segunda-feira, 1 de abril de 2024
Para aplicar-se a Lei Maria da Penha, não se exige demonstração de hipossuficiência ou de vulnerabilidade da mulher agredida
Imagine a seguinte situação
hipotética:
Regina morava em casa com sua mãe e seu irmão Wagner.
Determinado dia, Wagner chegou embriagado em casa e passou a
agredir a irmã, desferindo socos contra as suas costas.
A mãe de Regina chamou a polícia
e Wagner foi preso em flagrante.
Concluído o inquérito policial, o Ministério Público
ofereceu denúncia em desfavor de Wagner, pela prática do crime descrito art.
129, §9º Código Penal, na forma dos arts. 5º e 7º, da Lei nº 11.340/2006:
Lesão corporal
Art. 129. Ofender a integridade
corporal ou a saúde de outrem:
Pena - detenção, de três meses a um
ano.
(...)
Violência Doméstica
§ 9º Se a lesão for praticada contra
ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou
tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas,
de coabitação ou de hospitalidade:
Pena - detenção, de 3 (três) meses a 3
(três) anos.
Conflito de competência:
vara da violência doméstica x vara criminal comum
Os autos foram distribuídos ao Juizado da Violência Doméstica da Comarca
que se declarou incompetente para processar e julgar o feito e declinou
a competência para um dos Juízos da vara criminal comum.
O magistrado da vara de violência
doméstica alegou não se tratar de caso relacionado com a Lei Maria da Penha porque,
embora a vítima fosse do sexo feminino, a violência teria sido desencadeada em
conflito familiar, entre irmãos, sem vulnerabilidade decorrente da perspectiva
de gênero.
Os autos foram redistribuídos ao Juízo da 4ª Vara Criminal que
suscitou conflito negativo de competência por entender que os fatos se amoldam sim
ao crime descrito no art. 129, §9º, do CP, na forma dos arts. 5º e 7º, ambos da
Lei nº 11.340/2006, razão pela qual a competência seria da Vara de Violência
Doméstica.
TJ entendeu que era vara
criminal comum porque não ficou provada a vulnerabilidade e a hipossuficiência
da mulher
O Tribunal de Justiça decidiu que
a competência seria da vara criminal comum, sob o fundamento de que não teria
sido constatada relação de dominação ou poder do acusado sobre a vítima, o que
afastaria, por conseguinte, a motivação de gênero na ação delituosa.
Agiu corretamente o Tribunal de Justiça?
NÃO.
Presunção de
vulnerabilidade, hipossuficiência ou fragilidade da mulher agredida
Para aplicar-se a Lei Maria da
Penha, NÃO se exige demonstração de hipossuficiência ou de vulnerabilidade da
mulher agredida.
A situação de vulnerabilidade e
fragilidade da mulher, nas circunstâncias descritas pela Lei nº 11.340/2006, se
revela ipso facto, ou seja, pelo simples fato de estar previsto na Lei.
O STJ entende ser presumida, pela
Lei nº 11.340/2006, a hipossuficiência e a vulnerabilidade da mulher em
contexto de violência doméstica e familiar:
(...) 9. O Superior Tribunal de Justiça entende ser
presumida, pela Lei n. 11.340/2006, a hipossuficiência e a vulnerabilidade da
mulher em contexto de violência doméstica e familiar. É desnecessária,
portanto, a demonstração específica da subjugação feminina para que seja
aplicado o sistema protetivo da Lei Maria da Penha, pois a organização social
brasileira ainda é fundada em um sistema hierárquico de poder baseado no
gênero, situação que o referido diploma legal busca coibir. (...)
STJ. Corte Especial. AgRg na MPUMP n. 6/DF, Rel. Min. Nancy
Andrighi, julgado em 18/5/2022.
Jurisprudência em Teses (Ed. 209):
6) A vulnerabilidade, hipossuficiência ou fragilidade da
mulher têm-se como presumidas nas circunstâncias descritas na Lei nº
11.340/2006.
Para a incidência da Lei Maria da
Penha, é necessário que a violência doméstica e familiar contra a mulher
decorra:
a) de ação ou omissão baseada no
gênero;
b) no âmbito da unidade
doméstica, familiar ou relação de afeto; tendo como consequência:
c) morte, lesão, sofrimento
físico, sexual ou psicológico, dano moral ou patrimonial.
Desse modo, presume-se de forma
absoluta a hipossuficiência da mulher, exigindo que o Estado ofereça proteção
especial para reequilibrar a desproporcionalidade existente.
Em nenhum momento o legislador
condicionou esse tratamento diferenciado à demonstração, no caso concreto, da
hipossuficiência ou subjugação da mulher.
O novel art. 40-A da Lei
11.340/2006 (Lei Maria da Penha):
Nesse mesmo sentido, recentemente, a Lei nº 14.550/2023 inseriu
o art. 40-A na Lei Maria da Penha prevendo que:
Art. 40-A. Esta Lei será aplicada a
todas as situações previstas no seu art. 5º, independentemente da causa ou da
motivação dos atos de violência e da condição do ofensor ou da ofendida.
Esse dispositivo legal vem para
positivar o entendimento jurisprudencial acerca da presunção de vulnerabilidade
da mulher.
Extrai-se do art. 40-A que, se o
caso concreto se enquadrar em qualquer das situações previstas no art. 5º, a
Lei Maria da Penha será aplicada, independentemente da causa ou da motivação
dos atos de violência e da condição do ofensor ou da ofendida (vulnerabilidade
presumida).
Para ilustrar o sentido e a
aplicação do art. 40-A, imagine o caso do agente que pratica violência
doméstica e familiar contra mulher e, em sua defesa, alega que a Lei Maria da
Penha não deveria ser aplicada porque a condição física, intelectual e financeira
da vítima são aptas a descaracterizar sua hipossuficiência e vulnerabilidade.
Tal argumento não prosperará por força do aludido art. 40-A, que torna
desnecessária a análise das condições da vítima e motivação dos atos de
violência.
É possível afirmar que,
após o advento da Lei nº 14.550/2023, a presunção de vulnerabilidade e
hipossuficiência da mulher deixou de ser mera interpretação judicial da Lei
Maria da Penha e se tornou interpretação autêntica?
SIM. Conforme demonstrado, até o
advento da Lei nº 14.550/2023, o STJ já vinha entendendo pela presunção de
vulnerabilidade e hipossuficiência da mulher nos casos de violência doméstica e
familiar. Tratava-se de mera interpretação judicial (jurisprudencial) do art.
5º da Lei Maria da Penha.
Com o advento da Lei nº
14.550/2023, o novel art. 40-A explicitou a forma como o art. 5º da Lei Maria
da Penha deve ser interpretado (interpretação autêntica ou legislativa).
E se a vítima for figura
pública renomada, é possível afastar a competência do Juizado de Violência
Doméstica e Familiar contra a Mulher sob o fundamento de não existir situação
de vulnerabilidade e de hipossuficiência?
NÃO. Conforme explicado, a
incidência da Lei Maria da Penha NÃO exige demonstração de hipossuficiência ou
de vulnerabilidade da mulher agredida. Nesse sentido:
O fato de a vítima ser figura pública renomada não afasta a
competência do Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher para
processar e julgar o delito. Isso porque a situação de vulnerabilidade e de
hipossuficiência da mulher, envolvida em relacionamento íntimo de afeto,
revela-se ipso facto, sendo irrelevante a sua condição pessoal para a
aplicação da Lei Maria da Penha. Trata-se de uma presunção da Lei.
STJ. 5ª Turma. REsp 1.416.580-RJ, Rel. Min. Laurita Vaz, julgado
em 1º/4/2014 (Info 539).
Para fins de fixação da
competência do Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher é
desnecessário demonstrar a vulnerabilidade da mulher, eis que presumida. Mas e
para o deferimento de medidas protetivas de urgência em favor da mulher, essa
presunção de vulnerabilidade também é válida?
SIM. À luz da jurisprudência do
STJ, é desnecessária a demonstração de subjugação feminina para o deferimento
de medidas protetivas de urgência previstas na Lei Maria da Penha. Nesse
sentido: STJ. 6ª Turma. AgRg no AREsp 1.643.237/GO, Rel. Min. Rogerio Schietti
Cruz, julgado em 21/9/2021.
Voltando ao caso concreto:
Assim, no contexto em que o
irmão, “segundo as declarações da ofendida, atacou-a pelas costas com socos,
enquanto ela lavava louça e, depois, apossou-se de uma faca com a intenção de
feri-la”, denota-se existir situação de violência doméstica e familiar contra a
mulher a ser apurada no caso, apta a justificar a incidência do diploma
protetivo pertinente e a competência da vara especializada, nos termos do art.
5º, I e II, da Lei nº 11.340/2006.
Em suma:
A orientação mais condizente com o espírito da Lei nº
11.340/2006 é no sentido de que a vulnerabilidade e a hipossuficiência da
mulher são presumidas, sendo desnecessária a demonstração da motivação de
gênero para que incida o sistema protetivo da Lei Maria da Penha e a
competência da vara especializada.
STJ. 5ª
Turma. AgRg no REsp 2.080.317-GO, Rel. Min. Joel Ilan Paciornik, julgado em
4/3/2024 (Info 803).
DOD Plus – Situações em
que é possível a aplicação da Lei Maria da Penha:
VIOLÊNCIA
PRATICADA POR... |
É
POSSÍVEL? |
FILHO CONTRA A MÃE A Lei Maria da Penha aplica-se
também nas relações de parentesco. |
SIM HC 290.650/MS |
NETO CONTRA AVÓ |
SIM AgRg no AREsp
1.626.825/GO |
FILHA CONTRA A MÃE Relembrando que o agressor pode
ser também mulher. |
SIM HC 277.561/AL |
PAI CONTRA A FILHA |
SIM HC 178.751/RS |
IRMÃO CONTRA IRMÃ Obs.: ainda que não morem sob o
mesmo teto. |
SIM REsp 1239850/DF |
GENRO CONTRA SOGRA |
SIM HC 310154/RS |
NORA CONTRA A SOGRA Desde que estejam presentes os
requisitos de relação íntima de afeto, motivação de gênero e situação de vulnerabilidade.
Ausentes, não se aplica. |
SIM HC 175.816/RS |
COMPANHEIRO DA MÃE (“PADRASTO”)
CONTRA A ENTEADA Obs.: a agressão foi motivada
por discussão envolvendo o relacionamento amoroso que o agressor possuía com
a mãe da vítima (relação íntima de afeto). |
SIM RHC 42.092/RJ |
TIA CONTRA SOBRINHA A tia possuía, inclusive, a
guarda da criança (do sexo feminino), que tinha 4 anos. |
SIM HC 250.435/RJ |
EX-NAMORADO CONTRA A
EX-NAMORADA Vale ressaltar, porém, que não é qualquer namoro que se enquadra na
Lei Maria da Penha. Se o vínculo é eventual, efêmero, não incide a Lei
11.340/06 (CC 91.979-MG). |
SIM HC 182.411/RS |
FILHO CONTRA PAI IDOSO O sujeito passivo (vítima) não
pode ser do sexo masculino. |
NÃO RHC 51.481/SC |