Lei Henry Borel
A Lei nº 14.344/2022 surgiu como uma reação do Congresso
Nacional ao clamor ocasionado pelo triste falecimento do garoto Henry Borel.
Henry Borel era uma criança de quatro anos de idade,
filho de Monique Medeiros da Costa e Silva e de Leniel Borel de Almeida.
Os pais de Henry eram separados e a criança morava com a
mãe e o padrasto, Jairo Souza Santos Junior, conhecido como Dr. Jairinho, em um
apartamento no Rio de Janeiro.
Segundo denúncia oferecida pelo Ministério Público, Henry
foi vítima de homicídio praticado por Dr. Jairinho que “decidiu ceifar a vida
da vítima em virtude de acreditar que a criança atrapalhava a relação” dele com
Monique.
Ainda de acordo com a denúncia, “o crime foi executado
com meio cruel, tendo em vista que o DENUNCIADO infligiu à pequena vítima
intenso sofrimento físico, tendo em vista as múltiplas lesões que lhes foram
causadas, revelando, desta forma, uma brutalidade fora do comum e em contraste
com o mais elementar sentimento de piedade”.
Monique também foi denunciada porque, segundo o
Ministério Público, ela, “na qualidade de genitora do menor, permitiu que o
DENUNCIADO agredisse a criança até levá-la a óbito, quando podia e devia ter
agido para evitar o resultado morte, tendo tais ataques causado as múltiplas
lesões corporais já descritas no Auto de Exame Cadavérico e no Auto de Exame
Cadavérico complementar, que por sua natureza e sede foram a causa única e
eficiente de sua morte”.
De acordo com a denúncia, Dr. Jairinho também teria
praticado tortura contra a criança nos dias 02 e 12 de fevereiro de 2021.
O processo se encontra ainda em curso.
A Lei nº 14.344/2022, em diversos aspectos, inspira-se na
Lei de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (Lei nº 111.340/2006).
Assim, pode-se dizer que a Lei Henry Borel seria o equivalente da Lei Maria da
Penha, no entanto, com o âmbito de incidência voltado às crianças e
adolescentes.
A Lei nº 14.344/2022 tem como fundamentos:
• o art. 226, § 8º da CF/88;
• o art. 227, § 4º, da CF/88;
• os tratados, acordos e convenções internacionais de
proteção às crianças e adolescentes. É o caso, por exemplo, da Convenção
Internacional sobre os Direitos da Criança, ratificada pelo Brasil com o
Decreto Legislativo nº 28/1990.
Existem comentários disponíveis no site sobre essa lei,
caso queira se aprofundar no seu estudo.
ADI proposta contra o art. 21, § 1º, da Lei 14.344/2022
O
art. 21, § 1º da Lei nº 14.344/2022 previu a possibilidade de a autoridade
policial requisitar ao Ministério Público a antecipação da produção de provas
(ouvir testemunhas, vítimas, dentre outros) antes do início do processo penal.
Vejamos o
teor do dispositivo:
Art. 21. Poderá o juiz, quando necessário, sem prejuízo de outras
medidas, determinar:
(...)
§ 1º A autoridade policial poderá requisitar e o
Conselho Tutelar requerer ao Ministério Público a propositura de
ação cautelar de antecipação de produção de prova nas causas que
envolvam violência contra a criança e o adolescente, observadas as disposições
da Lei
nº 13.431, de 4 de abril de 2017.
A
Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (CONAMP) ajuizou ADI
contra esse dispositivo, argumentando que a ação penal pública deve ser
promovida, privativamente, pelo Ministério Público e que a expressão “a
autoridade policial poderá requisitar” constante no dispositivo inverte a
lógica acusatória e fere a autonomia do MP, ao qual cabe requisitar diligências
policiais.
O que o STF decidiu?
O
STF julgou parcialmente procedente a ADI, para conferir interpretação conforme
ao art. 21, § 1º, da Lei nº 14.344/2022, e assentar que o Delegado pode solicitar ao Ministério Público a propositura de ação cautelar de antecipação de
produção de prova nas causas que envolvam violência contra a criança e o
adolescente.
O
membro do Ministério Público irá, então, avaliar se entende ser o caso de
atuação, nos limites de sua independência funcional e observados os deveres que
lhe são inerentes.
Em
outras palavras, o STF disse o seguinte: a palavra “requisitar”, prevista no
art. 21, § 1º da Lei nº 14.344/2022, deve ser compreendida como “solicitar”,
“requerer”.
A
previsão contida no art. 21, §1º, da Lei 14.344/2022, está inserida na busca
pela eficiência institucional, considerando as peculiaridades dos casos de
violência contra a criança e o adolescente, tais como a dificuldade de
particulares noticiarem os crimes e o temor de represálias que pode acometer as
vítimas.
Por
outro lado, é incompatível falar em requisição da autoridade policial dirigida
ao membro do Ministério Público.
O
art. 127 da Constituição Federal incumbiu o Ministério Público da defesa da
ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais
indisponíveis, de modo que, para garantir o cumprimento de sua missão
constitucional sem subordinação a interesses político-partidários, em
obediência direta à Constituição, conferiu autonomia funcional aos seus
membros.
O
texto constitucional concedeu autonomia funcional e, quanto aos membros,
independência funcional em sua atuação. São esses atributos que permitem ao
Parquet atuar de forma autônoma e com liberdade na defesa da ordem jurídica, do
regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.
A
autonomia é a garantia de que o MP possa cumprir seu papel constitucional sem
subordinação a interesses político-partidários. Já a liberdade de ofício é o
suporte que os membros precisam para cumprir seu dever constitucional sem
subordinação.
Dada
a importância da autonomia funcional da Instituição, essa não pode ser
restringida por legislação infraconstitucional. Logo, eventual omissão
ministerial só se resolve por responsabilização do agente. No mais, os
Ministros afirmaram que a recusa de atuação só se configura lícita quando há
suporte fático-probatório.
A propositura
de ação penal pelo Ministério Público está consagrada no art. 129, I, da CF/88:
Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:
I - promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei;
Tanto
a ação penal como a ação cautelar de produção de provas são funções do
Ministério Público.
Essas
funções são exercidas com base na autonomia institucional do órgão e na
independência funcional de cada membro. Por essa razão, a lei não se pode
prever que determinado órgão tenha o poder ou a atribuição de obrigar o MP que
proponha determinada ação.
A
polícia judiciária exerce a função de apuração e investigação de delitos,
fornecendo elementos para ulterior atuação do Ministério Público.
As polícias
judiciárias – integrantes do Poder Executivo – são supervisionados pelo MP, já
que o texto constitucional previu no inciso VII, do art. 129, inseriu como
atribuição ministerial o controle externo da atividade policial:
Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:
(...)
VII - exercer o controle externo da atividade policial, na forma da lei
complementar mencionada no artigo anterior;
Não
se inclui dentre as funções da polícia judiciária determinar atuação do MP,
como exigir a propositura de ação cautelar de produção de provas.
Vale
ressaltar, no entanto, que é legítimo que a polícia judiciária provoque o
Ministério Público para que este órgão faça a proteção de crianças e
adolescentes contra a violência doméstica e familiar. Vale ressaltar, contudo,
que essa provocação não possui caráter cogente, dado o perfil constitucional de
ambas as instituições.
O
controle externo da atividade policial cabe ao Ministério Público (art. 129,
VII, CF/88), de forma que qualquer interpretação que atribua o controle externo
do Ministério Público à polícia judiciária subverteria o desenho constitucional
desses órgãos. Por isso, a palavra “requisitar”, prevista na lei acima citada,
deve ser compreendida como “solicitar”, “requerer”.
Em suma:
Em caso de notícia de violência contra
vítimas menores de idade, a autoridade policial pode requerer, sem caráter
vinculativo, a propositura de ação cautelar de antecipação de provas ao Ministério
Público, cujo membro avaliará a pertinência da atuação dentro dos limites de
sua independência funcional e respeitados os deveres que lhe são inerentes.
STF. Plenário. ADI 7.192/DF, Rel. Min. Luiz
Fux, julgado em 20/05/2024 (Info 1137).
Com base
nesse entendimento, o Plenário do STF, por unanimidade, julgou parcialmente
procedente o pedido para conferir interpretação conforme a Constituição ao art.
21, § 1º, da Lei nº 14.344/2022, e assentar que o delegado pode solicitar ao
Ministério Público a propositura de ação cautelar de antecipação de produção de
prova nas causas que envolvam violência contra a criança e o adolescente,
cabendo ao membro desta última instituição avaliar se entende ser o caso de
atuação, nos limites de sua independência funcional e observados os deveres que
lhe são inerentes.