Imagine a seguinte situação
hipotética:
A União ingressou com execução
fiscal contra João.
Como o executado não pagou, nem
ofereceu bens à penhora, o exequente requereu o bloqueio de ativos financeiros
no Bacenjud.
Foi penhorada a quantia de R$ 40
mil pertencentes à João e que estavam depositados em um fundo de investimento
do devedor.
O executado compareceu
nos autos e alegou impenhorabilidade da quantia, na forma do art. 833, X, do
CPC:
Art. 833. São impenhoráveis:
(...)
X – a quantia depositada em
caderneta de poupança, até o limite de 40 (quarenta) salários-mínimos;
Obs: o salário-mínimo foi fixado
em R$ 1.412,00 para 2024; logo, 40 salários-mínimos, em 2024, é equivalente a
R$ 56.480,00.
João alegou que o referido
montante constitui reserva de patrimônio destinado a assegurar o mínimo
existencial e que não possui qualquer outra conta bancária ou de investimento,
sendo esse valor reservado para uma cirurgia que irá realizar, conforme se pode
comprovar pelos exames médicos.
A Fazenda Nacional impugnou o
pedido e requereu a manutenção do bloqueio. Ressaltou que o dinheiro estava depositado
em um fundo de investimento em nome do devedor e, portanto, não se amoldava à
hipótese legal do inciso X do art. 833 do CPC, que fala em “quantia depositada
em caderneta de poupança”.
A questão chegou até o STJ.
No caso concreto, ficou demonstrado que o valor penhorado não estava na caderneta
de poupança, mas sim em uma conta corrente. Mesmo assim é possível aplicar a impenhorabilidade
do art. 833, X, do CPC?
SIM.
Vale ressaltar inicialmente que esse art. 833, X, do
CPC/2015 era também previsto no art. 649, X, do CPC/1973:
CPC/1973 |
CPC/2015 |
Art. 649. São absolutamente impenhoráveis: (...) X - até o limite de 40
(quarenta) salários mínimos, a quantia depositada em caderneta de poupança. (Redação
dada pela Lei nº 11.382, de 2006) |
Art. 833. São impenhoráveis: (...) X – a quantia depositada em
caderneta de poupança, até o limite de 40 (quarenta) salários-mínimos; |
O STJ, mesmo antes do CPC atual
entrar em vigor, já entendia que a regra da impenhorabilidade no patamar de até
40 salários mínimos vale não apenas para os valores depositados em cadernetas
de poupança, mas também para quantias presentes em conta corrente ou em fundos
de investimento, bem como para valores guardados em papel-moeda.
Confira o leading case sobre
o tema:
O art. 649, X, do CPC 1973 afirma que “são absolutamente
impenhoráveis até o limite de 40 (quarenta) salários mínimos, a quantia
depositada em CADERNETA DE POUPANÇA.”
O STJ confere interpretação extensiva ao inciso X do art. 649 do
CPC 1973, permitindo que essa impenhorabilidade abranja outras aplicações
financeiras, além da poupança, como é o caso do fundo de investimento.
STJ. 2ª Seção. EREsp 1330567-RS, Rel. Min. Luis Felipe Salomão,
julgado em 10/12/2014 (Info 554).
Essa interpretação do art. 649,
X, do CPC/1973 foi igualmente reproduzida pelo STJ depois que o art. 833, X, do
CPC/2015 entrou em vigor. Confira:
É possível ao devedor poupar valores sob a regra da
impenhorabilidade no patamar de até quarenta salários-mínimos, não apenas
aqueles depositados em cadernetas de poupança, mas também em conta corrente ou
em fundos de investimento, ou guardados em papel-moeda.
STJ. 4ª Turma. AgInt no REsp 1.958.516-SP, Rel. Min. Raul
Araújo, julgado em 14/06/2022 (Info 742).
Por que o STJ adotou essa
interpretação?
Porque houve uma alteração na
realidade fática das aplicações financeiras. Na cultura generalizada vigente
nas últimas décadas do século passado, o cidadão médio quando pensava em
reservar alguma quantia para a proteção própria ou de sua família, pensava
naturalmente na poupança. Hoje em dia isso mudou e a poupança é uma das
aplicações que dá menor retorno, tendo sido abandonada por muitos.
Por esse motivo, não há justificativa
lógica ou jurídica para que a proteção se limite a determinado tipo de
investimento (poupança), em detrimento de outros.
Exatamente por essa razão, é de
se reconhecer que o nome da aplicação financeira, por si só, é insuficiente
para viabilizar a proteção almejada pelo legislador.
O objetivo do legislador ao
trazer essa hipótese de impenhorabilidade foi o de garantir a reserva de
numerário mínimo, destinado a formar patrimônio necessário ao resguardo da
dignidade da pessoa humana (aqui incluída a do grupo familiar a que pertence).
Esse é o fim social almejado pelo legislador. Logo, não seria razoável, à luz
da Constituição Federal, proteger apenas o devedor que optou por fazer
aplicação em cadernetas de poupança, instituindo tratamento desigual para
outros que, aplicando sua reserva monetária em aplicações com características e
finalidade similares à da poupança, buscam obter retorno financeiro mais bem
qualificado.
Vale ressaltar, contudo, que essa
interpretação não é absoluta, havendo limites que devem ser reconhecidos,
conforme se verá no tópico abaixo.
Se o dinheiro não estiver
na poupança, o devedor deverá provar que ele constitui reserva de patrimônio
destinado a assegurar o mínimo existencial
A garantia da impenhorabilidade é
aplicável automaticamente, em relação ao montante de até 40 (quarenta) salários
mínimos, ao valor depositado exclusivamente em caderneta de poupança. Em outras
palavras, se o dinheiro está na poupança e ele não ultrapassa 40 salários
mínimos, existe uma presunção de que esse montante é destinado ao mínimo
existencial do devedor e, portanto, vigora a impenhorabilidade.
Por outro lado, se o dinheiro
encontrado estava em conta corrente ou quaisquer outras aplicações financeiras,
o devedor terá que comprovar que esse montante constitui reserva de patrimônio
destinado a assegurar o mínimo existencial. Se ele comprovar, o valor é
impenhorável. Se não comprovar, poderá ser penhorado. Atenção porque aqui o STJ
mudou seu antigo entendimento que era o seguinte:
Presume-se como indispensável para preservar a reserva
financeira essencial à proteção do mínimo existencial do executado e de sua
família, bem como de depósitos em caderneta de poupança ou qualquer outro tipo
de aplicação financeira, o valor de 40 salários mínimos.
STJ. 3ª Turma. AgInt no REsp 2.018.134-PR, Rel. Min. Humberto
Martins, julgado em 27/11/2023 (Info 15 – Edição Extraordinária).
Conforme já dito, esse
entendimento mudou e, atualmente, a presunção só existe para os valores até 40
salários mínimos depositados na poupança. Se estivem em outro tipo de aplicação
financeira, é ônus do devedor comprovar que a quantia é destinada a assegurar o
mínimo existencial.
Conclusões
A partir do raciocínio acima,
conclui-se no sentido de que:
a) é irrelevante o nome dado à
aplicação financeira. O que é essencial é que o investimento no qual está o
dinheiro possua características e objetivo similares ao da poupança (isto é,
reserva contínua e duradoura de numerário até quarenta salários mínimos,
destinado a conferir proteção individual ou familiar em caso de emergência ou
imprevisto grave).
b) não possui as características
acima o dinheiro referente às sobras que remanescem, no final do mês, em conta
corrente tradicional ou remunerada (a qual se destina, justamente, a fazer
frente às mais diversas operações financeiras de natureza diária, eventual ou
frequente, mas jamais a constituir reserva financeira para proteção contra
adversidades futuras e incertas).
c)
importante ressalvar que a circunstância descrita anterior, por si só, não
conduz automaticamente ao entendimento de que o valor mantido em conta corrente
será sempre penhorável. Com efeito, deve subsistir a orientação jurisprudencial
de que o devedor poderá solicitar a anulação da medida constritiva, desde que
comprove que o dinheiro percebido no mês de ingresso do numerário possui
natureza absolutamente impenhorável (por exemplo, conta usada para receber o
salário, ou verba de natureza salarial).
d) para os fins da
impenhorabilidade descrita acima, ressalvada a hipótese de aplicação em
caderneta de poupança (em torno da qual há presunção absoluta de
impenhorabilidade), é ônus da parte devedora produzir prova concreta de que a
aplicação similar à poupança constitui reserva de patrimônio destinado a
assegurar o mínimo existencial ou a proteger o indivíduo ou seu núcleo familiar
contra adversidades.
Em resumo:
A garantia da impenhorabilidade é
aplicável automaticamente, em relação ao montante de até 40 (quarenta) salários
mínimos, ao valor depositado exclusivamente em caderneta de poupança.
Se a medida de bloqueio/penhora
judicial, por meio físico ou eletrônico (Bacenjud), atingir dinheiro mantido em
conta corrente ou quaisquer outras aplicações financeiras, poderá eventualmente
a garantia da impenhorabilidade ser estendida a tal investimento, respeitado o
teto de quarenta salários mínimos, desde que comprovado, pela parte processual
atingida pelo ato constritivo, que o referido montante constitui reserva de
patrimônio destinado a assegurar o mínimo existencial.
STJ. Corte
Especial. REsp 1.677.144-RS, Rel. Min. Herman Benjamin, julgado em 21/2/2024 (Info
804).