, nela compreendido o valor da indenização de benfeitorias, depois de deduzidos os valores da dívida, das despesas e dos encargos de que trata o § 3º deste artigo, o que importará em recíproca quitação, hipótese em que não se aplica o disposto na parte final do art. 516 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil).

 

Veja, portanto, que a Lei nº 9.514/97 prevê um procedimento de execução extrajudicial da cláusula de alienação fiduciária em garantia.

 

Impossibilidade de arrematação do imóvel a preço vil

A execução extrajudicial de imóvel dado em alienação fiduciária tem regramento próprio estabelecido na Lei nº 9.514/97. Esse regramento foi recentemente alterado pela Lei nº 14.711/2023, que promoveu inúmeras mudanças.

Os procedimentos para a realização do respectivo leilão estão estabelecidos no art. 27 da Lei nº 9.514/97. Confira como era antes e atualmente:

LEI 9.514/97

Antes da Lei 14.711/2023

Depois da Lei 14.711/2023

Art. 27. Uma vez consolidada a propriedade em seu nome, o fiduciário, no prazo de trinta dias, contados da data do registro de que trata o § 7º do artigo anterior, promoverá público leilão para a alienação do imóvel.

Art. 27. Consolidada a propriedade em seu nome, o fiduciário promoverá leilão público para a alienação do imóvel, no prazo de 60 (sessenta) dias, contado da data do registro de que trata o § 7º do art. 26 desta Lei.

§ 1º Se, no primeiro público leilão, o maior lance oferecido for inferior ao valor do imóvel, estipulado na forma do inciso VI do art. 24, será realizado o segundo leilão, nos quinze dias seguintes.

§ 1º Se no primeiro leilão público o maior lance oferecido for inferior ao valor do imóvel, estipulado na forma do inciso VI e do parágrafo único do art. 24 desta Lei, será realizado o segundo leilão nos quinze dias seguintes.

§ 2º No segundo leilão, será aceito o maior lance oferecido, desde que igual ou superior ao valor da dívida, das despesas, dos prêmios de seguro, dos encargos legais, inclusive tributos, e das contribuições condominiais.

§ 2º No segundo leilão, será aceito o maior lance oferecido, desde que seja igual ou superior ao valor integral da dívida garantida pela alienação fiduciária, das despesas, inclusive emolumentos cartorários, dos prêmios de seguro, dos encargos legais, inclusive tributos, e das contribuições condominiais, podendo, caso não haja lance que alcance referido valor, ser aceito pelo credor fiduciário, a seu exclusivo critério, lance que corresponda a, pelo menos, metade do valor de avaliação do bem.

 

A partir da vigência da Lei nº 14.711/2023, não há mais dúvidas de que, em segundo leilão, não pode ser aceito lance inferior à metade do valor de avaliação do bem, ainda que superior ao valor da dívida (acrescido das demais despesas), à semelhança da disposição contida no art. 891 do CPC/2015:

Art. 891. Não será aceito lance que ofereça preço vil.

Parágrafo único. Considera-se vil o preço inferior ao mínimo estipulado pelo juiz e constante do edital, e, não tendo sido fixado preço mínimo, considera-se vil o preço inferior a cinquenta por cento do valor da avaliação.

 

E antes da Lei nº 14.711/2023? Nos leilões realizados antes da Lei nº 14.711/2023 já era proibida a arrematação por preço vil?

SIM. No âmbito doutrinário, há muito já se defendia a impossibilidade de alienação extrajudicial a preço vil, não só por invocação do art. 891 do CPC/2015, mas também de outras normas, tanto de direito processual quanto material, que:

i) desautorizam o exercício abusivo de um direito (art. 187 do Código Civil);

ii) condenam o enriquecimento sem causa (art. 884 do Código Civil);

iii) determinam a mitigação dos prejuízos do devedor (art. 422 do Código Civil) e

iv) prelecionam que a execução deve ocorrer da forma menos gravosa para o executado (art. 805 do CPC/2015).

 

Assim, mesmo antes da inovação legislativa, a posição que prevalecia já era no sentido de que não era possível a arrematação a preço vil na execução extrajudicial de imóvel alienado fiduciariamente. Nesse sentido:

“Não obstante a contundência do instituto, o art. 27, § 2º, da Lei 9.514/97 há de ser interpretado com as limitações até então impostas pela jurisprudência à semelhante questão, orientação corroborada pelo arts. 891 e 903, § 1º, I do CPC de 2015, segundo os quais: a) não será aceito lance que ofereça preço vil, considerando-se vil, não tendo sido fixado preço mínimo, o preço inferior a cinquenta por cento do valor da avaliação (art. 891); b) a arrematação poderá ser invalidada quando realizada por preço vil ou com outro vício (art. 903)” (AgInt no REsp 1.892.965/ES, Rel. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, julgado em 20/3/2023).

 

Em suma:

As normas que impedem a arrematação por preço vil são aplicáveis à execução extrajudicial de imóvel alienado fiduciariamente. 

STJ. 3ª Turma. REsp 2.096.465-SP, Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em 14/5/2024 (Info 812).

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