Dizer o Direito

sexta-feira, 17 de maio de 2024

É constitucional a utilização de vestimentas ou acessórios relacionados a crença ou religião nas fotos de documentos oficiais, desde que não impeçam a adequada identificação individual, com rosto visível

O caso concreto, com adaptações, foi o seguinte:

Regina é freira e foi renovar sua Carteira Nacional de Habilitação.

Como é do conhecimento geral, as freiras usam uma vestimenta chamada de “hábito religioso”. Essa roupa inclui um véu, que cobre a cabeça da freira.

Regina pediu para tirar a foto de sua CNH usando seu hábito religioso, incluindo o véu.

Contudo, os servidores do DETRAN afirmaram que isso não seria permitido porque existia uma Resolução do CONTRAN proibindo, nos seguintes termos:

RESOLUÇÃO CONTRAN Nº 886, DE 13 DE DEZEMBRO DE 2021

Regulamenta as especificações, a produção e a expedição da Carteira Nacional de Habilitação (CNH).

ANEXO III

1. FOTOGRAFIA: a mais recente possível, que garanta o perfeito reconhecimento fisionômico do candidato ou condutor, impressa no documento, por processo eletrônico, obtida do original aposta no formulário RENACH ou através de outro mecanismo de captura eletrônica de imagem. A fotografia deverá atender às seguintes características:

(...)

e) O candidato ou condutor não poderá estar utilizando óculos, bonés, gorros, chapéus ou qualquer outro item de vestuário/acessório que cubra parte do rosto ou da cabeça; (obs: redação vigente à época dos fatos; atualmente, a redação é outra).

 

A freira levou esse fato ao conhecimento do Ministério Público Federal, que ajuizou ação civil pública contra a União e o Departamento de Trânsito do Estado do Paraná (Detran/PR) alegando que essa proibição não era razoável e violava a liberdade religiosa.

Com a ação, o MPF buscou assegurar que as religiosas pudessem renovar a CNH tirando a foto com o véu.

A Justiça Federal, em primeira instância, julgou o pedido procedente, sentença mantida pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região.

A União interpôs recurso extraordinário argumentando que, caso se permitisse o uso de vestimenta religiosa em fotografia para documento oficial, as pessoas religiosas estariam sendo dispensadas de cumprir uma obrigação imposta a todos.

 

O STF manteve o acórdão do TRF4? Foi autorizado que a freira tirasse a foto com seu hábito religioso?

SIM.

A liberdade religiosa, prevista no art. 5º, VI, da Constituição, é essencial para a dignidade humana. Ela garante aos cidadãos o direito de viver de acordo com a sua crença, inclusive com o uso de roupas e acessórios que representem sua fé:

Art. 5º (...)

VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;

 

A restrição ao uso dessas vestimentas ou acessórios sacrifica excessivamente a liberdade religiosa, com elevado custo para esse direito individual e com benefício de relevância pouco significativa em matéria de segurança pública, de modo que não há razoabilidade na medida, por ausência de proporcionalidade em sentido estrito.

Ainda que a exigência fosse adequada para garantir a segurança pública, “é inequívoco que ela é exagerada e desnecessária por ser claramente excessiva”. A medida compromete a liberdade religiosa porque é sempre possível identificar a fisionomia de uma pessoa mesmo que esteja, por motivo religioso, com a cabeça coberta. A liberdade religiosa é um direito fundamental, e para restringi-lo é necessário observar o princípio da proporcionalidade.

Nesse contexto, é necessário alcançar uma ponderação de valores entre o interesse estatal de garantir a segurança para a coletividade e o direito individual de exercer a sua liberdade religiosa.

O STF aplicou o conceito de adequação razoável, que possibilita realizar adaptações necessárias a fim de assegurar igualdade de oportunidades a todas as pessoas, com base nos direitos humanos e em liberdades fundamentais. Geralmente utilizado na proteção das pessoas com deficiência, esse conceito tem sido estendido pelo STF para a proteção de outros direitos fundamentais como a liberdade religiosa.

Se o acessório religioso não cobrir o rosto nem impedir a plena identificação da pessoa, não existe razão para vedar o seu uso em fotografias de documentos oficiais, considerando que, neste caso, será possível a adequada visualização das características pessoais.

 

A questão chegou ao STF. O que decidiu a Corte?

Desde que viável a adequada identificação individual, é assegurada, nas fotografias de documentos oficiais, a utilização de vestimentas ou acessórios que representem manifestação da fé, à luz do direito à liberdade de crença e religião (art. 5º, VI, CF/88) e com amparo no princípio da proporcionalidade, de modo a excepcionar uma obrigação a todos imposta mediante adaptações razoáveis.

STF. Plenário. RE 859.376/PR, Rel. Min. Luís Roberto Barroso, julgado em 17/04/2024 (Repercussão Geral – Tema 953) (Info 1133).

 

Com base nesses e em outros entendimentos, o Plenário, por unanimidade, ao apreciar o Tema 953 da repercussão geral, negou provimento ao recurso extraordinário e fixou a tese anteriormente citada.

 

DOD Plus – resolução do CONTRAN foi alterada

Depois dos fatos acima narrados, a Resolução do CONTRAN foi modificada e atualmente é possível que se tire a fotografia da CNH com itens de vestuário relacionados à crença ou religião. Veja a atual redação do dispositivo:

RESOLUÇÃO CONTRAN Nº 886, DE 13 DE DEZEMBRO DE 2021

Regulamenta as especificações, a produção e a expedição da Carteira Nacional de Habilitação (CNH).

ANEXO III

1. FOTOGRAFIA: a mais recente possível, que garanta o perfeito reconhecimento fisionômico do candidato ou condutor, impressa no documento, por processo eletrônico, obtida do original aposta no formulário RENACH ou através de outro mecanismo de captura eletrônica de imagem. A fotografia deverá atender às seguintes características:

(...)

e) O candidato ou condutor não poderá utilizar óculos, bonés, gorros, chapéus ou qualquer outro item de vestuário/acessório que cubra parte do rosto ou da cabeça, excetuados os itens de vestuário relacionados à crença ou religião (véus, hábitos, etc) e à queda de cabelo em decorrência de patologias ou tratamento médico, desde que a face, a testa e o queixo estejam perfeitamente visíveis. (Redação dada pela Resolução CONTRAN Nº 1006 DE 03/04/2024).


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