Dizer o Direito

sábado, 11 de maio de 2024

As Forças Armadas não possuem autorização constitucional para exercer a função de poder moderador

O caso concreto foi o seguinte:

Em 10 de junho de 2020, o Partido Democrático Trabalhista (PDT) ajuizou ADI pedindo que o STF proferisse decisão delimitando o alcance do art. 142 da Constituição Federal que trata sobre as Forças Armadas:

Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.

§ 1º Lei complementar estabelecerá as normas gerais a serem adotadas na organização, no preparo e no emprego das Forças Armadas.

(...)

 

O Partido pediu que o STF deixasse claro que o emprego das Forças Armadas se limita aos casos e procedimentos previstos nos arts. 34, 136 e 137 da Constituição Federal (intervenção, estado de defesa e estado de sítio).

Segundo a legenda, essa decisão do STF explicitando isso é uma providência necessária para impedir que as Forças Armadas sejam usadas indevidamente.

O PDT afirmou que juristas de viés “reacionário” e “setores da caserna” têm proposto uma interpretação distorcida do art. 142 da Constituição no sentido de que caberia às Forças Armadas moderar conflitos entre os Poderes da República. Isso, segundo o partido, tem gerado “inquietações públicas”, especialmente no “atual cenário de conflagração social, política e jurídica”.

A Lei Complementar federal nº 97/99, que dispõe sobre as Forças Armadas, prevê, em seu art. 1º:

Art. 1º As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.

 

O art. 15 da mesma Lei preconiza:

Art. 15. O emprego das Forças Armadas na defesa da Pátria e na garantia dos poderes constitucionais, da lei e da ordem, e na participação em operações de paz, é de responsabilidade do Presidente da República, que determinará ao Ministro de Estado da Defesa a ativação de órgãos operacionais, observada a seguinte forma de subordinação:

(…)

§ 1º Compete ao Presidente da República a decisão do emprego das Forças Armadas, por iniciativa própria ou em atendimento a pedido manifestado por quaisquer dos poderes constitucionais, por intermédio dos Presidentes do Supremo Tribunal Federal, do Senado Federal ou da Câmara dos Deputados.

§ 2º A atuação das Forças Armadas, na garantia da lei e da ordem, por iniciativa de quaisquer dos poderes constitucionais, ocorrerá de acordo com as diretrizes baixadas em ato do Presidente da República, após esgotados os instrumentos destinados à preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, relacionados no art. 144 da Constituição Federal.

§ 3º Consideram-se esgotados os instrumentos relacionados no art. 144 da Constituição Federal, quando, em determinado momento, forem eles formalmente reconhecidos pelo respectivo Chefe do Poder Executivo Federal ou Estadual como indisponíveis, inexistentes ou insuficientes ao desempenho regular de sua missão constitucional.

 

O partido argumentou que deve ser dada interpretação conforme a Constituição Federal à expressão “sob autoridade suprema do Presidente da República”, constante do art. 1º, caput, da Lei Complementar nº 97/99, de forma a assentar que referida autoridade é circunscrita às competências constitucionais do Chefe do Poder Executivo federal, quais sejam: exercer sua direção superior; expedir decretos e regulamentos; dispor sobre sua organização e funcionamento; extinguir funções ou cargos ou provê-los; e nomear seus comandantes, promover seus oficiais-generais e nomeá-los para cargos privativos.

 

O que decidiu o STF?

O STF julgou parcialmente procedente o pedido para conferir interpretação conforme aos arts. 1º, caput, e 15, caput e §§ 1º, 2º e 3º, ambos da Lei Complementar nº 97/99 a fim de fixar as seguintes conclusões:

1) A missão institucional das Forças Armadas na defesa da Pátria, na garantia dos poderes constitucionais e na garantia da lei e da ordem não acomoda o exercício de poder moderador entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário;

2) A chefia das Forças Armadas é poder limitado, excluindo-se qualquer interpretação que permita sua utilização para indevidas intromissões no independente funcionamento dos outros Poderes, relacionando-se a autoridade sobre as Forças Armadas às competências materiais atribuídas pela Constituição ao Presidente da República;

3) A prerrogativa do Presidente da República de autorizar o emprego das Forças Armadas, por iniciativa própria ou em atendimento a pedido manifestado por quaisquer dos outros poderes constitucionais – por intermédio dos Presidentes do Supremo Tribunal Federal, do Senado Federal ou da Câmara dos Deputados –, não pode ser exercida contra os próprios Poderes entre si;

4) O emprego das Forças Armadas para a “garantia da lei e da ordem”, embora não se limite às hipóteses de intervenção federal, de estados de defesa e de estado sítio, presta-se ao excepcional enfrentamento de grave e concreta violação à segurança pública interna, em caráter subsidiário, após o esgotamento dos mecanismos ordinários e preferenciais de preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, mediante a atuação colaborativa das instituições estatais e sujeita ao controle permanente dos demais poderes, na forma da Constituição e da lei.

 

Vejamos um resumo dos principais argumentos.

 

Dos poderes do Presidente da República na Chefia das Forças Armadas

A controvérsia se circunscreve do alcance semântico das atribuições conferidas às Forças Armadas pelo art. 142 da Constituição Federal, cujo texto foi reproduzido literalmente no art. 1º da Lei Complementar nº 97/99. Veja a redação do dispositivo:

Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.

 

Art. 1º As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.

 

O texto constitucional de 1988 inseriu as Forças Armadas no âmbito do controle civil do Estado, como “instituições nacionais permanentes e regulares”.

Esses atributos qualificam as Forças Armadas como órgãos de Estado, e não de governo, indiferentes às disputas que normalmente se desenvolvem no processo político.

Essa perspectiva institucional reflete-se nas funções substantivas destinadas às Forças Armadas, quais sejam:

a) a defesa da Pátria;

b) a garantia dos poderes constitucionais; e

c) por iniciativa de qualquer dos três poderes, a garantia da lei e da ordem.

 

Trata-se de missão de altíssima relevância para a sustentação material do Estado Democrático de Direito, a ser realizada nos estritos termos dos procedimentos e dos limites desenhados pela CF/88.

O mesmo dispositivo também estabelece que as Forças Armadas são “organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República”.

Essa dicção se repete no art. 84, XIII, da Constituição Federal, que atribui ao Presidente da República o exercício do “comando supremo das Forças Armadas”, bem como a nomeação dos Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica.

Apesar da competência do Presidente da República de exercer o comando das Forças Armadas possuir origem monárquica, tal previsão fora mantida mesmo após o estabelecimento de regimes democráticos, justificando-se pela necessidade de atuação unitária na defesa do Estado.

Deveras, a “autoridade suprema” sobre as Forças Armadas conferida ao Presidente da República correlaciona-se às balizas de hierarquia e de disciplina que informam a conduta militar. Essa autoridade, porém, não se impõe à separação e à harmonia entre os Poderes, cujo funcionamento livre e independente fundamenta a democracia constitucional.

Deste modo, a expressão “autoridade suprema” deve ser lida nos limites das atribuições privativas do Presidente da República contidas no art. 84 da CF/88, em consonância com a tríade expressa em seu art. 142.

Outrossim, no modelo constitucional brasileiro, o Presidente da República acumula as funções de Chefe de Estado, como representante máximo do país perante a comunidade internacional, e de Chefe de Governo, como liderança doméstica para a formulação de políticas públicas e para a coordenação federativa. Dessa circunstância decorre o amplo catálogo de atribuições elencadas nesse dispositivo constitucional, que conferem ao Presidente da República poderes suficientes para a condução do Estado, das relações internacionais e da Administração Pública federal.

Portanto, descabe conceder à expressão “autoridade suprema” interpretação que exorbite o exercício circunstanciado, por parte do Presidente da República, de suas próprias responsabilidades constitucionais, sempre sob o controle e, quando cabível, sob a autorização dos demais Poderes.

Nesse ponto, a expressão “autoridade suprema”, contida no art. 1º, caput, da Lei Complementar nº 97/99, deve ser interpretada no sentido de que os poderes do Presidente da República, como Chefe das Forças Armadas, inscrevem-se nas competências privativas descritas no artigo 84 da Constituição, em especial aquelas contidas nos respectivos incisos II, IV, VI, “a” e “b”, IX, X, XIII, XIX, XX e XXII, in verbis:

Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República: (...)

II - exercer, com o auxílio dos Ministros de Estado, a direção superior da administração federal;

(...)

IV - sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução;

(...)

VI - dispor, mediante decreto, sobre

a) organização e funcionamento da administração federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos;

b) extinção de funções ou cargos públicos, quando vagos;

(...)

IX - decretar o estado de defesa e o estado de sítio;

X - decretar e executar a intervenção federal;

(...)

XIII - exercer o comando supremo das Forças Armadas, nomear os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, promover seus oficiais-generais e nomeá-los para os cargos que lhes são privativos;

(...)

XIX - declarar guerra, no caso de agressão estrangeira, autorizado pelo Congresso Nacional ou referendado por ele, quando ocorrida no intervalo das sessões legislativas, e, nas mesmas condições, decretar, total ou parcialmente, a mobilização nacional;

XX - celebrar a paz, autorizado ou com o referendo do Congresso Nacional;

(...)

XXII - permitir, nos casos previstos em lei complementar, que forças estrangeiras transitem pelo território nacional ou nele permaneçam temporariamente;

 

Ademais, a noção de supremacia exercida pelo Presidente da República remete, em verdade, a uma situação de ápice hierárquico de contexto militar, não de interpretação supra constitucional.

Sem que se reduza o espaço legítimo de discricionariedade política e administrativa do Chefe do Executivo nacional, o que se busca é reafirmar cláusula elementar do Estado Democrático de Direito: a supremacia da Constituição sobre todos os cidadãos, inclusive os agentes estatais, como mecanismo de coordenação, de estabilização e de racionalização do exercício do poder político no ambiente naturalmente competitivo de uma democracia plural.

Desse modo, a chefia das Forças Armadas consiste em poder limitado, do qual se deve excluir qualquer interpretação que permita sua utilização para indevidas intromissões no regular e independente funcionamento dos outros Poderes. Nesse contexto, a autoridade suprema do Presidente da República se relaciona apenas às atribuições materiais constitucionalmente destinadas ao chefe do Executivo nacional (art. 84, CF/88).

Além disso, a sua prerrogativa em autorizar o emprego das Forças Armadas, seja por iniciativa própria, seja a pedido de outro poder constitucional, não pode ser exercida contra os próprios Poderes entre si.

 

Missões constitucionais das Forças Armadas

Em suas razões, o Partido autor afirmou que o exercício das missões constitucionais das Forças Armadas deve se restringir aos casos e procedimentos da intervenção, do estado de defesa e do estado de sítio, motivo pelo qual requereu que seja concedida interpretação conforme a Constituição aos arts. 1º e 15, caput e §§ 2º e 3º, da Lei Complementar 97/99.

Todavia, não se identifica razão para se realizar, em sede de controle abstrato, tamanha restrição à atuação das Forças Armadas. Caso assim agisse, estaria o Supremo Tribunal Federal a realizar recorte interpretativo que a própria Constituição não pretendeu efetuar.

Por outro lado, a semântica dos arts. 1º e 15 da Lei Complementar 97/99 pode ser melhor aclarada em conformidade com a Constituição, no afã de eliminar eventuais interpretações que não possuem guarida na sistematicidade de suas normas.

À luz desses vetores interpretativos que informam a tríade de missões constitucionais das Forças Armadas e os limites do exercício do Presidente da República como sua autoridade suprema, as considerações relativas à impossibilidade de assunção das Forças Armadas do exercício do Poder Moderador não conduzem ao automático acolhimento da tese da parte autora de que o emprego das Forças Armadas para o exercício de suas missões constitucionais restringe-se às hipóteses de intervenção e de estado de defesa e de estado de sítio.

Limitar a missão constitucional das Forças Armadas a essas hipóteses implicaria esvaziar a semântica do art. 142 da Constituição Federal, impedindo a atuação desse ramo estatal em outras missões de altíssima relevância para o interesse nacional.

Em diversas oportunidades, os Presidentes da República têm empregado as Forças Armadas no exercício de suas missões constitucionais, para fins que escapam ao objeto específico da intervenção e dos estados de defesa e de sítio, sem que haja qualquer violação a normas constitucionais.

Destarte, ao se admitir a interpretação conforme na extensão requerida pela parte autora estaria o STF a invalidar todas as atuações das Forças Armadas nesse viés, o que não tem guarida em nosso modelo constitucional, tampouco pode ser objeto de criação interpretativa.

Por outro lado, importante ressaltar que o emprego das Forças Armadas fora das hipóteses de intervenção, de estado de defesa e de estado de sítio deve estar inscrito em limites constitucionais e legais que não podem ser desconsiderados.

Com efeito, a chefia das Forças Armadas assegurada ao Presidente da República consiste em poder limitado, do qual se deve desde logo excluir qualquer interpretação que permita indevidas intromissões no regular e independente funcionamento dos outros Poderes e instituições, bem como qualquer tese de submissão desses outros Poderes ao Executivo.

Reitera-se, portanto, que a autoridade suprema do Presidente da República apenas se relaciona às atribuições materiais constitucionalmente destinadas pela Constituição ao chefe do Executivo nacional no art. 84 da CF/88.

Nesse sentido, já assentados os alcances devidos quanto aos poderes de, sob a autoridade suprema do Presidente da República, defender da Pátria, garantir os poderes constitucionais e a lei e a ordem (arts. 1º e 15 da Lei Complementar 97/99), impõe-se aferir os limites constitucionais que regem também a interpretação dos parágrafos do art. 15 da mencionada Lei.

Em relação ao § 1º, o poder do Presidente da República de autorizar o emprego das Forças Armadas, por iniciativa própria ou em atendimento a pedido manifestado por quaisquer dos outros poderes constitucionais – por intermédio dos Presidentes do Supremo Tribunal Federal, do Senado Federal ou da Câmara dos Deputados –, não pode ser exercido contra os próprios Poderes e instituições em si. Ao contrário, trata-se de instrumento que permite, por exemplo, a materialização das situações de intervenção federal, cujas hipóteses autorizadoras podem partir de solicitação do Poder Legislativo ou de requisição do Supremo Tribunal Federal, conforme o caso.

O emprego das Forças Armadas para a “garantia da lei e da ordem”, embora não se restrinja às hipóteses de intervenção federal e de estados de defesa e de sítio, presta-se ao excepcional enfrentamento de grave e concreta violação à segurança pública interna, por prazo limitado.

Essa atuação apenas ocorrerá em caráter subsidiário, após o esgotamento dos mecanismos ordinários e preferenciais de preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, mediante a atuação colaborativa das instituições estatais (polícia federal; polícia rodoviária federal; polícia ferroviária federal; polícias civis; polícias militares e corpos de bombeiros militares; e polícias penais federal, estaduais e distrital), nos termos do artigo 144 da Constituição, e sujeita ao controle permanente dos demais Poderes, na forma da Constituição e da lei.

Uma vez fixado que (i) o Presidente da República, como autoridade maior das Forças Armadas, exerce o poder de supervisão administrativo orçamentária desse ramo estatal, e que (ii) o Presidente da República e os demais chefes de poder não podem empregar as Forças Armadas para o exercício de tarefas não expressamente previstas na Constituição, não há razão jurídica para reduzir-lhe a prerrogativa constitucional expressa. Afinal, como norma que preconiza a coordenação institucional, o §1º da Lei Complementar 97/99 encontra-se consentâneo ao art. 142 da Constituição.

 

Em suma:

A missão institucional das Forças Armadas na defesa da Pátria, na garantia dos poderes constitucionais e na garantia da lei e da ordem não acomoda o exercício de “poder moderador” entre os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.

STF. Plenário. ADI 6.457/DF, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 9/04/2024 (Info 1131).


Print Friendly and PDF