Imagine a seguinte situação
hipotética:
Foi instaurado, no âmbito do Ministério Público, um PIC (Procedimento de
Investigação Criminal) que buscava apurar a atuação de uma organização
criminosa que teria praticado diversos delitos.
João era um dos investigados.
O Ministério Público pediu ao juiz uma série de medidas, dentre elas:
• ações encobertas;
• ações controladas virtuais;
• infiltração de agentes no plano cibernético
• espelhamento do Whatsapp Web dos suspeitos.
As medidas foram todas autorizadas pelo magistrado.
Como resultado dessa operação, conseguiu-se identificar os autores dos
crimes.
O Ministério Público ofereceu denúncia contra os suspeitos.
A peça acusatória está quase que totalmente fundamentada em conversas
espelhadas de WhatsApp.
A denúncia foi recebida.
Em alegações finais, os réus requereram o reconhecimento da nulidade das
provas obtidas através de espelhamento do WhatsApp, bem como o desentranhamento
das provas delas decorrentes.
O juiz rejeitou o pleito da
defesa e condenou os acusados.
O Tribunal de Justiça de Minas
Gerais deu provimento às apelações dos
réus e reconheceu como ilícitas as provas obtidas com o espelhamento do
WhatsApp Web.
De acordo com a decisão, seria ilícito o espelhamento do
aplicativo WhatsApp Web, uma vez que:
“ao contrário da interceptação telefônica, no
âmbito da qual o investigador de polícia atua como mero espectador dos diálogos
entabulados por terceiros, no espelhamento do aplicativo whastsapp web, o
investigador tem a concreta possibilidade de participar efetivamente das
conversas, tanto daquelas a serem realizadas quanto dos diálogos que já estão
registrados no aparelho, podendo, inclusive, excluir mensagens, sem deixar
vestígios. Ademais disso, a interceptação telefônica tem como objeto a escuta
de conversas realizadas após a autorização judicial, enquanto o espelhamento
via QR Code (Quick Response) viabiliza ao investigador de polícia acesso amplo
e irrestrito a todas as conversas realizadas antes da autorização judicial,
operando efeitos retroativos”.
Assim, o recurso foi provido para que outra sentença seja proferida, após
desentranhamento as provas obtivas por espelhamento do WhatsApp.
O Ministério Público interpôs recurso especial alegando que não se
pode presumir que os agentes estatais irão praticar fraude processual e
manipular as conversas do WhatsApp Web.
Alegou, ainda, que a defesa dos réus não veio acompanhado de um elemento
concreto sequer que pudesse eventualmente colocar em xeque a idoneidade dos
elementos de prova colhidos nesta perspectiva, mas apenas suposições. Argumentou
que os atos administrativos são presumidos verdadeiros e não deve a
Administração provar que seus atos são legais, cabendo ao destinatário do ato o
encargo de provar eventual ilegalidade.
O STJ deu provimento ao
recurso do Ministério Público?
SIM.
Quebra do sigilo na
comunicação de dados – Espelhamento do WhatsApp
A lei que regulamenta o Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014), que
estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para uso da Internet no
Brasil, garante o acesso e a interferência no “fluxo das comunicações pela
Internet, por ordem judicial”.
De idêntica forma, a mesma Lei nº 12.850/2013 (Lei da ORCRIM),
com redação trazida pela Lei 13.694/2019, passou a prever, de forma expressa, a
figura do agente infiltrado virtual, em seu art. 10-A:
Art. 10-A. Será admitida a ação
de agentes de polícia infiltrados virtuais, obedecidos os requisitos do caput
do art. 10, na internet, com o fim de investigar os crimes previstos nesta Lei
e a eles conexos, praticados por organizações criminosas, desde que demonstrada
sua necessidade e indicados o alcance das tarefas dos policiais, os nomes ou
apelidos das pessoas investigadas e, quando possível, os dados de conexão ou
cadastrais que permitam a identificação dessas pessoas. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
Nesse ponto reside a permissão normativa para quebra de sigilo de dados informáticos,
na hipótese, e, de forma subsequente, para permitir a interação, a interceptação
e a infiltração do agente, inclusive pelo meio cibernético, consistente no espelhamento
do Whatsapp Web.
Razões que justificam a
realização da prova
A potencialidade danosa dos delitos praticados por organizações criminosas,
pelo meio virtual, aliada a complexidade e dificuldade da persecução penal no
âmbito cibernético, como na hipótese, devem levar a jurisprudência a admitir as
ações controladas e infiltradas, como na presente hipótese, no mesmo plano
virtual. De fato, nos últimos anos, as redes sociais e respectivos aplicativos
se tornaram uma ferramenta indispensável para a comunicação, interação e
compartilhamento de informações em todo o mundo. Entretanto, essa rápida
expansão e influência também trouxeram consigo uma série de desafios e
problemas no âmbito da investigação, no meio virtual, tornando-se a evolução da
jurisprudência acerca do tema questão cada vez mais relevante e urgente.
Argumento de possível manipulação
O STJ também tem decidido que “o instituto da quebra da cadeia de
custódia refere-se à idoneidade do caminho que deve ser percorrido pela prova
até sua análise pelo magistrado, e uma vez ocorrida qualquer interferência
durante o trâmite processual, esta pode implicar, mas não necessariamente, a
sua imprestabilidade” (AgRg no RHC n. 147.885/SP, Relator Ministro OLINDO
MENEZES (Desembargador Convocado do TRF 1ª Região), Sexta Turma, julgado em
7/12/2021, DJe de 13/12/2021).
No caso dos autos, não houve comprovação de qualquer adulteração no decorrer
probatório, nenhum elemento veio aos autos a demonstrar que houve adulteração
da prova, alteração na ordem cronológica dos diálogos ou mesmo interferência de
quem quer que seja, a ponto de invalidar a prova, salvo, naturalmente, a eventual
ingerência e interação que decorre da atuação na ação controlada e da condição de
agente infiltrado aqui reconhecida, não podendo referida invalidade ser
presumida.
Em suma:
É possível a utilização de ações encobertas,
controladas virtuais ou de agentes infiltrados no plano cibernético, inclusive
via espelhamento do Whatsapp Web, desde que o uso da ação controlada na
investigação criminal esteja amparada por autorização judicial.
STJ. 5ª
Turma. AgRg no AREsp 2.318.334-MG, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca,
julgado em 16/4/2024 (Info 810).
Em sentido
semelhante:
A autorização judicial para
que a polícia acompanhe as conversas dos suspeitos mediante o espelhamento via
Whatsapp Web caracteriza-se como um meio de obtenção de prova equivalente à
infiltração de agentes, sendo, portanto, extraordinário, mas válido
É possível a utilização, no ordenamento jurídico pátrio, de
ações encobertas, controladas virtuais ou de agentes infiltrados no plano
cibernético, inclusive via espelhamento do Whatsapp Web, desde que o uso da
ação controlada na investigação criminal esteja amparada por autorização
judicial.
STJ. 5ª Turma. AREsp 2.309.888-MG, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 17/10/2023 (Info 792).
Em sentido
contrário (mais antiga):
É nula decisão judicial que
autoriza o espelhamento do WhatsApp para que a Polícia acompanhe as conversas
do suspeito pelo WhatsApp Web?
É nula decisão judicial que autoriza o espelhamento do
WhatsApp via Código QR para acesso no WhatsApp Web.
Também são nulas todas as provas e atos que dela diretamente
dependam ou sejam consequência, ressalvadas eventuais fontes independentes.
Não é possível aplicar a analogia entre o instituto da
interceptação telefônica e o espelhamento, por meio do WhatsApp Web, das
conversas realizadas pelo aplicativo WhatsApp.
STJ. 6ª
Turma. RHC 99735-SC, Rel. Min. Laurita Vaz, julgado em 27/11/2018 (Info
640).