Dizer o Direito

domingo, 30 de junho de 2024

Fazenda Pública quer obter indenização de um particular. Qual é o prazo prescricional?

Imagine a seguinte situação hipotética:

Em 11 de novembro de 2013, João, empregado da Alfa Ltda, sofreu um grave acidente de trabalho.

Em razão do acidente, em 27/11/2013, João passou a receber auxílio-doença (atualmente chamada de auxílio por invalidez temporária), custeado pelo INSS.

Ocorre que o auditor-fiscal do trabalho constatou que o acidente havia sido causado por inobservância de normas básicas de segurança no trabalho por parte da Alfa Ltda, tendo autuado a empresa em razão das falhas detectadas e que foram determinantes para o acidente que vitimou João.

Em 01 de julho de 2018, o INSS, de posse desse auto de infração, ajuizou ação regressiva acidentária contra a Alfa Ltda, buscando o ressarcimento dos valores gastos com o pagamento do auxílio-doença a João.

 

Qual é o fundamento jurídico para essa ação proposta pelo INSS?

O art. 120 da Lei nº 8.213/91, sob o argumento de que a empresa foi negligente nos padrões de segurança, o que ocasionou o acidente. Confira:

Art. 120. A Previdência Social ajuizará ação regressiva contra os responsáveis nos casos de:

I - negligência quanto às normas padrão de segurança e higiene do trabalho indicadas para a proteção individual e coletiva;

II - violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos da Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006.

 

Essa demanda do INSS será proposta na Justiça do Trabalho ou Justiça Comum?

Justiça federal comum.

Compete à Justiça comum processar e julgar ação proposta pelo INSS objetivando o ressarcimento dos valores despendidos com o pagamento de pecúlio e pensão por morte acidentária, em razão de acidente de trabalho ocorrido nas dependências da empresa ré, por culpa desta. O litígio não tem por objeto a relação de trabalho em si, mas sim o direito regressivo da autarquia previdenciária, que é regido pela legislação civil.

STJ. 2ª Seção. CC 59.970/RS, Rel. Min. Castro Filho, julgado em 13/09/2006.

 

Trata-se de competência da justiça federal porque o INSS é uma autarquia federal (art. 109, I, da CF/88).

 

Em sua defesa, a empresa alegou que paga regularmente a contribuição para o SAT (Seguro de Acidente de Trabalho), destinada a custear benefícios do INSS oriundos de acidente de trabalho ou doença ocupacional. Logo, o INSS não poderia cobrar dela o ressarcimento pelos valores pagos da pensão por morte, considerando que isso já estaria coberto pelo SAT. Tal tese é aceita pela jurisprudência?

NÃO. Segundo o STJ, a contribuição ao SAT não exime o empregador da sua responsabilização por culpa em acidente de trabalho, conforme art. 120 da Lei nº 8.213/1991 (STJ. 2ª Turma. AgRg no AREsp 294.560/PR, Rel. Min. Herman Benjamin, julgado em 27/03/2014).

 

Qual é o prazo prescricional dessa ação proposta pelo INSS contra a empresa?

5 anos.

O prazo prescricional das ações propostas contra a Fazenda Pública é de 5 anos, com base no art. 1º do Decreto 20.910/1932:

Art. 1º As dívidas passivas da União, dos Estados e dos Municípios, bem assim todo e qualquer direito ou ação contra a Fazenda federal, estadual ou municipal, seja qual for a sua natureza, prescrevem em cinco anos contados da data do ato ou fato do qual se originarem.

 

Mas o art. 1º do Decreto fala em ação proposta contra a Fazenda Pública. No exemplo dado, a ação foi proposta pelo INSS contra o particular...

Mesmo assim, deve-se aplicar o art. 1º do Decreto 20.910/1932. Isso com base no princípio da isonomia.

Ora, se a demanda indenizatória ajuizada contra a Fazenda Pública está sujeita ao prazo de 5 anos, esse mesmo prazo deve ser aplicado para a demanda proposta pela Fazenda Pública contra o particular.

 

Qual é o termo inicial do prazo prescricional: o dia do acidente (11/11/2013) ou a data da concessão do benefício (27/11/2013)?

A data da concessão do benefício.

Em nosso exemplo acima, como o auxílio-doença foi concedido em 27/11/2013 e ação foi proposta 01 de julho de 2018, conclui-se que não se passaram mais de cinco anos, razão pela qual a pretensão não está prescrita.

 

Em suma:

Em respeito ao princípio da isonomia, o lapso prescricional da demanda indenizatória ajuizada pelo ente estatal deverá obedecer ao mesmo prazo quinquenal do art. 1º do Decreto n. 20.910/1932, previsto para as ações indenizatórias ajuizadas contra a Fazenda Pública. 

STJ. 1ª Turma. AgInt no REsp 2.100.988-PE, Rel. Min. Sérgio Kukina, julgado em 8/4/2024 (Info 814).


sábado, 29 de junho de 2024

Durante a apuração e o julgamento de crimes contra a dignidade sexual é proibida a realização de menções, questionamentos ou de argumentação sobre a vida sexual pregressa da vítima e seu modo de vida

O caso concreto foi o seguinte:

A Procuradoria-Geral da República ajuizou arguição de descumprimento de preceito fundamental pedindo que o STF proíba que, durante a apuração e o julgamento de crimes contra a dignidade sexual, sejam feitos questionamentos sobre a vida sexual pregressa da vítima e seu modo de vida.

Nesses tipos de processos é comum o questionamento feito por policiais, delegados, promotores, advogados e juízes sobre o tipo de roupa que a mulher usava, se ingeriu álcool, se era virgem ou com quem se relacionava.

A PGR sustentou que tais perguntas desqualificam a vítima, caracterizando uma descriminação contra mulher, pois busca justificar o crime a partir do comportamento da vítima, dando a entender que a mulher teria culpa pela violência sofrida.

A PGR alega que o discurso de desqualificação da vítima, mediante a análise e a exposição de sua conduta e hábitos de vida, parte da “concepção odiosa” de que seria possível distinguir mulheres que merecem ou não a proteção penal pela violência sofrida. “Em ambiente que haveria de ser de acolhimento, a mulher vítima de violência passa a ser, ela própria, julgada em sua moral e seu modo de vida, na tentativa da defesa de justificar a conduta do agressor, e sem a reprimenda proporcional pelo Estado”.

Outro argumento é o de que, na investigação de crimes relacionados à violência sexual contra a mulher, o consentimento da vítima é o único elemento a ser apreciado. Considerações sobre seu comportamento partem de conduta enviesada e discriminatória e devem ser prontamente contidas e repreendidas.

Requereu, portanto, que o STF vedasse expressamente a prática de desqualificação da vítima – em geral promovida pela defesa do acusado –, bem como a consideração ou ratificações judiciais de alegações nesse sentido que direcione o julgamento respectivo para a absolvição do acusado ou que o beneficie na aplicação da pena. Para o PGR, essa prática é inconstitucional e deve ser invalidada, impondo-se aos órgãos que conduzem o processo criminal a obrigação de prontamente coibi-la e de responsabilizar quem impõe violência psicológica à vítima.

 

Os argumentos invocados pelo PGR foram acolhidos pelo STF? 

SIM.

A Constituição Federal garante a dignidade humana (art. 1º, III) e a igualdade entre homens e mulheres (art. 3º, I e IV; art. 5º, caput e I; e art. 226, § 5º):

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

(...)

III - a dignidade da pessoa humana;

 

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;

(...)

IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

 

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição;

 

Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.

(...)

§ 5º Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher.

 

Apesar da evolução legal e constitucional, o Estado e a sociedade brasileira continuam aceitando a discriminação e a violência de gênero contra a mulher na apuração e judicialização dos atentados contra ela, principalmente nos crimes contra a dignidade sexual.

De fato, é comum que, nas audiências, a vítima seja inquirida quanto à sua vida pregressa e aos seus hábitos sexuais para que tais elementos sejam utilizados como argumentos para justificar a conduta do agressor.

Essas práticas não possuem base legal nem constitucional e foram construídas para relativizar a violência contra a mulher e gerar tolerância em relação a estupros praticados contra aquelas cujo comportamento fugisse do que era considerado aceitável pelo agressor. Nesses casos, culpa-se a vítima pela conduta delituosa do agente.

Nesse contexto, todos os Poderes da República devem atuar conjuntamente para coibir a violência de gênero, especialmente a vitimização secundária da pessoa agredida em sua dignidade sexual.

Questionar o histórico da vida sexual ou o modo de vida da vítima durante a apuração e julgamento dos crimes de violência contra a mulher viola a Constituição Federal. Se isso ocorrer, o processo pode ser anulado, nos termos dos arts. 563 a 573 do CPP.

O STF definiu, ainda, que o juiz responsável pelo julgamento desses crimes tem o dever de impedir tal prática durante a investigação, sob pena de responsabilização administrativa e penal.

De igual modo, o magistrado não pode levar em consideração a vida sexual da vítima no momento de fixar a pena do réu.

 

Em suma:

É inconstitucional a prática de desqualificar a mulher vítima de violência durante a instrução e o julgamento de crimes contra a dignidade sexual e todos os crimes de violência contra a mulher, de maneira que se proíbe eventual menção, inquirição ou fundamentação sobre a vida sexual pregressa ou o modo de vida da vítima em audiências e decisões judiciais.

STF. Plenário. ADPF 1.107/DF, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgado em 23/05/2024 (Info 1138).

 

Com base nesses entendimentos, o Plenário do STF, por unanimidade, julgou procedente o pedido para:

 

(i) conferir interpretação conforme a Constituição à expressão elementos alheios aos fatos objeto de apuração posta no art. 400-A do CPP, para excluir a possibilidade de invocação, pelas partes ou procuradores, de elementos referentes à vivência sexual pregressa da vítima ou ao seu modo de vida em audiência de instrução e julgamento de crimes contra a dignidade sexual e de violência contra a mulher, sob pena de nulidade do ato ou do julgamento, nos termos dos arts. 563 a 573 do CPP/1941;

Art. 400-A. Na audiência de instrução e julgamento, e, em especial, nas que apurem crimes contra a dignidade sexual, todas as partes e demais sujeitos processuais presentes no ato deverão zelar pela integridade física e psicológica da vítima, sob pena de responsabilização civil, penal e administrativa, cabendo ao juiz garantir o cumprimento do disposto neste artigo, vedadas:

I - a manifestação sobre circunstâncias ou elementos alheios aos fatos objeto de apuração nos autos;

II - a utilização de linguagem, de informações ou de material que ofendam a dignidade da vítima ou de testemunhas.

 

(ii) vedar o reconhecimento da nulidade referida no item anterior na hipótese de a defesa invocar o modo de vida da vítima ou a questionar quanto a vivência sexual pregressa com essa finalidade, considerando a impossibilidade de o acusado se beneficiar da própria torpeza;

 

(iii) conferir interpretação conforme a Constituição ao art. 59 do Código Penal, para assentar ser vedado ao magistrado, na fixação da pena em crimes sexuais, valorar a vida sexual pregressa da vítima ou seu modo de vida:

Art. 59. O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e consequências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime:

I - as penas aplicáveis dentre as cominadas;

II - a quantidade de pena aplicável, dentro dos limites previstos;

III - o regime inicial de cumprimento da pena privativa de liberdade;

IV - a substituição da pena privativa da liberdade aplicada, por outra espécie de pena, se cabível.

 

(iv) assentar ser dever do magistrado julgador atuar no sentido de impedir essa prática inconstitucional, sob pena de responsabilização civil, administrativa e penal.

 

Por fim, o Tribunal determinou o encaminhamento do acórdão deste julgamento a todos os tribunais de justiça e tribunais regionais federais do País, para que sejam adotadas as diretrizes ora determinadas.


sexta-feira, 28 de junho de 2024

É inconstitucional a concessão de bonificação de inclusão regional incidente sobre a nota final do Enem para o ingresso em universidade federal

STF decidiu as cotas baseadas em critérios étnico-racial é constitucional; também são válidas as cotas para alunos de escolas públicas

Algumas universidades públicas em nosso país adotam sistemas de cotas.

Por meio deste sistema, alguns alunos, por ostentarem características peculiares ligadas à cor, etnia, classe social ou por serem oriundos de escolas públicas têm direito a um percentual de vagas que não é submetido à concorrência ampla.

O STF afirmou que, em regra, esse sistema de cotas é constitucional. Nesse sentido:

O sistema de cotas em universidades, com base em critério étnico-racial, é CONSTITUCIONAL.

É também constitucional fixar cotas para alunos que sejam egressos de escolas públicas.

STF. Plenário. RE 597285/RS, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgado em 9/5/2012.

 

STF tem decidido que é inconstitucional o sistema de cotas baseado no local onde o aluno estudou

O Reitor da Universidade Federal do Maranhão (UFMA) editou a Resolução nº 2.648/2022 que, em linhas gerais, disse que, se o aluno que fizer o Enem (Exame Nacional do Ensino Médio), concluiu o ensino médio nos Municípios das microrregiões do Estado, ele terá um acréscimo em sua nota final, ou seja, uma espécie de bonificação.

Veja os arts. 1º e 2º dessa Resolução:

Art. 1º Estabelecer o critério de inclusão regional, acréscimo na nota final do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) no Sistema de Seleção Unificada (SISU), com o objetivo de estimular o ingresso aos cursos mais concorridos da Universidade Federal do Maranhão (UFMA) dos estudantes que concluíram o Ensino Médio nas microrregiões, conforme o disposto nos arts. 4º e 6º desta Resolução ou no Estado do Maranhão.

Parágrafo Único. Este critério de inclusão regional é válido para os candidatos que concorrerem na modalidade de ampla concorrência nos cursos de Medicina ofertados nos campi de Imperatriz, Pinheiro e São Luís.

Art. 2º A política afirmativa de bonificação regional não será aplicada para os demais cursos de graduação oferecidos pela UFMA.

(...)

 

O bônus foi fixado tão somente para o ingresso no curso de medicina, sob a justificativa da dificuldade de arregimentação de médicos para a localidade.

João queria cursar medicina na UFMA. Se não existisse o sistema de bonificação, a nota que ele obteve no Enem seria suficiente para conseguir uma vaga na Universidade. Ocorre que, em razão de ele não se enquadrar como beneficiário da cota, acabou perdendo a vaga para um aluno oriundo de uma escola do interior do Estado e que recebeu a bonificação.

João não concordou e impetrou mandado de segurança, na primeira instância da Justiça Federal, pedindo que a bonificação para inclusão regional fosse declarada inconstitucional e, que, em razão disso, ele tivesse direito à vaga.

O Juiz Federal, contudo, rejeitou o pedido.

Inconformado, João ingressou com reclamação, diretamente no STF, argumentando que essa decisão do magistrado desrespeitou a autoridade das decisões proferidas pelo STF no julgamento da ADI 4.868 e no RE 614.873:

É inconstitucional a lei distrital que preveja que 40% das vagas das universidades e faculdades públicas do Distrito Federal serão reservadas para alunos que estudaram em escolas públicas do Distrito Federal.

Essa lei, ao restringir a cota apenas aos alunos que estudaram no Distrito Federal, viola o art. 3º, IV e o art. 19, III, da CF/88, tendo em vista que faz uma restrição injustificável entre brasileiros.

Vale ressaltar que a inconstitucionalidade não está no fato de ter sido estipulada a cota em favor de alunos de escolas públicas, mas sim em razão de a lei ter restringido as vagas para alunos do Distrito Federal, em detrimento dos estudantes de outros Estados da Federação.

STF. Plenário ADI 4868, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 27/03/2020.

 

É inconstitucional lei estadual que assegura, de forma infundada e/ou desproporcional, percentual das vagas oferecidas para a universidade pública local a candidatos que cursaram integralmente o ensino médio em instituições públicas ou privadas da mesma unidade federativa.

Essa lei viola a garantia de tratamento igualitário a todos os cidadãos brasileiros, que veda a criação de distinções ou preferências entre si (art. 19, III, da CF/88).

STF. Plenário. RE 614.873/AM, Rel. Min. Marco Aurélio, redator do acórdão Min. Alexandre de Moraes, julgado em 19/10/2023 (Repercussão Geral – Tema 474) (Info 1113).

 

Em regra, caberia reclamação neste caso?

NÃO. Isso porque o STF exige o esgotamento das instâncias ordinárias para examinar reclamação ajuizada com o objetivo de corrigir decisão pela qual se aplica a sistemática da repercussão geral.

Nesse sentido é o art. 988, § 5º, II, do CPC/2015:

Art. 988. Caberá reclamação da parte interessada ou do Ministério Público para:

(...)

§ 5º É inadmissível a reclamação:

(...)

II – proposta para garantir a observância de acórdão de recurso extraordinário com repercussão geral reconhecida ou de acórdão proferido em julgamento de recursos extraordinário ou especial repetitivos, quando não esgotadas as instâncias ordinárias.

 

Contudo, havendo perigo de perecimento de direito pelo decurso do tempo, o STF tem relativizado essa exigência e admitido a análise da reclamação para corrigir comprovada má aplicação de tese da repercussão geral pelas instâncias de origem.

 

Demonstrado o perigo de perecimento do direito pelo decurso do tempo, pode ser relativizada a exigência do esgotamento das instâncias ordinárias (art. 988, § 5º, II, CPC/2015) e admitida a reclamação, a fim de corrigir a má aplicação de tese da repercussão geral e garantir direitos.

STF. 1ª Turma. Rcl 65.976/MA, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgado em 21/05/2024 (Info 1138).

 

No caso em exame, o reclamante informa risco de perecimento de seu direito, pois a Universidade Federal do Maranhão daria continuidade ao procedimento de matrícula e início do ano letivo para os demais alunos aprovados para o curso de medicina e a sua vaga seria preenchida por outro aluno, eventualmente beneficiado pelo bônus de inclusão regional de 20% incidente sobre a nota obtida no ENEM. Entretanto, pelo que predomina na jurisprudência do STF, contraria o princípio constitucional da isonomia exigência de atendimento a critério que distingue os brasileiros ou criam preferências entre eles, sobretudo pela sua origem.

Assim, haveria risco de perecimento do direito, em face da continuidade do procedimento de matrícula e início do ano letivo para os demais alunos aprovados no curso de medicina, e da possibilidade da vaga do reclamante, nesse curso, ser preenchida por outro aluno eventualmente beneficiado por um bônus de inclusão regional.

Como corolário do princípio da isonomia (art. 5º, caput, CF/88), o texto constitucional enuncia expressamente ser vedado à União, aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si (art. 19, III, CF/88).

Apesar da melhor das intenções, a fixação do aludido critério, embasado apenas na origem ou na procedência dos cidadãos, contraria o princípio da igualdade e afronta a autoridade de decisões proferidas pelo STF.

 

É inconstitucional — por violar o princípio da igualdade — o estabelecimento de bonificação de inclusão regional incidente sobre a nota final do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), no Sistema de Seleção Unificada (Sisu), para o ingresso em universidade federal, a beneficiar os alunos que concluíram o ensino médio nas imediações da instituição de ensino, mesmo que o bônus seja fixado tão somente para o ingresso no curso de medicina, sob a justificativa da dificuldade de arregimentação de médicos para a localidade.

STF. 1ª Turma. Rcl 65.976/MA, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgado em 21/05/2024 (Info 1138).

 

Com base nesses e em outros entendimentos, a Primeira Turma, por unanimidade, julgou procedente a reclamação para, confirmando a medida liminar deferida, cassar a decisão reclamada e determinar que outra seja proferida, em observância ao decidido por este Tribunal na ADI 4.868/DF e no RE 614.873/AM, paradigma do Tema 474 da repercussão geral, prejudicado o agravo regimental interposto.

 

Observação pessoal:

Se você reparar bem neste caso o STF, apesar de não falar expressamente isso (portanto, não mencione em uma prova de concurso), adotou a teoria da transcendência dos motivos determinantes. Isso porque os dois precedentes invocados como violados (ADI 4868 e RE 614.873/AM) não se referiam à Resolução nº 2.648/2022 nem a qualquer outro ato relacionado com a Universidade Federal do Maranhão.

Perceba, assim, que, na prática, o STF afirmou que a decisão reclamada violou os fundamentos de dois paradigmas do STF que não tratavam exatamente da mesma situação enfrentada na decisão reclamada.

Trata-se, contudo, de uma mera observação pessoal que não constou expressamente dos debates.

Importante também relembrar que essa mesma solução que o STF deu no caso acima ele também utiliza nas reclamações envolvendo afronta à liberdade de expressão. Nesse sentido: STF. 1ª Turma. Rcl 22328/RJ, Rel. Min. Roberto Barroso, julgado em 6/3/2018 (Info 893).

 

Esqueceu o que é a teoria da transcendência dos motivos determinantes? Vamos relembrar:

A Constituição Federal, em seu art. 102, § 2º, estabelece os efeitos da decisão proferida pelo STF no controle abstrato de constitucionalidade:

Art. 102 (...)

§ 2º As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal.

 

Vou explicar melhor esses efeitos:

1) Quanto ao aspecto SUBJETIVO (quem é atingido pela decisão?)

• Eficácia contra todos (erga omnes).

• Efeito vinculante.

 

2) Quanto ao aspecto OBJETIVO (que partes da decisão produzem eficácia erga omnes e efeito vinculante?)

1ª corrente: teoria restritiva.

Somente o dispositivo da decisão produz efeito vinculante.

Os motivos invocados na decisão (fundamentação) não são vinculantes.

 

2ª corrente: teoria extensiva.

Além do dispositivo, os motivos determinantes (ratio decidendi) da decisão também são vinculantes.

Admite-se a transcendência dos motivos que embasaram a decisão.

Em suma, pela teoria da transcendência dos motivos determinantes (efeitos irradiantes dos motivos determinantes), a ratio decidendi, ou seja, os fundamentos determinantes da decisão também teriam efeito vinculante.

Ocorre que o STF, em regra, não adota a teoria da transcendência dos motivos determinantes (teoria extensiva).

O STF já chegou a manifestar apreço pela teoria da transcendência dos motivos determinantes, mas atualmente, a posição da Corte é no sentido de que não pode ser acolhida.


quinta-feira, 27 de junho de 2024

INFORMATIVO Comentado 1139 STF (completo e resumido)

Olá, amigas e amigos do Dizer o Direito,

Já está disponível mais um INFORMATIVO COMENTADO.

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Confira abaixo o índice. Bons estudos.

ÍNDICE DO INFORMATIVO 1139 DO STF


Direito Constitucional

DIREITOS SOCIAIS

§  Congresso Nacional está sendo omisso ao não regulamentar o adicional de penosidade (art. 7º, XXXIII, da CF); STF fixou prazo de 18 meses para que o Legislativo suplante essa omissão.

§  Não é possível constituir um sindicato utilizando como critério o número de empregados das empresas ou o seu porte.

 

SAÚDE

§  É constitucional a política pública instituída pelo art. 3º da Lei 12.871/2013  que condiciona a autorização para o funcionamento de curso de graduação em medicina à prévia realização de chamamento público.

 

COMPETÊNCIAS LEGISLATIVAS

§  Lei estadual não pode conceder porte de arma de fogo a Defensores Públicos.

§  Lei estadual não pode conceder desconto sobre honorários de sucumbência devidos em razão de ações tributárias e execuções fiscais.

 

DIREITO PROCESSUAL PENAL

RECURSOS

§  O sobrestamento de recursos extraordinários nos tribunais de origem para aguardar a fixação da tese de repercussão geral (art. 1.030, III, do CPC) não suspende, de modo automático, o prazo da prescrição penal.

 

DIREITO PREVIDENCIÁRIO

CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA

§  A majoração da alíquota da contribuição dos servidores estaduais ao Regime Próprio de Previdência Social (RPPS) não exige a edição de lei complementar, sendo constitucional que ocorra mediante lei ordinária ou medida provisória.


A responsabilidade civil de jornalistas, ao divulgar notícias sobre figuras públicas ou assuntos de interesse social, só ocorre em casos de dolo ou culpa grave; caracterizado o assédio judicial, o jornalista réu poderá requerer a reunião de todas as ações no foro de seu domicílio

O caso concreto, com adaptações, foi o seguinte:

Em 2021, a Associação Brasileira de Imprensa (ABI) e a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) ingressaram com duas ações diretas de inconstitucionalidade, pedindo que o STF adotasse medidas para combater o assédio judicial contra jornalistas e empresas de comunicação (jornais, revistas, rádio e TV).

A ABI argumentou que proliferam no Brasil decisões judiciais condenando jornalistas por críticas a figuras públicas ou em assuntos de interesse público. Essas condenações produzem, como resultado, um indesejado “efeito silenciador da crítica pública”, em afronta à liberdade de expressão, de informação jornalística e ao direito à informação.

As indenizações interrompem ou prejudicam gravemente o funcionamento de órgãos de imprensa e ameaçam a subsistência de profissionais de comunicação.

Para a ABI, jornalistas e veículos de imprensa quando publicam, de boa-fé, matérias sobre casos de corrupção ou atos de improbidade que não foram objeto de uma comprovação definitiva, não devem sofrer risco de retaliações, por meio do ajuizamento de ações cíveis. Apenas a divulgação dolosa ou gravemente negligente de notícia falsa pode legitimar condenações.

Essas ações contra jornalistas configuram, na visão das autoras, assédio judicial, que consiste na “utilização do Poder Judiciário como forma de perseguição e intimidação contra a imprensa”. O assédio judicial configura-se com a propositura de várias ações de indenização sobre os mesmos fatos e contra a mesma pessoa em diferentes cidades e Estados com o objetivo de dificultar a defesa ou intimidar os jornalistas.

Nesse cenário, as associações pediram que:

i) no caso de assédio judicial, todas as ações sejam reunidas em um único lugar para garantir o direito à defesa; e

ii) que os jornalistas e empresas de comunicação sejam responsabilizadas pelas publicações apenas nas hipóteses de comprovação de dolo ou descuido na verificação das informações publicadas (culpa grave).

 

Na ADI 6.792/DF, ajuizada pela Associação Brasileira de Imprensa (ABI), foi requerida a interpretação conforme a CF/88 dos seguintes dispositivos: arts. 186 e 927 do Código Civil; art. 835, caput e § 1º do CPC; arts. 79, 80 e 81 do CPC.

Já na ADI 7.055/DF, ajuizada pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (ABRAJI), foi requerida a interpretação conforme a Constituição do art. 53, IV, do CPC e do art. 4º, III, da Lei nº 9.099/95:

Art. 53. É competente o foro:

(...)

IV - do lugar do ato ou fato para a ação:

a) de reparação de dano;

b) em que for réu administrador ou gestor de negócios alheios;

 

Art. 4º É competente, para as causas previstas nesta Lei, o Juizado do foro:

(...)

III - do domicílio do autor ou do local do ato ou fato, nas ações para reparação de dano de qualquer natureza.

 

Assédio judicial

O assédio judicial verifica-se quando inúmeras ações são ajuizadas sobre os mesmos fatos em comarcas diversas, com o objetivo de intimidar jornalistas, impedir sua defesa ou torná-la extremamente dispendiosa. É uma prática abusiva do direito de ação, com notório intuito de prejudicar o direito de defesa de jornalista ou órgão de imprensa.

Quando identificado o assédio judicial, a proteção da liberdade de expressão legitima a fixação de competência no foro do domicílio do réu, que é a regra geral do direito brasileiro (art. 46, caput, do CPC):

Art. 46. A ação fundada em direito pessoal ou em direito real sobre bens móveis será proposta, em regra, no foro de domicílio do réu.

 

Nos casos de assédio judicial a jornalistas, a parte ré poderá solicitar a reunião de todas as demandas judiciais para serem julgadas no foro de seu domicílio.

STF. Plenário. ADI 6.792/DF e ADI 7.055/DF, Rel. Min. Rosa Weber, redator do acórdão Min. Luís Roberto Barroso, julgado em 22/05/2024 (Info 1138).

 

Vale ressaltar que há várias leis que estabelecem expressamente a reunião de ações com os mesmos fundamentos em um único foro. Exemplos: Lei da Ação Popular, Lei da Ação Civil Pública, Lei de Improbidade Administrativa.

Para unificar as ações que forem iniciadas em tribunais distintos, bastará que a defesa solicite a sua remessa e redistribuição, tornando-se prevento o juiz do domicílio do réu no qual a primeira ação for distribuída.

Além disso, nas situações em que restar evidente o assédio judicial, o magistrado competente poderá reconhecer de ofício a ausência do interesse de agir e, consequentemente, extinguir sumariamente a ação sem resolução do mérito.

 

Responsabilidade do jornalista pela divulgação de notícias sobre figuras públicas ou assuntos de interesse social

O STF decidiu que:

A responsabilidade civil de jornalistas, ao divulgar notícias sobre figuras públicas ou assuntos de interesse social, só ocorre em casos de dolo ou culpa grave (manifesta negligência profissional na apuração dos fatos), não se aplicando a opiniões, críticas ou informações verdadeiras de interesse público.

STF. Plenário. ADI 6.792/DF e ADI 7.055/DF, Rel. Min. Rosa Weber, redator do acórdão Min. Luís Roberto Barroso, julgado em 22/05/2024 (Info 1138).

 

A liberdade de expressão é um direito protegido de maneira reforçada na CF/88, com fundamentos nos seguintes dispositivos:

Art. 5º (...)

IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;

V - é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem;

VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;

(...)

IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;

(...)

XIV - é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional;

 

Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:

(...)

II - liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber;

 

Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.

 § 1º Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV.

§ 2º É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.

(...)

§ 5º Os meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio.

 

A Corte ponderou que nos casos de conflito entre a liberdade de expressão e outros direitos fundamentais, tais como direito à honra e à vida privada, a liberdade deve prevalecer na maior parte dos casos.

Isso porque a liberdade de expressão é uma liberdade preferencial pela sua importância para a dignidade da pessoa humana, sendo imprescindível para a democracia e que depende da participação esclarecida das pessoas.

Essa posição preferencial da liberdade de expressão protege a atividade jornalística. Logo, o jornalista ou o veículo de comunicação somente podem ser responsabilizados nas hipóteses explícitas de dolo ou culpa grave (culpa grave neste caso significa evidente negligência profissional na apuração dos fatos).

Assim, os jornalistas e meios de comunicação só podem ser condenados a pagar indenização pelo conteúdo de suas publicações quando for comprovado:

• a intenção de prejudicar outras pessoas (dolo); ou

• quando existir descuido significativo na apuração da informação (culpa grave).

 

Confira as teses fixada pelo STF:  

1. Constitui assédio judicial comprometedor da liberdade de expressão o ajuizamento de inúmeras ações a respeito dos mesmos fatos, em comarcas diversas, com o intuito ou o efeito de constranger jornalista ou órgão de imprensa, dificultar sua defesa ou torná-la excessivamente onerosa.

2. Caracterizado o assédio judicial, a parte demandada poderá requerer a reunião de todas as ações no foro de seu domicílio.

3. A responsabilidade civil de jornalistas ou de órgãos de imprensa somente estará configurada em caso inequívoco de dolo ou de culpa grave (evidente negligência profissional na apuração dos fatos).

STF. Plenário. ADI 6.792/DF e ADI 7.055/DF, Rel. Min. Rosa Weber, redator do acórdão Min. Luís Roberto Barroso, julgado em 22/05/2024 (Info 1138).

 

Com base nesses e em outros entendimentos, o Plenário, em apreciação conjunta, por maioria, julgou parcialmente procedente a ADI 6.792/DF e integralmente procedente a ADI 7.055/DF, para dar interpretação conforme a Constituição aos arts. 186 e 927, caput, do Código Civil, e ao art. 53 do Código de Processo Civil, nos moldes da tese anteriormente citada, fixada também por maioria.


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