Dizer o Direito

quarta-feira, 15 de maio de 2024

A busca pessoal sem mandado judicial não pode ser motivada pela raça, sexo, orientação sexual, cor da pele ou aparência física da pessoa

O caso concreto, com adaptações, foi o seguinte:

Francisco foi abordado por dois policiais militares que nele fizeram uma revista pessoal, tendo encontrado 1,53g de cocaína em seu poder. Ele foi preso em flagrante delito por tráfico de drogas.

Ao ser ouvido, um dos policiais assim narrou e justificou a abordagem realizada:

“que ao passar pela rua xxx, avistou ao longe um indivíduo de cor negra que estava em cena típica de tráfico de drogas, uma vez que ele estava em pé junto o meio fio da via pública e um veículo estava parado junto a ele como se estivesse vendendo/comprando algo; que o indivíduo ao perceber a aproximação da viatura policial mudou o semblante e saiu andando sorrateiramente jogando algo no chão; que o veículo que estava parado teve marcha iniciada repentinamente e o motorista saiu do local, podendo afirmar que era um veículo de cor clara, uma vez que fixou sua atenção no indivíduo, até porque aquele local é conhecido ponto de tráfico de drogas e ainda nesta data, durante a madrugada e ainda pela manhã, houve a prisão de vários indivíduos traficando drogas naquele local; que acabou abordando o indivíduo e o reconheceu por sempre estar naquela localidade sabendo que é um participante em crimes de tráfico naquele local; que em revista pessoal acabou localizando 5 pinos de cocaína que estavam no bolso da calça de moletom, sendo que no outro bolso da mesma vestimenta estavam R$ 80,00; que pode observar que no chão próximo havia vários pinos idênticos aos encontrados com o indivíduo, só que com a queda no chão os mesmos acabaram se abrindo e vazando seu conteúdo, impossibilitando assim o recolhimento do conteúdo por ser um pó muito fino e em quantidade que é impossível a arrecadação; que em seguida conduziu o investigado até este plantão policial.”

 

O juiz condenou Francisco por tráfico de drogas, condenação mantida pelo TJ e pelo STJ.

A Defensoria Pública do Estado de São Paulo impetrou habeas corpus no STF. Alegou que o fato de Francisco ter a cor de pele negra teria sido o principal motivo para que os policiais militares decidissem revistá-lo. Afirmou que essa conduta é discriminatória e invalidou a busca pessoal e todas as provas dela derivadas.

 

Busca pessoal baseada na cor da pele

O STF aproveitou esse habeas corpus para discutir a ilicitude da busca pessoal, sem mandado, baseada unicamente por características pessoais do indivíduo, como raça, sexo, cor da pele, aparência física etc.

Vamos verificar inicialmente o que o STF definiu como tese geral e, em seguida, analisar o que a Corte decidiu no caso concreto de Francisco.

 

Requisitos da busca pessoal do art. 244 do CPP

Confira o que diz o art. 244 do CPP sobre a busca pessoal:

Art. 244.  A busca pessoal independerá de mandado, no caso de prisão ou quando houver fundada suspeita de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito, ou quando a medida for determinada no curso de busca domiciliar.

 

A partir da leitura desse dispositivo, é possível extrair três hipóteses de busca pessoal sem mandado:

a) no caso de prisão (ex: o indivíduo é preso em flagrante, o que autoriza a realização de busca pessoal);

b) quando houver fundada suspeita de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito; ou

c) quando a medida for determinada no curso de busca domiciliar.

 

Fundada suspeita

A fundada suspeita representa a justa causa necessária para a implementação da medida de natureza cautelar.

Em termos de standard probatório, a justa causa para a busca pessoal deve estar fundada em elementos objetivos e concretos.

Assim, não satisfaz a exigência legal parâmetros subjetivos ou não constatáveis de maneira clara e precisa.

Também não se pode admitir a busca pessoal com base em critérios que não tenham base legal.

Justamente por isso, não se admite busca pessoa com base na raça, cor da pele, aparência física, que não possuem base objetiva.

 

Os elementos objetivos que motivaram a busca pessoal devem ser consignados no auto de prisão

É importante também consignar que os elementos que evidenciam a justa causa para a busca pessoal devem constar no auto de prisão em flagrante ou no respectivo relatório diligência a fim de que seja feito o controle judicial posterior da medida.

Essa descrição clara e precisa da justa causa que motivou a realização da busca pessoal é necessária para que o Poder Judiciário possa analisar o ato.

 

Mesmo que os policiais encontrem algo ilícito na posse do indivíduo, se não havia fundada suspeita para a realização da busca pessoal, esse ato será inválido assim como todas as provas obtidas

O fato de a busca pessoal resultar em apreensão de objetos ilícitos ou que constituam o corpo de delito não torna a revista lícita.

O resultado da busca pessoal é irrelevante para a caracterização de sua licitude. O necessário para conferir legitimidade à busca pessoal é a existência de justa causa anteriormente à realização da medida, ainda que esta resulte infrutífera.

 

Precisa haver fundada suspeita de que a pessoa esteja com arma ou com corpo de delito

De acordo com o art. 240 do CPP, a busca pessoal pode ocorrer “quando houver fundada suspeita de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito”.

Corpo de delito é um conjunto de elementos sensíveis deixados pelo fato criminoso.

 

Em suma:

A busca pessoal, em face do constrangimento que causa, exige fundada suspeita em elementos indiciários objetivos e concretos que indiquem a sua necessidade, no sentido de a pessoa estar na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito.

A busca pessoa não pode se basear em parâmetros unicamente subjetivos.

Desse modo, confira a tese fixada:

A busca pessoal independente de mandado judicial deve estar fundada em elementos indiciários objetivos de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito, não sendo lícita a realização da medida com base na raça, sexo, orientação sexual, cor da pele ou aparência física.

STF. Plenário. HC 208.240/SP, Rel. Min. Edson Fachin, julgado em 12/4/2024 (Info 1132).

 

No caso concreto, pode-se dizer que a busca pessoal realizada pelos policiais em Francisco foi baseada unicamente na cor da pele do suspeito?

NÃO.

Na espécie, a abordagem policial não foi motivada pelo perfilamento racial, mas por outros elementos, em especial a localidade na qual o suspeito se encontrava e atitudes consideradas típicas da traficância.

Vale ressaltar, por fim, que o STF entendeu não ser possível aplicar o princípio da insignificância ao crime de tráfico de drogas.

Com base nesses e em outros entendimentos, o Plenário, por maioria, denegou a ordem e, por unanimidade, fixou a tese anteriormente citada.

Em outras palavras, o STF decidiu que o chamado perfilamento racial (condutas realizadas a partir de generalizações fundadas na raça) deve ser abolido da prática policial. Contudo, a maioria dos Ministros entendeu que o caso concreto não se enquadra nessa prática, divergindo do relator, ministro Edson Fachin, para quem não havia elementos concretos que justificassem a busca pessoal.


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