Dizer o Direito

domingo, 2 de junho de 2024

A polícia pode se valer da utilização do espelhamento do Whatsapp Web do suspeito, desde que haja autorização judicial e respeitados os parâmetros de proporcionalidade, subsidiariedade e legalidade

Imagine a seguinte situação hipotética:

Foi instaurado, no âmbito do Ministério Público, um PIC (Procedimento de Investigação Criminal) que buscava apurar a atuação de uma organização criminosa que teria praticado diversos delitos.

João era um dos investigados.

O Ministério Público pediu ao juiz uma série de medidas, dentre elas:

• ações encobertas;

• ações controladas virtuais;

• infiltração de agentes no plano cibernético

• espelhamento do Whatsapp Web dos suspeitos.

 

As medidas foram todas autorizadas pelo magistrado.

Como resultado dessa operação, conseguiu-se identificar os autores dos crimes.

O Ministério Público ofereceu denúncia contra os suspeitos.

A peça acusatória está quase que totalmente fundamentada em conversas espelhadas de WhatsApp.

A denúncia foi recebida.

Em alegações finais, os réus requereram o reconhecimento da nulidade das provas obtidas através de espelhamento do WhatsApp, bem como o desentranhamento das provas delas decorrentes.

O juiz rejeitou o pleito da defesa e condenou os acusados.

O Tribunal de Justiça de Minas Gerais deu provimento às apelações dos réus e reconheceu como ilícitas as provas obtidas com o espelhamento do WhatsApp Web.

De acordo com a decisão, seria ilícito o espelhamento do aplicativo WhatsApp Web, uma vez que:

“ao contrário da interceptação telefônica, no âmbito da qual o investigador de polícia atua como mero espectador dos diálogos entabulados por terceiros, no espelhamento do aplicativo whastsapp web, o investigador tem a concreta possibilidade de participar efetivamente das conversas, tanto daquelas a serem realizadas quanto dos diálogos que já estão registrados no aparelho, podendo, inclusive, excluir mensagens, sem deixar vestígios. Ademais disso, a interceptação telefônica tem como objeto a escuta de conversas realizadas após a autorização judicial, enquanto o espelhamento via QR Code (Quick Response) viabiliza ao investigador de polícia acesso amplo e irrestrito a todas as conversas realizadas antes da autorização judicial, operando efeitos retroativos”.

 

Assim, o recurso foi provido para que outra sentença seja proferida, após desentranhamento as provas obtivas por espelhamento do WhatsApp.

O Ministério Público interpôs recurso especial alegando que não se pode presumir que os agentes estatais irão praticar fraude processual e manipular as conversas do WhatsApp Web.

Alegou, ainda, que a defesa dos réus não veio acompanhado de um elemento concreto sequer que pudesse eventualmente colocar em xeque a idoneidade dos elementos de prova colhidos nesta perspectiva, mas apenas suposições. Argumentou que os atos administrativos são presumidos verdadeiros e não deve a Administração provar que seus atos são legais, cabendo ao destinatário do ato o encargo de provar eventual ilegalidade.

 

O STJ deu provimento ao recurso do Ministério Público?

SIM.

 

Quebra do sigilo na comunicação de dados – Espelhamento do WhatsApp

A lei que regulamenta o Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014), que estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para uso da Internet no Brasil, garante o acesso e a interferência no “fluxo das comunicações pela Internet, por ordem judicial”.

De idêntica forma, a mesma Lei nº 12.850/2013 (Lei da ORCRIM), com redação trazida pela Lei 13.694/2019, passou a prever, de forma expressa, a figura do agente infiltrado virtual, em seu art. 10-A:

Art. 10-A. Será admitida a ação de agentes de polícia infiltrados virtuais, obedecidos os requisitos do caput do art. 10, na internet, com o fim de investigar os crimes previstos nesta Lei e a eles conexos, praticados por organizações criminosas, desde que demonstrada sua necessidade e indicados o alcance das tarefas dos policiais, os nomes ou apelidos das pessoas investigadas e, quando possível, os dados de conexão ou cadastrais que permitam a identificação dessas pessoas.      (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

 

Nesse ponto reside a permissão normativa para quebra de sigilo de dados informáticos, na hipótese, e, de forma subsequente, para permitir a interação, a interceptação e a infiltração do agente, inclusive pelo meio cibernético, consistente no espelhamento do Whatsapp Web.

 

Razões que justificam a realização da prova

A potencialidade danosa dos delitos praticados por organizações criminosas, pelo meio virtual, aliada a complexidade e dificuldade da persecução penal no âmbito cibernético, como na hipótese, devem levar a jurisprudência a admitir as ações controladas e infiltradas, como na presente hipótese, no mesmo plano virtual. De fato, nos últimos anos, as redes sociais e respectivos aplicativos se tornaram uma ferramenta indispensável para a comunicação, interação e compartilhamento de informações em todo o mundo. Entretanto, essa rápida expansão e influência também trouxeram consigo uma série de desafios e problemas no âmbito da investigação, no meio virtual, tornando-se a evolução da jurisprudência acerca do tema questão cada vez mais relevante e urgente.

 

Argumento de possível manipulação

O STJ também tem decidido que “o instituto da quebra da cadeia de custódia refere-se à idoneidade do caminho que deve ser percorrido pela prova até sua análise pelo magistrado, e uma vez ocorrida qualquer interferência durante o trâmite processual, esta pode implicar, mas não necessariamente, a sua imprestabilidade” (AgRg no RHC n. 147.885/SP, Relator Ministro OLINDO MENEZES (Desembargador Convocado do TRF 1ª Região), Sexta Turma, julgado em 7/12/2021, DJe de 13/12/2021).

No caso dos autos, não houve comprovação de qualquer adulteração no decorrer probatório, nenhum elemento veio aos autos a demonstrar que houve adulteração da prova, alteração na ordem cronológica dos diálogos ou mesmo interferência de quem quer que seja, a ponto de invalidar a prova, salvo, naturalmente, a eventual ingerência e interação que decorre da atuação na ação controlada e da condição de agente infiltrado aqui reconhecida, não podendo referida invalidade ser presumida.

 

Em suma:

É possível a utilização de ações encobertas, controladas virtuais ou de agentes infiltrados no plano cibernético, inclusive via espelhamento do Whatsapp Web, desde que o uso da ação controlada na investigação criminal esteja amparada por autorização judicial. 

STJ. 5ª Turma. AgRg no AREsp 2.318.334-MG, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 16/4/2024 (Info 810).

 

Em sentido semelhante:

A autorização judicial para que a polícia acompanhe as conversas dos suspeitos mediante o espelhamento via Whatsapp Web caracteriza-se como um meio de obtenção de prova equivalente à infiltração de agentes, sendo, portanto, extraordinário, mas válido

É possível a utilização, no ordenamento jurídico pátrio, de ações encobertas, controladas virtuais ou de agentes infiltrados no plano cibernético, inclusive via espelhamento do Whatsapp Web, desde que o uso da ação controlada na investigação criminal esteja amparada por autorização judicial.

STJ. 5ª Turma. AREsp 2.309.888-MG, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 17/10/2023 (Info 792).

 

Em sentido contrário (mais antiga):

É nula decisão judicial que autoriza o espelhamento do WhatsApp para que a Polícia acompanhe as conversas do suspeito pelo WhatsApp Web?

É nula decisão judicial que autoriza o espelhamento do WhatsApp via Código QR para acesso no WhatsApp Web.

Também são nulas todas as provas e atos que dela diretamente dependam ou sejam consequência, ressalvadas eventuais fontes independentes.

Não é possível aplicar a analogia entre o instituto da interceptação telefônica e o espelhamento, por meio do WhatsApp Web, das conversas realizadas pelo aplicativo WhatsApp.

STJ. 6ª Turma. RHC 99735-SC, Rel. Min. Laurita Vaz, julgado em 27/11/2018 (Info 640).


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