O caso concreto, com adaptações,
foi o seguinte:
Regina é freira e foi renovar sua
Carteira Nacional de Habilitação.
Como é do conhecimento geral, as
freiras usam uma vestimenta chamada de “hábito religioso”. Essa roupa inclui um
véu, que cobre a cabeça da freira.
Regina pediu para tirar a foto de
sua CNH usando seu hábito religioso, incluindo o véu.
Contudo, os servidores do DETRAN afirmaram que isso não
seria permitido porque existia uma Resolução do CONTRAN proibindo, nos
seguintes termos:
RESOLUÇÃO CONTRAN Nº 886, DE 13 DE
DEZEMBRO DE 2021
Regulamenta as especificações, a
produção e a expedição da Carteira Nacional de Habilitação (CNH).
ANEXO III
1. FOTOGRAFIA: a mais recente possível,
que garanta o perfeito reconhecimento fisionômico do candidato ou condutor,
impressa no documento, por processo eletrônico, obtida do original aposta no
formulário RENACH ou através de outro mecanismo de captura eletrônica de
imagem. A fotografia deverá atender às seguintes características:
(...)
e) O candidato ou condutor não poderá
estar utilizando óculos, bonés, gorros, chapéus ou qualquer outro item de
vestuário/acessório que cubra parte do rosto ou da cabeça; (obs: redação
vigente à época dos fatos; atualmente, a redação é outra).
A freira levou esse fato ao
conhecimento do Ministério Público Federal, que ajuizou ação civil pública contra
a União e o Departamento de Trânsito do Estado do Paraná (Detran/PR) alegando
que essa proibição não era razoável e violava a liberdade religiosa.
Com a ação, o MPF buscou
assegurar que as religiosas pudessem renovar a CNH tirando a foto com o véu.
A Justiça Federal, em primeira
instância, julgou o pedido procedente, sentença mantida pelo Tribunal Regional
Federal da 4ª Região.
A União interpôs recurso
extraordinário argumentando que, caso se permitisse o uso de vestimenta
religiosa em fotografia para documento oficial, as pessoas religiosas estariam
sendo dispensadas de cumprir uma obrigação imposta a todos.
O STF manteve o acórdão do
TRF4? Foi autorizado que a freira tirasse a foto com seu hábito religioso?
SIM.
A liberdade religiosa, prevista no art. 5º, VI, da
Constituição, é essencial para a dignidade humana. Ela garante aos cidadãos o
direito de viver de acordo com a sua crença, inclusive com o uso de roupas e acessórios
que representem sua fé:
Art. 5º (...)
VI - é inviolável a liberdade de
consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos
religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a
suas liturgias;
A restrição ao uso dessas
vestimentas ou acessórios sacrifica excessivamente a liberdade religiosa, com
elevado custo para esse direito individual e com benefício de relevância pouco
significativa em matéria de segurança pública, de modo que não há razoabilidade
na medida, por ausência de proporcionalidade em sentido estrito.
Ainda que a exigência fosse
adequada para garantir a segurança pública, “é inequívoco que ela é exagerada e
desnecessária por ser claramente excessiva”. A medida compromete a liberdade
religiosa porque é sempre possível identificar a fisionomia de uma pessoa mesmo
que esteja, por motivo religioso, com a cabeça coberta. A liberdade religiosa é
um direito fundamental, e para restringi-lo é necessário observar o princípio
da proporcionalidade.
Nesse contexto, é necessário
alcançar uma ponderação de valores entre o interesse estatal de garantir a
segurança para a coletividade e o direito individual de exercer a sua liberdade
religiosa.
O STF aplicou o conceito de
adequação razoável, que possibilita realizar adaptações necessárias a fim de
assegurar igualdade de oportunidades a todas as pessoas, com base nos direitos
humanos e em liberdades fundamentais. Geralmente utilizado na proteção das pessoas
com deficiência, esse conceito tem sido estendido pelo STF para a proteção de
outros direitos fundamentais como a liberdade religiosa.
Se o acessório religioso não
cobrir o rosto nem impedir a plena identificação da pessoa, não existe razão
para vedar o seu uso em fotografias de documentos oficiais, considerando que,
neste caso, será possível a adequada visualização das características pessoais.
A questão chegou ao STF. O que
decidiu a Corte?
Desde que
viável a adequada identificação individual, é assegurada, nas fotografias de
documentos oficiais, a utilização de vestimentas ou acessórios que representem
manifestação da fé, à luz do direito à liberdade de crença e religião (art. 5º,
VI, CF/88) e com amparo no princípio da proporcionalidade, de modo a
excepcionar uma obrigação a todos imposta mediante adaptações razoáveis.
STF.
Plenário. RE 859.376/PR, Rel. Min. Luís Roberto Barroso, julgado em 17/04/2024
(Repercussão Geral – Tema 953) (Info 1133).
Com base nesses e em outros
entendimentos, o Plenário, por unanimidade, ao apreciar o Tema 953 da
repercussão geral, negou provimento ao recurso extraordinário e fixou a tese
anteriormente citada.
DOD Plus –
resolução do CONTRAN foi alterada
Depois dos fatos acima narrados, a Resolução do CONTRAN foi
modificada e atualmente é possível que se tire a fotografia da CNH com itens de
vestuário relacionados à crença ou religião. Veja a atual redação do
dispositivo:
RESOLUÇÃO CONTRAN Nº 886, DE 13 DE
DEZEMBRO DE 2021
Regulamenta as especificações, a
produção e a expedição da Carteira Nacional de Habilitação (CNH).
ANEXO III
1. FOTOGRAFIA: a mais recente possível,
que garanta o perfeito reconhecimento fisionômico do candidato ou condutor,
impressa no documento, por processo eletrônico, obtida do original aposta no
formulário RENACH ou através de outro mecanismo de captura eletrônica de
imagem. A fotografia deverá atender às seguintes características:
(...)
e) O candidato ou condutor não poderá
utilizar óculos, bonés, gorros, chapéus ou qualquer outro item de
vestuário/acessório que cubra parte do rosto ou da cabeça, excetuados os itens
de vestuário relacionados à crença ou religião (véus, hábitos, etc) e à queda
de cabelo em decorrência de patologias ou tratamento médico, desde que a face,
a testa e o queixo estejam perfeitamente visíveis. (Redação dada pela Resolução
CONTRAN Nº 1006 DE 03/04/2024).