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segunda-feira, 24 de junho de 2024

A palavra requisitar, prevista no art. 21, § 1º da Lei 14.344/2022 (Lei Henry Borel), deve ser compreendida como solicitar

Lei Henry Borel

A Lei nº 14.344/2022 surgiu como uma reação do Congresso Nacional ao clamor ocasionado pelo triste falecimento do garoto Henry Borel.

Henry Borel era uma criança de quatro anos de idade, filho de Monique Medeiros da Costa e Silva e de Leniel Borel de Almeida.

Os pais de Henry eram separados e a criança morava com a mãe e o padrasto, Jairo Souza Santos Junior, conhecido como Dr. Jairinho, em um apartamento no Rio de Janeiro.

Segundo denúncia oferecida pelo Ministério Público, Henry foi vítima de homicídio praticado por Dr. Jairinho que “decidiu ceifar a vida da vítima em virtude de acreditar que a criança atrapalhava a relação” dele com Monique.

Ainda de acordo com a denúncia, “o crime foi executado com meio cruel, tendo em vista que o DENUNCIADO infligiu à pequena vítima intenso sofrimento físico, tendo em vista as múltiplas lesões que lhes foram causadas, revelando, desta forma, uma brutalidade fora do comum e em contraste com o mais elementar sentimento de piedade”.

Monique também foi denunciada porque, segundo o Ministério Público, ela, “na qualidade de genitora do menor, permitiu que o DENUNCIADO agredisse a criança até levá-la a óbito, quando podia e devia ter agido para evitar o resultado morte, tendo tais ataques causado as múltiplas lesões corporais já descritas no Auto de Exame Cadavérico e no Auto de Exame Cadavérico complementar, que por sua natureza e sede foram a causa única e eficiente de sua morte”.

De acordo com a denúncia, Dr. Jairinho também teria praticado tortura contra a criança nos dias 02 e 12 de fevereiro de 2021.

O processo se encontra ainda em curso.

A Lei nº 14.344/2022, em diversos aspectos, inspira-se na Lei de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (Lei nº 111.340/2006). Assim, pode-se dizer que a Lei Henry Borel seria o equivalente da Lei Maria da Penha, no entanto, com o âmbito de incidência voltado às crianças e adolescentes.

A Lei nº 14.344/2022 tem como fundamentos:

• o art. 226, § 8º da CF/88;

• o art. 227, § 4º, da CF/88;

• os tratados, acordos e convenções internacionais de proteção às crianças e adolescentes. É o caso, por exemplo, da Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, ratificada pelo Brasil com o Decreto Legislativo nº 28/1990.

Existem comentários disponíveis no site sobre essa lei, caso queira se aprofundar no seu estudo.

 

ADI proposta contra o art. 21, § 1º, da Lei 14.344/2022

O art. 21, § 1º da Lei nº 14.344/2022 previu a possibilidade de a autoridade policial requisitar ao Ministério Público a antecipação da produção de provas (ouvir testemunhas, vítimas, dentre outros) antes do início do processo penal.

Vejamos o teor do dispositivo:

Art. 21. Poderá o juiz, quando necessário, sem prejuízo de outras medidas, determinar:

(...)

§ 1º A autoridade policial poderá requisitar e o Conselho Tutelar requerer ao Ministério Público a propositura de ação cautelar de antecipação de produção de prova nas causas que envolvam violência contra a criança e o adolescente, observadas as disposições da Lei nº 13.431, de 4 de abril de 2017.

 

A Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (CONAMP) ajuizou ADI contra esse dispositivo, argumentando que a ação penal pública deve ser promovida, privativamente, pelo Ministério Público e que a expressão “a autoridade policial poderá requisitar” constante no dispositivo inverte a lógica acusatória e fere a autonomia do MP, ao qual cabe requisitar diligências policiais.

 

O que o STF decidiu?

O STF julgou parcialmente procedente a ADI, para conferir interpretação conforme ao art. 21, § 1º, da Lei nº 14.344/2022, e assentar que o Delegado pode solicitar ao Ministério Público a propositura de ação cautelar de antecipação de produção de prova nas causas que envolvam violência contra a criança e o adolescente.

O membro do Ministério Público irá, então, avaliar se entende ser o caso de atuação, nos limites de sua independência funcional e observados os deveres que lhe são inerentes.

Em outras palavras, o STF disse o seguinte: a palavra “requisitar”, prevista no art. 21, § 1º da Lei nº 14.344/2022, deve ser compreendida como “solicitar”, “requerer”.

A previsão contida no art. 21, §1º, da Lei 14.344/2022, está inserida na busca pela eficiência institucional, considerando as peculiaridades dos casos de violência contra a criança e o adolescente, tais como a dificuldade de particulares noticiarem os crimes e o temor de represálias que pode acometer as vítimas.

Por outro lado, é incompatível falar em requisição da autoridade policial dirigida ao membro do Ministério Público.

O art. 127 da Constituição Federal incumbiu o Ministério Público da defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, de modo que, para garantir o cumprimento de sua missão constitucional sem subordinação a interesses político-partidários, em obediência direta à Constituição, conferiu autonomia funcional aos seus membros.

O texto constitucional concedeu autonomia funcional e, quanto aos membros, independência funcional em sua atuação. São esses atributos que permitem ao Parquet atuar de forma autônoma e com liberdade na defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.

A autonomia é a garantia de que o MP possa cumprir seu papel constitucional sem subordinação a interesses político-partidários. Já a liberdade de ofício é o suporte que os membros precisam para cumprir seu dever constitucional sem subordinação.

Dada a importância da autonomia funcional da Instituição, essa não pode ser restringida por legislação infraconstitucional. Logo, eventual omissão ministerial só se resolve por responsabilização do agente. No mais, os Ministros afirmaram que a recusa de atuação só se configura lícita quando há suporte fático-probatório.

A propositura de ação penal pelo Ministério Público está consagrada no art. 129, I, da CF/88:

Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:

I - promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei;

 

Tanto a ação penal como a ação cautelar de produção de provas são funções do Ministério Público.

Essas funções são exercidas com base na autonomia institucional do órgão e na independência funcional de cada membro. Por essa razão, a lei não se pode prever que determinado órgão tenha o poder ou a atribuição de obrigar o MP que proponha determinada ação.

A polícia judiciária exerce a função de apuração e investigação de delitos, fornecendo elementos para ulterior atuação do Ministério Público.

As polícias judiciárias – integrantes do Poder Executivo – são supervisionados pelo MP, já que o texto constitucional previu no inciso VII, do art. 129, inseriu como atribuição ministerial o controle externo da atividade policial:

Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:

(...)

VII - exercer o controle externo da atividade policial, na forma da lei complementar mencionada no artigo anterior;

 

Não se inclui dentre as funções da polícia judiciária determinar atuação do MP, como exigir a propositura de ação cautelar de produção de provas.

Vale ressaltar, no entanto, que é legítimo que a polícia judiciária provoque o Ministério Público para que este órgão faça a proteção de crianças e adolescentes contra a violência doméstica e familiar. Vale ressaltar, contudo, que essa provocação não possui caráter cogente, dado o perfil constitucional de ambas as instituições.

O controle externo da atividade policial cabe ao Ministério Público (art. 129, VII, CF/88), de forma que qualquer interpretação que atribua o controle externo do Ministério Público à polícia judiciária subverteria o desenho constitucional desses órgãos. Por isso, a palavra “requisitar”, prevista na lei acima citada, deve ser compreendida como “solicitar”, “requerer”.

 

Em suma:

Em caso de notícia de violência contra vítimas menores de idade, a autoridade policial pode requerer, sem caráter vinculativo, a propositura de ação cautelar de antecipação de provas ao Ministério Público, cujo membro avaliará a pertinência da atuação dentro dos limites de sua independência funcional e respeitados os deveres que lhe são inerentes.

STF. Plenário. ADI 7.192/DF, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 20/05/2024 (Info 1137).

 

Com base nesse entendimento, o Plenário do STF, por unanimidade, julgou parcialmente procedente o pedido para conferir interpretação conforme a Constituição ao art. 21, § 1º, da Lei nº 14.344/2022, e assentar que o delegado pode solicitar ao Ministério Público a propositura de ação cautelar de antecipação de produção de prova nas causas que envolvam violência contra a criança e o adolescente, cabendo ao membro desta última instituição avaliar se entende ser o caso de atuação, nos limites de sua independência funcional e observados os deveres que lhe são inerentes.


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