O caso concreto, com adaptações, foi o seguinte:
Em 2021, a Associação Brasileira de
Imprensa (ABI) e a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji)
ingressaram com duas ações diretas de inconstitucionalidade, pedindo que o STF
adotasse medidas para combater o assédio judicial contra jornalistas e empresas
de comunicação (jornais, revistas, rádio e TV).
A ABI argumentou que proliferam no Brasil decisões
judiciais condenando jornalistas por críticas a figuras públicas ou em assuntos
de interesse público. Essas condenações produzem, como resultado, um indesejado
“efeito silenciador da crítica pública”, em afronta à liberdade de expressão,
de informação jornalística e ao direito à informação.
As indenizações interrompem ou prejudicam gravemente o
funcionamento de órgãos de imprensa e ameaçam a subsistência de profissionais
de comunicação.
Para a ABI, jornalistas e veículos de imprensa quando
publicam, de boa-fé, matérias sobre casos de corrupção ou atos de improbidade
que não foram objeto de uma comprovação definitiva, não devem sofrer risco de
retaliações, por meio do ajuizamento de ações cíveis. Apenas a divulgação
dolosa ou gravemente negligente de notícia falsa pode legitimar condenações.
Essas ações contra jornalistas configuram, na visão das
autoras, assédio judicial, que consiste na “utilização do Poder Judiciário como
forma de perseguição e intimidação contra a imprensa”. O assédio judicial
configura-se com a propositura de várias ações de indenização sobre os mesmos
fatos e contra a mesma pessoa em diferentes cidades e Estados com o objetivo de
dificultar a defesa ou intimidar os jornalistas.
Nesse cenário, as associações pediram que:
i) no caso de assédio judicial, todas as ações sejam
reunidas em um único lugar para garantir o direito à defesa; e
ii) que os jornalistas e empresas de comunicação sejam
responsabilizadas pelas publicações apenas nas hipóteses de comprovação de dolo
ou descuido na verificação das informações publicadas (culpa grave).
Na ADI
6.792/DF, ajuizada pela Associação Brasileira de Imprensa (ABI), foi requerida
a interpretação conforme a CF/88 dos seguintes dispositivos: arts. 186 e 927 do
Código Civil; art. 835, caput e § 1º do CPC; arts. 79, 80 e 81 do CPC.
Já na ADI
7.055/DF, ajuizada pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo
(ABRAJI), foi requerida a interpretação conforme a Constituição do art. 53, IV,
do CPC e do art. 4º, III, da Lei nº 9.099/95:
Art. 53. É competente o foro:
(...)
IV - do lugar do ato ou fato para a ação:
b) em que for réu administrador ou
gestor de negócios alheios;
Art. 4º É competente, para as causas previstas nesta Lei, o Juizado do
foro:
(...)
III - do domicílio do autor ou do local do ato ou fato, nas ações para
reparação de dano de qualquer natureza.
Assédio judicial
O
assédio judicial verifica-se quando inúmeras ações são ajuizadas sobre os
mesmos fatos em comarcas diversas, com o objetivo de intimidar jornalistas,
impedir sua defesa ou torná-la extremamente dispendiosa. É uma prática abusiva
do direito de ação, com notório intuito de prejudicar o direito de defesa de
jornalista ou órgão de imprensa.
Quando
identificado o assédio judicial, a proteção da liberdade de expressão legitima
a fixação de competência no foro do domicílio do réu, que é a regra geral do
direito brasileiro (art. 46, caput, do CPC):
Art. 46. A ação fundada em direito pessoal ou em direito real sobre bens
móveis será proposta, em regra, no foro de domicílio do réu.
Nos casos de assédio judicial a jornalistas, a parte ré
poderá solicitar a reunião de todas as demandas judiciais para serem julgadas
no foro de seu domicílio.
STF. Plenário. ADI 6.792/DF e ADI 7.055/DF, Rel. Min. Rosa Weber,
redator do acórdão Min. Luís Roberto Barroso, julgado em 22/05/2024 (Info
1138).
Vale
ressaltar que há várias leis que estabelecem expressamente a reunião de ações
com os mesmos fundamentos em um único foro. Exemplos: Lei da Ação Popular, Lei
da Ação Civil Pública, Lei de Improbidade Administrativa.
Para
unificar as ações que forem iniciadas em tribunais distintos, bastará que a
defesa solicite a sua remessa e redistribuição, tornando-se prevento o juiz do
domicílio do réu no qual a primeira ação for distribuída.
Além
disso, nas situações em que restar evidente o assédio judicial, o magistrado
competente poderá reconhecer de ofício a ausência do interesse de agir e,
consequentemente, extinguir sumariamente a ação sem resolução do mérito.
Responsabilidade do jornalista pela divulgação de
notícias sobre figuras públicas ou assuntos de interesse social
O STF decidiu que:
A responsabilidade civil de jornalistas, ao divulgar
notícias sobre figuras públicas ou assuntos de interesse social, só ocorre em
casos de dolo ou culpa grave (manifesta negligência profissional na apuração
dos fatos), não se aplicando a opiniões, críticas ou informações verdadeiras de
interesse público.
STF. Plenário. ADI 6.792/DF e ADI 7.055/DF, Rel. Min. Rosa Weber,
redator do acórdão Min. Luís Roberto Barroso, julgado em 22/05/2024 (Info
1138).
A liberdade
de expressão é um direito protegido de maneira reforçada na CF/88, com
fundamentos nos seguintes dispositivos:
Art. 5º (...)
IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;
V - é assegurado o
direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano
material, moral ou à imagem;
VI - é inviolável
a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos
cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto
e a suas liturgias;
(...)
IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica
e de comunicação, independentemente de censura ou licença;
(...)
XIV - é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo
da fonte, quando necessário ao exercício profissional;
Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:
(...)
II - liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento,
a arte e o saber;
Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a
informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer
restrição, observado o disposto nesta Constituição.
§ 1º
Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade
de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado
o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV.
§ 2º É vedada toda e qualquer
censura de natureza política, ideológica e artística.
(...)
§ 5º Os meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente,
ser objeto de monopólio ou oligopólio.
A Corte ponderou que nos casos de conflito entre a
liberdade de expressão e outros direitos fundamentais, tais como direito à
honra e à vida privada, a liberdade deve prevalecer na maior parte dos casos.
Isso
porque a liberdade de expressão é uma liberdade
preferencial pela sua importância para a dignidade da pessoa humana,
sendo imprescindível para a democracia e que depende da participação
esclarecida das pessoas.
Essa
posição preferencial da liberdade de expressão protege a atividade jornalística.
Logo, o jornalista ou o veículo de comunicação somente podem ser
responsabilizados nas hipóteses explícitas de dolo ou culpa grave (culpa grave
neste caso significa evidente negligência profissional na apuração dos fatos).
Assim, os jornalistas e meios de comunicação só podem ser
condenados a pagar indenização pelo conteúdo de suas publicações quando for
comprovado:
• a intenção de prejudicar outras pessoas (dolo); ou
• quando existir descuido significativo na apuração da
informação (culpa grave).
Confira as teses fixada pelo STF:
1. Constitui assédio judicial comprometedor da liberdade
de expressão o ajuizamento de inúmeras ações a respeito dos mesmos fatos, em
comarcas diversas, com o intuito ou o efeito de constranger jornalista ou órgão
de imprensa, dificultar sua defesa ou torná-la excessivamente onerosa.
2. Caracterizado o assédio judicial, a parte demandada
poderá requerer a reunião de todas as ações no foro de seu domicílio.
3. A responsabilidade civil de jornalistas ou de órgãos
de imprensa somente estará configurada em caso inequívoco de dolo ou de culpa
grave (evidente negligência profissional na apuração dos fatos).
STF. Plenário. ADI 6.792/DF e ADI 7.055/DF, Rel. Min. Rosa Weber,
redator do acórdão Min. Luís Roberto Barroso, julgado em 22/05/2024 (Info
1138).
Com
base nesses e em outros entendimentos, o Plenário, em apreciação conjunta, por
maioria, julgou parcialmente procedente a ADI 6.792/DF e integralmente
procedente a ADI 7.055/DF, para dar interpretação conforme a Constituição aos
arts. 186 e 927, caput, do Código Civil, e ao art. 53 do Código de
Processo Civil, nos moldes da tese anteriormente citada, fixada também por
maioria.