sexta-feira, 21 de junho de 2024
A Lei 14.010/2020 previu que os prazos prescricionais ficariam impedidos ou suspensos a partir da entrada em vigor da Lei até 30 de outubro de 2020. Essa previsão não se aplica para as relações jurídicas de direito público
Imagine a seguinte situação
hipotética:
João foi aprovado no concurso
público promovido pelo Estado-membro para o cargo de enfermeiro.
Em 10/08/2016, o Estado realizou
diversas nomeações para o cargo de enfermeiro e houve preterição de João.
No dia 01/12/2021, João ajuizou
ação contra o Estado pedindo para ser nomeado e empossado.
Em contestação, o Estado-membro
afirmou o seguinte:
- o prazo prescricional para que o autor exercesse a sua
pretensão era de 5 anos, com base no art. 1º do Decreto Federal 20.910/32
(recepcionado pela CF/88 com força de lei ordinária):
Art. 1º As dívidas passivas da
União, dos Estados e dos Municípios, bem assim todo e qualquer direito ou ação
contra a Fazenda federal, estadual ou municipal, seja qual for a sua natureza,
prescrevem em cinco anos contados da data do ato ou fato do qual se
originarem.
- esse prazo se esgotou em
10/08/2016;
- logo, João ingressou com a ação
cerca de 4 meses depois do prazo prescricional findar.
Em réplica, o autor argumentou
que, com a edição da Lei nº 14.010/2020, que dispõe sobre o Regime Jurídico
Emergencial e Transitório das relações jurídicas de período da pandemia da
Covid-19, houve a suspensão dos prazos de prescrição e decadência entre 20/03/2020
e 30/10/2020, ou seja, por cerca de 7 meses, de modo que sua pretensão não
estaria prescrita.
O STJ concordou com esses
argumentos do autor?
NÃO.
Durante a pandemia ocasionada
pelo vírus SARS-CoV-2, o Congresso Nacional editou diversas leis com o intuito de minimizar o
impacto que surgia da contingência das restrições à liberdade ambulatorial e os
seus efeitos econômicos, uma delas foi a Lei nº. 14.010, de 10/06/2020, que
dispunha sobre o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das Relações
Jurídicas de Direito Privado
(RJET) no período da pandemia do coronavírus (Covid-19).
Essa lei contemplou uma série de
regramentos que buscavam compor essa situação excepcional com o regular
andamento da vida em sociedade, e assim, por exemplo, suspendeu o exercício do
direito de arrependimento do consumidor previsto no art. 49 do Código de Defesa
do Consumidor para a hipótese de entrega domiciliar (“delivery”) de produtos
perecíveis ou de consumo imediato e de medicamentos. Uma outra regra, a do art.
3º, dispunha explicitamente sobre os prazos prescricionais e decadenciais,
igualmente tratando de sustar o curso regular deles.
Por disposição legal expressa a regra impedia o início
desses prazos ou os suspendia desde a entrada em vigor da lei até o dia
30/10/2020. Confira:
Art. 3º Os prazos prescricionais
consideram-se impedidos ou suspensos, conforme o caso, a partir da entrada em
vigor desta Lei até 30 de outubro de 2020.
§ 1º Este artigo não se aplica
enquanto perdurarem as hipóteses específicas de impedimento, suspensão e
interrupção dos prazos prescricionais previstas no ordenamento jurídico
nacional.
§ 2º Este artigo aplica-se à
decadência, conforme ressalva prevista no art. 207 da Lei nº 10.406, de 10 de
janeiro de 2002 (Código Civil).
É preciso ter em mente que o
objetivo da lei nunca foi o de regular as relações jurídicas de direito público
mas unicamente aquelas de direito privado. Isso fica evidente quando se atenta
ao fato de que a pandemia era presumida como uma situação passageira, e a lei
dispôs, em seus dois primeiros artigos, o âmbito de sua aplicação e o período
de produção de seus efeitos.
É bastante claro, portanto, que a
Lei nº 14.010/2020 estabeleceu um regime jurídico transitório de regulação de
relações privadas, o que torna absolutamente impertinente a sua aplicabilidade
no caso concreto, que trata de relação entre Administração Pública e
administrado, na especificidade da executora do concurso público e o candidato.
Com efeito, não parece razoável
uma interpretação que considere que a vontade legislativa expressada no texto
legal (“voluntas legis”) seja distinta da vontade legislativa supostamente
implícita (“voluntas legislatoris”) e que se deva, então, utilizar de método
interpretativo que estenda a aplicação da lei a situações claramente não
abrangidas por ela. Nesse sentido, verifica-se que todos os preceitos
normativos da Lei nº 14.010/2020 trataram meramente de situações relacionadas
ao direito privado, como a resolução, resilição e revisão contratual, os
condomínios edilícios, as relações de consumo ou as relações de direito de
família e sucessões, de forma que não há no corpo legal nada que possibilite ao
intérprete criar situação que descambe dos limites do texto.
Dessa forma, inaplicável a Lei nº
14.010/2020 às relações jurídicas de direito público que tratem de pretensão
decorrente de concurso público, aplicando-se o prazo do Decreto Federal
20.910/1932 para a pretensão de nomeação deduzida por candidato aprovado em
cadastro de reserva.
Em suma:
Os efeitos da Lei nº 14.010/2020, concernentes à
prescrição e à decadência, não se aplicam às relações jurídicas de direito
público que tratam de direitos e obrigações que surjam de concurso público,
aplicando-se o prazo do Decreto Federal nº 20.910/1932 para a pretensão de
nomeação deduzida por candidato aprovado em cadastro de reserva.
STJ. 2ª
Turma. REsp 2.134.160-AP, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, julgado em
14/5/2024 (Info 812).