Imagine a seguinte situação adaptada:
Lucas foi denunciado pelo
Ministério Público acusado de participar de um roubo majorado.
Segundo a acusação, Lucas teria
sido um dos indivíduos que assaltaram um ônibus.
A acusação baseou-se no fato de que ele teria sido
reconhecido por duas vítimas por meio de fotografias que lhes foram
apresentadas na Delegacia de Polícia pouco depois do crime. Vale ressaltar que
esse procedimento de reconhecimento não seguiu as diretrizes legais previstas
no art. 226 do CPP, que exige uma série de medidas para garantir a
confiabilidade do reconhecimento de suspeitos:
Art. 226. Quando houver necessidade de fazer-se o
reconhecimento de pessoa, proceder-se-á pela seguinte forma:
I - a pessoa que tiver de fazer o
reconhecimento será convidada a descrever a pessoa que deva ser reconhecida;
Il - a pessoa, cujo
reconhecimento se pretender, será colocada, se possível, ao lado de outras que
com ela tiverem qualquer semelhança, convidando-se quem tiver de fazer o
reconhecimento a apontá-la;
III - se houver razão para recear
que a pessoa chamada para o reconhecimento, por efeito de intimidação ou outra
influência, não diga a verdade em face da pessoa que deve ser reconhecida, a
autoridade providenciará para que esta não veja aquela;
IV - do ato de reconhecimento
lavrar-se-á auto pormenorizado, subscrito pela autoridade, pela pessoa chamada
para proceder ao reconhecimento e por duas testemunhas presenciais.
Parágrafo único. O disposto no nº III deste artigo não terá
aplicação na fase da instrução criminal ou em plenário de julgamento.
Lucas, desde o primeiro momento
em que foi ouvido, sustentou que estava em casa no momento do crime, versão
confirmada por sua família e amigos.
A denúncia foi recebida e, ao
final, Lucas condenado.
Inconformada, a advogada do réu
impetrou habeas corpus argumentando a ilegalidade da condenação porque foi baseada
unicamente em reconhecimentos fotográficos realizados de forma irregular, além
de destacar a ausência de outras provas materiais independentes que
corroborassem a participação de Lucas no crime.
O STJ concordou com os
argumentos da defesa?
SIM.
Inobservância das
formalidades do art. 226 do CPP
Conforme já explicado, o
reconhecimento realizado não observou o disposto no art. 226 do CPP.
Os policiais mostraram algumas
fotos às vítimas, que teriam reconhecido Lucas.
No entanto, não se sabe a
quantidade de fotografias que foram apresentadas às vítimas, tampouco se os
policiais cuidaram de, primeiro, exigir a descrição das características físicas
dos agentes.
Também não houve a materialização
do reconhecimento em auto formal, como determina o art. 226, IV, do CPP (“do
ato de reconhecimento lavrar-se-á auto pormenorizado, subscrito pela
autoridade, pela pessoa chamada para proceder ao reconhecimento e por duas
testemunhas presenciais”).
Não se pode descartar o fato de
que a falha no referido procedimento e o modo como as fotografias foram
apresentadas tenham influenciado, significativamente, no reconhecimento feito
pela vítima, que pode ter sido sugestionada naquela oportunidade, ainda que
involuntariamente.
Quando tal circunstância ocorre,
o reconhecimento formalizado pelo ofendido deve ser ponderado com extrema
cautela, devido ao risco da construção de falsas memórias. O fenômeno não está
ligado à ideia de mentira ou falsa acusação, mas sim a de um erro involuntário,
a que qualquer pessoas pode ser acometida. Conforme advertem Lilian Milnitsky
Stein e Maria Lúcia Campani Nygaard, “[e]mbora a evidência do testemunho ajude
no desenvolvimento do processo, ela não é infalível. Até as testemunhas
honestas cometem erros” (STEIN, Lilian Milnitsky. MYGAARD. Maria Lúcia Campani.
A memória em julgamento: uma análise cognitiva dos depoimentos testemunhais.
Revista Brasileira de Ciências Criminais. v. 43/2003. p. 151 - 164.
Abr-Jun/2003).
Daí, porque, apesar de a palavra
da vítima ser, sim, de especial relevância em crimes patrimoniais, nem sempre
esse depoimento pode ser tomado como infalível.
Neste cenário, constata-se que,
além das declarações prestadas pela vítima, não há nos autos nenhum outro
elemento probatório válido (independent source), indicando a autoria
delitiva. Por essa razão, é devida a
absolvição, considerando que segundo entendimento consolidado no STJ, o
reconhecimento fotográfico realizado sem respeito ao procedimento do art. 226
do CPP, ainda que confirmado em juízo, se não conjugado com outras provas, é
insuficiente para a formação do juízo condenatório:
O procedimento previsto no art. 226 do Código de Processo Penal
constitui garantia mínima para quem se vê na condição de suspeito da prática de
um crime, não se tratando, como se tem compreendido, de mera recomendação do
legislador. Em verdade, a inobservância de tal procedimento enseja a nulidade
da prova e, portanto, não pode servir de lastro para sua condenação, ainda que
confirmado, em juízo, o ato realizado na fase inquisitorial.
STJ. 6ª Turma.
HC 598.886/SC, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, julgado em 27/10/2020.
Teoria da perda de uma
chance probatória
Vale ressaltar, ainda, outro
aspecto muito interessante.
No depoimento prestado na fase
extrajudicial (inquérito policial), a vítima informou que a ação criminosa
teria sido filmada por câmeras de segurança do ônibus e que as imagens poderiam
ser solicitadas na sede da empresa de ônibus.
O policial militar, por sua vez,
também informou que, segundo relato das vítimas, “havia um veículo gol bola
branco que parou em frente ao ônibus e prestou apoio na fuga dos indivíduos”.
Dessa forma, as imagens das
câmeras de segurança e a apuração sobre o veículo envolvido no roubo seriam de extrema
importância para a busca da verdade, especialmente pelo fato de o paciente ter
negado seu envolvimento no crime. A filmagem poderia comprovar a tese defensiva
ou confirmar a versão acusatória.
O Ministério Público, ao oferecer
a denúncia, requereu a expedição de ofício à empresa de ônibus para o
fornecimento das imagens das câmeras de segurança, no entanto, a referida
diligência não foi cumprida e não houve outras tentativas de obtenção da
referida prova que era, como já dito, de suma importância no contexto em exame.
Essa conjuntura processual configura o que a doutrina
processualista-penal denomina de “perda de uma chance probatória”, assim
explicada:
“Nas hipóteses
em que o Estado se omite e deixa de produzir provas que estavam ao seu alcance,
julgando suficientes aqueles elementos que já estão à sua disposição, o acusado
perde a chance - com a não produção (desistência, não requerimento,
inviabilidade, ausência de produção no momento do fato etc.) -, de que a sua
inocência seja afastada (ou não) de boa-fé. Ou seja, sua expectativa foi
destruída. E é justamente no conteúdo dos parênteses que reside o grande
problema: como ter certeza de que a prova que não foi produzida não colocaria
abaixo a tese acusatória?” (ROSA, Alexandre Morais da. RUDOLFO, Fernanda
Mambrini. A teoria da perda de uma chance probatória aplicada ao processo
penal. In Revista Brasileira de Direito. v. 13, n. 3, dez. 2017, p. 462.
Disponível em https://seer.atitus.edu.br/index.php/revistadedireito/article/view
/2095/1483).
Essa teoria já foi aplicada em
outras oportunidades pelo STJ: HC 706.365/RJ, Rel. Min. Laurita Vaz, Sexta
Turma, julgado em 23/5/2023; AREsp 1.940.381/AL, Rel. Min. Ribeiro Dantas,
Quinta Turma, julgado em 14/12/2021.
Assim, é devida a absolvição,
seja pela inobservância das formalidades do art. 226 do CPP no reconhecimento
do réu, seja pela não produção de prova salutar para o deslinde do feito que,
injustificadamente, não foi produzida pela acusação.
Em suma:
Aplica-se a teoria da perda de uma chance probatória
na hipótese em que, injustificadamente, a acusação deixa de produzir prova que
poderia comprovar a tese defensiva ou colocar o réu a salvo de quaisquer
dúvidas em relação à versão acusatória.
STJ. 6ª
Turma. HC 829.723-PR, Rel. Min. Teodoro Silva Santos, julgado em 12/12/2023
(Info 17 – Edição Extraordinária).