Dizer o Direito

terça-feira, 14 de maio de 2024

Se uma pessoa é ferida ou morta em decorrência de uma bala perdida em uma operação policial, o Estado tem responsabilidade civil e deverá indenizar mesmo que a perícia não consiga atestar que a bala partiu dos policiais?

Imagine a seguinte situação hipotética:

Em 2015, o Exército realizou uma operação no complexo da Maré, na cidade do Rio de Janeiro/RJ.

Iniciou-se uma troca de tiros entre os militares e os traficantes e, infelizmente, João, um morador da comunidade que não tinha nenhuma relação com o tráfico, foi atingido dentro de sua casa por uma bala perdida, vindo a falecer.

Os pais da vítima ajuizaram ação de indenização contra a União.

O Juízo de 1º grau julgou o pedido improcedente por entender que não houve nexo de causalidade já que a perícia foi inconclusiva quanto à origem do disparo, não podendo apontar que a bala que atingiu a vítima tenha partido das armas utilizadas pelos militares.

A sentença foi mantida pelo TRF da 2ª Região.

Os autores interpuseram recurso extraordinário.

 

O que decidiu o STF? A União foi condenada a pagar a indenização aos pais da vítima da bala perdida?

SIM.

 

Número alarmante de pessoas vitimadas em ações policiais e responsabilização internacional do Brasil

Existe um número alarmante de pessoas vitimadas em razão de ações policiais, conforme se pode constatar nos dados divulgados no Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2022, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Vale ressaltar, inclusive, que o Brasil sofreu responsabilização internacional devido à extrema violência registrada em operações policiais. Trata-se do caso denominado “Favela Nova Brasília vs. Brasil”, no qual o país foi submetido a um processo devido a 26 homicídios e 3 casos de violência sexual que ocorreram durante duas incursões policiais em 18/10/1994 e 08/05/1995, na comunidade Favela Nova Brasília.

O caso “Favela Nova Brasília vs. Brasil”, julgado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, pôde demonstrar, internacionalmente, a letalidade proveniente das operações policiais realizadas no Brasil. Para além desse fator, evidenciou as violações de direitos humanos vivenciadas pelas vítimas e seus familiares, em razão dos atos violentos, das falhas e da mora na investigação e punição dos responsáveis.

 

ADPF 635

O crescente número de mortos no Estado do Rio de Janeiro durante as intervenções policiais foi o fundamento da ADPF 635, ajuizada em 2019 pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB). Isso ficou conhecido como “ADPF das Favelas”.

Nesta ADPF, o STF determinou que uma série de medidas para redução da letalidade policial e controle das violações aos direitos humanos pelas forças de segurança.

STF. Plenário. ADPF 635 MC-ED/RJ, Rel. Min. Edson Fachin, julgado em 2 e 3/02/2022 (Info 1042).

 

Voltando ao caso concreto: existência do nexo de causalidade

No campo da responsabilidade civil, a regra é a responsabilidade objetiva do Estado, sob forma da teoria do risco administrativo, que encontra amparo no art. 37, § 6º, da Constituição Federal:

Art. 37 (...)

§ 6º As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.

 

Como a Constituição adotou a teoria do risco administrativo – e não a teoria do risco integral – o Estado somente será responsabilizado se o dano decorrer de ação ou omissão do Poder Público. É necessário que haja, portanto, relação de causalidade entre a ação ou omissão do Poder Público e o dano. Sem essa relação de causalidade não é possível imputar responsabilidade ao Estado.

No caso concreto, como a perícia foi inconclusiva em relação à origem do disparo do projétil que atingiu a vítima, o juiz e o TRF2 consideraram ausente o nexo de causalidade, elemento essencial para caracterizar a responsabilidade do Estado e, consequentemente, o seu dever de indenizar.

O STF, contudo, discordou dessa conclusão do TRF2 e condenou a União a indenizar.

Para o STF, existe nexo de causalidade considerando que, se não tivesse havido a operação no local, não haveria troca de tiros e, consequentemente, não haveria a bala perdida.

Nas palavras do Min. Relator Edson Fachin:

“(...) a operação dos militares do Exército desencadeou a troca de tiros. Se a incursão da Força de Pacificação do Exército não tivesse ocorrido, não haveria troca de tiros e, por conseguinte, João (nome fictício) não teria sido assassinado. Assim sendo, independe saber se o projétil proveio da arma dos militares do Exército ou dos confrontados, haja vista que os integrantes da Força de Pacificação do Exército assumiram o risco (dano colateral) ao proceder uma operação em local habitado.

Nesse sentido, o fato gerador do dano não é o projétil em si, mas sim a operação da Força de Pacificação do Exército. Daí porque, para configurar o nexo de causalidade, não é necessário saber se o projétil proveio da arma dos militares do Exército ou dos confrontados, mas sim se houve operação da Força de Pacificação do Exército no momento e no local em que a vítima foi atingida por disparo de arma de fogo.”

 

O Estado, quando vai realizar operações policiais ou de pacificação do Exército em locais habitados, possui o dever específico de adotar as cautelas necessárias para preservar a vida e a integridade física dos moradores da região impactada. Se ele descumpre esse cuidado e ocorrem danos colaterais, possui o dever de indenizar as vítimas.

Assim, os militares da Força de Pacificação, ao realizar operação em zona habitada e, a partir dela, desencadear intensa troca de tiros com os confrontados, descumpriu com o seu dever de diligência, a ensejar a responsabilidade objetiva do Estado, nos termos do art. 37, § 6º, da CF/88.

 

O Poder Público (no caso, a União) poderia se isentar do dever de indenizar provando uma causa excludente de responsabilidade?

SIM.

Se a vítima morre durante uma operação das forças estatais na favela, existe uma presunção de nexo de causalidade em desfavor do poder público. Vale ressaltar, contudo, que o Estado pode comprovar força maior, caso fortuito, fato exclusivo da vítima ou de terceiro para se eximir da responsabilidade civil.

Nesse sentido: STF. 2ª Turma. ARE 1.382.159, Rel. Min. Nunes Marques, Redator para acórdão Min. Gilmar Mendes, julgado em 28/03/2023.

 

No caso em tela, não é factível a exclusão da responsabilidade estatal por força maior ou caso fortuito. Isso porque, além de previsíveis os riscos da operação militar em local habitado, era possível, pelo planejamento da ação da Força de Pacificação do Exército, evitar o desencadeamento do intenso tiroteio no Complexo da Maré.

Para além disso, a União não comprovou a ocorrência de fato exclusivo de terceiro, isto é, que pessoa sem ligação com a operação militar tenha causado o dano à vítima.

Ademais, não é possível excluir a responsabilidade estatal por fato exclusivo da vítima, dado que essa foi atingida por projétil enquanto estava em casa.

 

Em suma:

Em operações de segurança pública, à luz da teoria do risco administrativo, será objetiva a responsabilidade civil do Estado quando não for possível afastá-la pelo conjunto probatório, recaindo sobre ele o ônus de comprovar possíveis causas de exclusão.

STF. Plenário. ARE 1.385.315/RJ, Rel. Min. Edson Fachin, julgado em 11/04/2024 (Repercussão Geral tema 1.237) (Info 1132).

 

Teses fixadas pelo STF:

(i) O Estado é responsável, na esfera cível, por morte ou ferimento decorrente de operações de segurança pública, nos termos da Teoria do Risco Administrativo;

(ii) É ônus probatório do ente federativo demonstrar eventuais excludentes de responsabilidade civil;

(iii) A perícia inconclusiva sobre a origem de disparo fatal durante operações policiais e militares não é suficiente, por si só, para afastar a responsabilidade civil do Estado, por constituir elemento indiciário.

STF. Plenário. ARE 1.385.315/RJ, Rel. Min. Edson Fachin, julgado em 11/04/2024 (Repercussão Geral - Tema 1237) (Info 1132).


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