quarta-feira, 8 de maio de 2024
Se o suspeito é colocado ao lado de outras duas pessoas com características físicas bem distintas, esse reconhecimento não deve ser considerado válido por violar o art. 226, II, do CPP
O que é o reconhecimento de
pessoas e coisas?
É um meio de prova, previsto nos
arts. 226 a 288 do CPP.
Um indivíduo conhece ou viu
determinada pessoa ou coisa que supostamente está relacionado com um crime que
está sendo apurado.
Esse indivíduo é chamado pelos
órgãos de persecução penal para dizer se a pessoa ou coisa que lhe será
mostrada realmente é aquela que ele conhece ou que viu.
Ex: uma testemunha viu a pessoa
que matou a vítima e depois fugiu. Tempos depois, a polícia prende um homem
suspeito de ser o autor do crime. Esse suspeito será mostrado à testemunha para
que ela diga se ele é, ou não, o indivíduo que viu no momento do crime.
Formalidades
O art. 226 do CPP descreve um
procedimento para a realização do reconhecimento de pessoas e coisas:
1ª etapa: o indivíduo que
tiver de fazer o reconhecimento será convidado a descrever a pessoa que deva
ser reconhecida. Ex: a pessoa tem aproximadamente 1,80m, pele branca, cabelo
preto, uma cicatriz no rosto etc.
2ª etapa: a pessoa, cujo
reconhecimento se pretender, será colocada, se possível, ao lado de outras que
com ela tiverem qualquer semelhança. Essas pessoas que são colocadas ao lado do
suspeito são chamadas de filler. Em seguida, pede-se para o indivíduo
que fará o reconhecimento apontar qual é daquelas pessoas que estão lado a
lado.
Algumas vezes, o fato de o
indivíduo estar face a face com a pessoa a ser reconhecida pode gerar
intimidação ou outra influência negativa que lhe impeça de dizer a verdade. Por
isso, a lei permite que a pessoa a ser reconhecida não veja o indivíduo que fará
o reconhecimento. Isso é feito, por exemplo, por meio de “vidros espelhados”
nos quais somente um dos lados enxerga o outro. Obs: vale ressaltar essa
cautela só pode ser feita na fase de investigação pré-processual. Na fase da
instrução criminal ou em plenário de julgamento a pessoa a ser reconhecida terá
direito de também ver o indivíduo que está lhe reconhecendo, sendo esse ato
feito ainda na presença do juiz, do Ministério Público e da defesa.
3ª etapa: será lavrado um
auto pormenorizado narrando o que ocorreu no ato de reconhecimento. Esse auto
deverá ser subscrito pela autoridade, pelo indivíduo que foi chamado para fazer
o reconhecimento e por duas testemunhas presenciais.
Obs: no caso de reconhecimento de
objeto também deverão ser observadas, no que couber, as cautelas previstas para
o reconhecimento pessoal (art. 227).
Obs2: se várias forem as pessoas
chamadas a efetuar o reconhecimento de pessoa ou de objeto, cada uma fará a
prova em separado, evitando-se qualquer comunicação entre elas (art. 228).
Como vimos acima, o art. 226 do
CPP estabelece formalidades para o reconhecimento de pessoas (reconhecimento
pessoal). O descumprimento dessas formalidades enseja a nulidade do
reconhecimento?
SIM. A partir do entendimento
firmado no HC 598.886-SC, o STJ passou a entender que:
1) O reconhecimento de pessoas deve observar o procedimento
previsto no art. 226 do Código de Processo Penal, cujas formalidades constituem
garantia mínima para quem se encontra na condição de suspeito da prática de um
crime;
2) À vista dos efeitos e dos riscos de um reconhecimento falho,
a inobservância do procedimento descrito na referida norma processual torna
inválido o reconhecimento da pessoa suspeita e não poderá servir de lastro a
eventual condenação, mesmo se confirmado o reconhecimento em juízo;
3) Pode o magistrado realizar, em juízo, o ato de reconhecimento
formal, desde que observado o devido procedimento probatório, bem como pode ele
se convencer da autoria delitiva a partir do exame de outras provas que não
guardem relação de causa e efeito com o ato viciado de reconhecimento;
4) O reconhecimento do suspeito por simples exibição de
fotografia(s) ao reconhecedor, a par de dever seguir o mesmo procedimento do
reconhecimento pessoal, há de ser visto como etapa antecedente a eventual
reconhecimento pessoal e, portanto, não pode servir como prova em ação penal,
ainda que confirmado em juízo.
STJ. 6ª Turma.
HC 598.886-SC, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, julgado em 27/10/2020
(Info 684).
Imagine agora a seguinte
situação hipotética:
João foi condenado pela prática
de roubo e estupro de vulnerável.
A condenação se baseou primordialmente
no depoimento da vítima (Carla) que, na época dos fatos, tinha apenas 9 anos.
Carla, durante o inquérito,
identificou João em um procedimento de reconhecimento pessoal. Vale ressaltar,
contudo, que João foi colocado, dentro de um veículo, ao lado de outros dois
homens que tinham características físicas bem diferentes dele. João era o único
negro, sendo os dois outros brancos.
A condenação transitou em
julgado.
Audiência de justificação
Anos mais tarde, Carla comentou
que, agora, refletindo melhor, não tem certeza se foi João o autor do crime.
A família de João soube disso e
contratou um advogado que pediu ao Poder Judiciário uma audiência de
justificação para ouvir novamente Carla.
Assim, Carla, agora com 22 anos, na
audiência de justificação criminal, retratou-se de seu depoimento dado no
passado e declarou não poder afirmar com certeza que João foi o autor dos
crimes. Ela relatou não ter visto o rosto do agressor no dia dos fatos e que,
dentre os suspeitos apresentados para reconhecimento pessoal em um veículo
policial, apenas João era de pele negra.
O condenado ingressou com revisão criminal pedindo a
desconstituição da condenação transitada em julgado. Invocou como fundamento a
retratação da vítima, o que configuraria nova prova, nos termos do art. 621,
III, do CPP:
Art. 621. A revisão dos processos findos será admitida:
(...)
III - quando, após a sentença, se
descobrirem novas provas de inocência do condenado ou de circunstância que
determine ou autorize diminuição especial da pena.
Além disso, João argumentou que o procedimento de
reconhecimento pessoal efetuado durante o inquérito policial não foi válido em
razão de ter descumprido o inciso II do art. 226 do CPP, pois as pessoas
colocadas ao lado de João não tinham semelhança física com ele, o que poderia
ter influenciado a decisão de Carla na época:
Art. 226. Quando houver necessidade de
fazer-se o reconhecimento de pessoa, proceder-se-á pela seguinte forma:
(...)
Il - a pessoa, cujo reconhecimento se
pretender, será colocada, se possível, ao lado de outras que com ela tiverem
qualquer semelhança, convidando-se quem tiver de fazer o reconhecimento a
apontá-la;
O STJ julgou procedente o
pedido formulado na revisão criminal?
SIM.
O STJ deu provimento ao recurso
especial, a fim de admitir a declaração da vítima como prova nova, conforme
estabelece o art. 621, III, do CPP.
Em seguida, o STJ determinou a
anulação do auto de declaração de reconhecimento do acusado, por estar em
desacordo com o art. 226, II, do CPP, e julgou procedente o pedido da inicial
da ação de revisão criminal para absolver o recorrente, fundamentando-se no
art. 386, V e VII, do CPP c/c art. 626, ambos do CPP.
É viável se acolher a
retratação da vítima como nova prova (art. 621, III, do CPP) e a alegação de
invalidade do procedimento de reconhecimento pessoal efetuado durante o
inquérito policial?
SIM.
Conforme vimos acima, no caso
concreto, durante a audiência de justificação, a vítima, que tinha 9 anos na
época dos fatos e 22 anos na audiência de justificação criminal, declarou não
poder afirmar com certeza que o imputado foi o autor dos crimes de roubo e
estupro de vulnerável.
Ela relatou não ter visto o rosto
do agressor no dia dos fatos e que, dentre os suspeitos apresentados para
reconhecimento pessoal em um veículo policial, apenas João tinha a pele negra.
O art. 621, III, do CPP, autoriza
a revisão criminal ante o surgimento de provas novas de inocência posteriores à
condenação. Esse preceito legal reforça a essencialidade de se buscar a justiça
e a equidade no âmbito processual penal, garantindo a revisibilidade das
condenações diante da emergência de elementos probatórios novos que corroborem
a inocência do réu.
O ônus da prova da inocência
jamais deve ser atribuído ao réu. Ao contrário, qualquer incerteza quanto à sua
culpabilidade deve operar em seu favor, evidenciando uma manifestação prática
do princípio do in dubio pro reo e reiterando o conceito de que é
preferível absolver um culpado a condenar um inocente.
A revisão criminal, conforme
delineada pela jurisprudência do STJ, não se presta à reanálise de provas
previamente examinadas nas instâncias inferiores, distanciando-se, portanto, da
natureza de uma segunda apelação. Seu propósito essencial é assegurar ao
condenado a correção de possíveis erros judiciários, exigindo para tanto a
comprovação dos requisitos estabelecidos pelo art. 621 do CPP.
Vale ressaltar que a descoberta
de novas provas de inocência, conforme estabelecido no art. 621, III, do CPP,
necessita de comprovação por meio de justificação criminal.
Portanto, a retratação dos
ofendidos ou a aparição de novos elementos probatórios que contestem as
fundações da condenação original são cruciais para o reexame da causa, podendo
resultar na absolvição do acusado caso as novas provas sejam suficientemente
robustas para instaurar uma dúvida razoável quanto à sua culpabilidade.
O STJ reconhece que, nos delitos
sexuais, a retratação da vítima, realizada em uma ação de justificação, não
implica automaticamente a absolvição do acusado. Relevante é o contexto em que
o novo depoimento da vítima se mostra incongruente com o conjunto das demais
provas apresentadas nos autos.
No contexto apresentado, a
informante, durante a audiência de justificação criminal, manifestou incerteza
em afirmar a responsabilidade do imputado pelos delitos de roubo e estupro de
vulnerável. Ela indicou a não visualização do rosto do ofensor no momento dos
fatos. Adicionalmente, destacou que, dentre os indivíduos apresentados para
reconhecimento em um veículo policial, o recorrente era o único com pele
escura.
Essa declaração recente da
testemunha coloca em xeque a fundamentação da sentença, a qual foi confirmada
pelo Tribunal de origem, que se baseou unicamente em seu testemunho anterior,
sugerindo a revisão da condenação com base no art. 621, III, do CPP, por
introduzir dúvidas significativas sobre a consistência das provas que
sustentaram a decisão judicial.
Em delitos sexuais, a retratação da vítima autoriza a
revisão criminal para absolvição do réu, quando o conjunto probatório se limita
à sua declaração e a testemunhos, sem outras provas materiais.
STJ. 5ª
Turma. AREsp 2.408.401-PA, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 2/4/2024 (Info
806).
O procedimento de
reconhecimento de pessoas, para sua validade, deve assegurar a semelhança
física entre o suspeito e os demais indivíduos apresentados
No caso concreto, o
reconhecimento do réu foi ilegal. Os indivíduos apresentados para o ato não
podiam ser identificados de forma precisa. Isso se deve ao fato de terem
participado do procedimento com os rostos cobertos, além de possuírem
características físicas notadamente diferentes das atribuídas ao acusado,
considerando-se que, entre as três pessoas trazidas para o reconhecimento, duas
eram de pele branca e uma de pele preta.
Atualmente, o STJ possui uma
jurisprudência firme que atribui especial importância à palavra da vítima em
delitos de natureza sexual, especialmente quando esta se encontra em
consonância com as demais evidências apresentadas ao processo. Essa orientação
sublinha o reconhecimento da relevância da declaração da vítima, considerando-a
elemento de prova crucial, desde que corroborado por outros indícios ou provas
coligidas (demais provas), reforçando assim a busca por uma justiça equitativa
e baseada na totalidade das provas disponíveis.
A palavra da vítima para
comprovação da autoria dos crimes sexuais é dilema que entra em confronto com a
problemática das falsas memórias, particularmente nos contextos de
reconhecimento de suspeitos por vítimas de crimes, apresenta um desafio notável
para o sistema de justiça penal. A facilidade com que se esquece a origem de
uma informação pode conduzir a equívocos na identificação, em que um indivíduo
previamente visto é incorretamente identificado como o autor do delito. Esse
cenário ressalta a necessidade de um processo de identificação rigoroso e
sensível, minimizando o risco de injustiças derivadas de reconhecimentos
imprecisos.
A doutrina adverte que a obtenção
de depoimentos precisos de crianças em situações de abuso sexual constitui um
desafio complexo, exigindo métodos de entrevista meticulosos. A utilização de
perguntas direcionadas, embora aumente a precisão na coleta de informações,
pode inadvertidamente ampliar o risco de gerar falsos positivos, desafiando o
sistema jurídico na avaliação de evidências e asseguração de julgamentos
equitativos. Este dilema enfatiza a importância de balancear a eficácia na
coleta de depoimentos com a necessidade de prevenir a contaminação da memória,
especialmente em casos delicados envolvendo menores vítimas de abuso sexual
(PISA, Osnilda; STEIN, Lilian Milnitsky. Abuso sexual infantil e a palavra da
criança vítima: pesquisa científica e a intervenção legal. Revista dos
Tribunais, São Paulo, v. 96, n. 857, p. 456-477, mar. 2007).
O art. 226 do CPP visa mitigar as
potenciais falhas inerentes à confiabilidade das memórias no curso do
reconhecimento de pessoas, estabelecendo um procedimento minucioso, voltado
para o incremento da justiça e acurácia nas práticas de identificação. Por meio
de uma abordagem que antevê as limitações e falhas possíveis da memória humana,
o artigo se propõe a construir um arcabouço que solidifique as bases para um
reconhecimento justo e inequívoco.
Inicialmente, o dispositivo
sublinha a importância de uma descrição prévia e detalhada da pessoa a ser
reconhecida, fornecida pela testemunha, antes de qualquer exposição visual
direta. Este passo inicial, fundamentado na premissa de estabelecer um reconhecimento
enraizado em memórias pré-existentes, com o objetivo de essencialmente reduzir
a margem para influências sugestivas ou pressões externas que possam deturpar o
ato de reconhecimento.
Prosseguindo, o referido artigo
adota medidas para prevenir sugestões indiretas, colocando o indivíduo a ser
reconhecido ao lado de outras pessoas com características físicas similares, na
medida do possível. Este procedimento é meticulosamente desenhado para
minimizar o risco de identificações equivocadas, dispersando a atenção da
testemunha entre vários sujeitos e fomentando uma escolha mais deliberada e
fundamentada em memórias específicas. Ademais, são estabelecidas salvaguardas
para que a testemunha realize o reconhecimento sem ser vista pela pessoa em
questão, preservando assim a pureza do testemunho.
Recentemente, no julgamento do HC
598.886/SC, a interpretação do STJ sobre tema foi revista pela Sexta Turma, no
sentido de que se determine, doravante, a invalidade de qualquer reconhecimento
formal - pessoal ou fotográfico - que não siga estritamente o que determina o
art. 226 do CPP, sob pena de continuar-se a gerar uma instabilidade e
insegurança de sentenças judiciais que, sob o pretexto de que outras provas
produzidas em apoio a tal ato - todas, porém, derivadas de um reconhecimento
desconforme ao modelo normativo - autorizariam a condenação, potencializando,
assim, o concreto risco de graves erros judiciários (STJ. 6ª Turma. HC
598.886-SC, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, julgado em 27/10/2020. Info 684).
Colocar pessoas brancas e uma
negra para o reconhecimento, sendo que o suspeito é negro, viola esse
dispositivo legal, pois tal arranjo não atende ao requisito de semelhança entre
os indivíduos colocados para o reconhecimento. A lógica por trás dessa exigência
é reduzir ao máximo o viés e a possibilidade de erro por parte da testemunha,
garantindo que o reconhecimento seja baseado em características específicas do
suspeito, e não em preconceitos ou influências externas direcionadas para
indicar o acusado como o autor dos crimes perpetrados.
Nesse cenário, a composição
descrita leva a uma sugestão implícita, em que a presença de uma minoria de
indivíduos que compartilham características físicas com o suspeito (neste caso,
a cor da pele) induz a testemunha a selecionar o suspeito baseado na distinção
mais óbvia entre os participantes, em vez de uma identificação cuidadosa e
detalhada. Isso compromete a justiça e a precisão do processo de
reconhecimento, indo contra o espírito do art. 226, II, do CPP, que busca
assegurar condições equitativas e evitar qualquer forma de indução no
reconhecimento.
Portanto, para estar em
conformidade com o CPP e assegurar a integridade do processo de reconhecimento,
é fundamental que todos os indivíduos envolvidos no procedimento de
reconhecimento tenham semelhanças significativas com o suspeito, incluindo, mas
não se limitando a características físicas como a cor da pele.
O procedimento de reconhecimento de pessoas, para sua
validade, deve assegurar a semelhança física entre o suspeito e os demais
indivíduos apresentados, conforme estabelece o art. 226, II, do CPP,
evitando-se sugestões que possam influenciar a decisão da testemunha e
comprometer o reconhecimento.
STJ. 5ª
Turma. AREsp 2.408.401-PA, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 2/4/2024 (Info
806).