REGRAMENTO DA REPETIÇÃO DO INDÉBITO NO CÓDIGO CIVIL
Imagine a seguinte situação hipotética:
Ricardo ajuizou ação de cobrança contra
Pedro por um suposto débito de R$ 10 mil.
Pedro contestou a demanda provando que
já havia pagado a dívida. Além disso, na própria contestação, o réu pediu que o
autor fosse condenado a pagar R$ 20 mil a ele em razão de estar cobrando uma
dívida já quitada.
Sob o ponto de vista do direito
material, esse pedido de Pedro encontra amparo na legislação?
SIM. Há
previsão expressa no Código Civil:
Art. 940. Aquele que demandar por dívida já paga, no
todo ou em parte, sem ressalvar as quantias recebidas ou pedir mais do que for
devido, ficará obrigado
a pagar ao devedor, no primeiro caso, o dobro do que houver cobrado e, no segundo,
o equivalente do que dele exigir, salvo se houver prescrição.
Obs1: essa penalidade do art. 940 deve
ser aplicada independentemente de a pessoa demandada ter provado qualquer tipo
de prejuízo. Assim, ainda que Pedro não comprove ter sofrido dano, essa
indenização será devida. O art. 940 do CC institui uma autêntica pena privada,
aplicável independentemente da existência de prova do dano (STJ. 3ª Turma. REsp
1.286.704/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, DJe de 28/10/2013).
Obs2: a penalidade do art. 940 exige
que o credor tenha exigido judicialmente a dívida já paga (“demandar” =
“exigir em juízo”).
Para que Pedro cobre esse valor em
dobro, é necessária ação autônoma ou reconvenção, ou ele pode fazer isso por
meio de mera contestação?
O pedido pode ser feito por meio de
contestação:
A aplicação da sanção civil do pagamento em dobro por cobrança
judicial de dívida já adimplida (art. 1.531 do CC 1916 / art. 940 do CC 2002)
pode ser postulada pelo réu na própria defesa, independendo da propositura de
ação autônoma ou do manejo de reconvenção.
STJ. 2ª Seção. REsp 1.111.270-PR, Rel. Min. Marco Buzzi, julgado
em 25/11/2015 (Recurso Repetitivo – Tema 662) (Info 576).
Sempre que houver cobrança de dívida já
paga, haverá a condenação do autor à penalidade do art. 940 do CC?
Não, nem sempre.
Segundo o STJ, são exigidos dois
requisitos para a aplicação do art. 940:
a) a cobrança se dá por meio judicial;
e
b) a má-fé do demandante fica
comprovada.
Essa exigência da má-fé é antiga e vem desde o CC-1916, onde esta
penalidade encontrava-se prevista no art. 1.531. Veja o que o STF já havia
decidido naquela época:
Súmula 159-STF: Cobrança excessiva, mas de boa fé, não dá lugar
às sanções do art. 1.531 do Código Civil (atual
art. 940).
(PGM Manaus 2018 CEBRASPE) De acordo com a jurisprudência do
STJ e as disposições do Código Civil, uma vez ajuizada ação de cobrança de
dívida já paga, o direito do requerido à restituição em dobro prescindirá da demonstração
de má-fé do autor da cobrança. (ERRADO)
Se Ricardo tivesse desistido da ação de
cobrança antes de Pedro apresentar contestação, isso o eximiria do pagamento da
penalidade do art. 940 do CC?
SIM. O CC
prevê que a indenização é excluída se o autor desistir da ação antes de
contestada a lide:
Art. 941. As penas previstas nos arts.
939 e 940 não
se aplicarão quando o autor desistir da ação antes de contestada a lide, salvo
ao réu o direito de haver indenização por algum prejuízo que prove ter sofrido.
REGRAMENTO DA REPETIÇÃO DO INDÉBITO NO CÓDIGO DE DEFESA DO
CONSUMIDOR
Imagine a seguinte situação hipotética:
João firmou contrato de
empréstimo consignado com o Banco.
As parcelas eram descontadas
diretamente da conta bancária que João mantinha com a instituição financeira.
O consumidor quitou todas as
parcelas do empréstimo. Mesmo assim, a instituição financeira ainda descontou três
prestações a mais. Em outras palavras, João acabou pagando indevidamente três
parcelas de R$ 5 mil, cada, indevidamente (R$ 15 mil, no total).
João conferiu novamente todos os
extratos e constatou a cobrança indevida.
Diante disso, ele ajuizou ação de
repetição de indébito contra o banco.
Requereu que a instituição
financeira fosse condenada a pagar o dobro do que ele foi obrigado a pagar em
excesso, acrescido de correção monetária e juros legais. Como João pagou R$ 15
mil em excesso, ele pediu para receber de volta R$ 30 mil.
O pedido do autor foi baseado no art. 42, parágrafo único,
do Código de Defesa do Consumidor:
Art. 42 (...)
Parágrafo único O consumidor
cobrado em quantia indevida tem direito à repetição do indébito, por valor
igual ao dobro do que pagou em excesso, acrescido de correção monetária e juros
legais, salvo hipótese de engano justificável.
O
Banco apresentou contestação na qual argumentou que houve uma falha no sistema
informatizado e que, por isso, os três últimos pagamentos não foram
contabilizados. Diante disso, pediu para fazer a devolução simples da quantia (R$
15 mil), e não em dobro (R$ 30 mil) já que não ficou provada a sua má-fé.
Em outras palavras, a instituição
financeira argumentou que, para incidir a regra do art. 42, parágrafo único, do
CDC, seria indispensável que ficasse demonstrado que o Banco tinha a intenção
(vontade) de cobrar um valor indevido do consumidor, o que não ficou provado no
caso.
Para incidir a regra do
art. 42, parágrafo único, do CDC exige-se má-fé do fornecedor (“cobrador”)?
Até o fim de 2020, o STJ estava
dividido:
1) Em regra: SIM.
O STJ que era necessária a
comprovação de má-fé.
Jurisprudência em Teses do STJ
(ed. 39).
Tese 7: A devolução em dobro dos
valores pagos pelo consumidor, prevista no art. 42, parágrafo único, do CDC,
pressupõe tanto a existência de pagamento indevido quanto a má-fé do credor.
(Obs: essa tese está atualmente superada).
2) Em casos envolvendo serviços
públicos: NÃO.
O
STJ entendia que não era necessária a comprovação de má-fé.
Jurisprudência em Teses do STJ
(ed. 39).
Tese 3: É obrigatória a
restituição em dobro da cobrança indevida de tarifa de água, esgoto, energia ou
telefonia, salvo na hipótese de erro justificável (art. 42, parágrafo único, do
CDC), que não decorra da existência de dolo, culpa ou má-fé.
Essa posição foi alterada no fim
de 2020.
A Corte Especial do STJ definiu a questão no EAREsp
600.663/RS, fixando a seguinte tese:
A repetição em dobro, prevista no parágrafo único do art. 42 do
CDC, é cabível quando a cobrança indevida consubstanciar conduta contrária à
boa-fé objetiva, ou seja, deve ocorrer independentemente da natureza do
elemento volitivo.
STJ. Corte Especial. EAREsp 600.663/RS, Rel. Min. Maria Thereza
de Assis Moura, relator para acórdão Min. Herman Benjamin, julgado em
21/10/2020, DJe de 30/3/2021.
Assim, atualmente prevalece o
entendimento de que, para incidir a regra do art. 42, parágrafo único, do CDC não
se exige má-fé do fornecedor, não se exige a demonstração de que o fornecedor
tinha a intenção (elemento volitivo) de cobrar um valor indevido do consumidor.
Basta que o fornecedor tenha agido de forma contrária à boa-fé objetiva.
Se observar bem o art. 42, parágrafo
único, do CDC, verá que a norma analisada não exige culpa, dolo ou má-fé do
fornecedor, quando este cobra e recebe valor indevido do consumidor. Ao
fornecedor, a imputação que se lhe faz a lei é objetiva, independentemente de
culpa ou dolo.
Desse modo, a justificabilidade
(ou legitimidade) do engano, para afastar a devolução em dobro, insere-se no
domínio da causalidade, e não no domínio da culpabilidade, pois esta se
resolve, sem apelo ao elemento volitivo, pelo prisma da boa-fé objetiva.
Como ocorre a comprovação
disso? De quem é ônus probatório?
Se o consumidor alega que o
fornecedor fez uma cobrança indevida, ele (fornecedor) deverá, na fase
instrutória do processo, produzir prova apta a demonstrar que não atuou em
contrariedade à boa-fé objetiva, isto é, que não agiu de forma desleal ou
descuidada, pois o engano cometido era, sim, justificável, afastando-se, assim,
a incidência da sanção civil de devolução em dobro.
Modulação dos efeitos
Vimos acima que o julgamento do EAREsp
600.663/RS representou uma alteração na jurisprudência até então dominante no
STJ.
Por isso, o STJ decidiu modular
os efeitos da decisão.
Assim, o STJ decidiu que a tese
fixada no EAREsp 600.663/RS - quanto a indébitos não decorrentes de prestação
de serviço público - se aplicaria somente para as cobranças realizadas após a
data da publicação do acórdão (30/3/2021).
O que isso significa na prática?
Consumidor foi cobrado em
excesso, mas não ficou provada a má-fé do fornecedor:
1) Contrato de consumo não
envolve serviço público:
- se a cobrança foi antes de
30/03/2021: o consumidor terá direito apenas a devolução simples (isso porque
se exigia a má-fé);
- se a cobrança foi depois de
30/03/2021: o consumidor terá direito à devolução em dobro (isso porque depois
dessa data não se exige mais a má-fé do fornecedor).
2) Contrato de consumo envolve
serviço público: o consumidor terá direito à devolução em dobro mesmo que a
cobrança tenha ocorrido antes de 30/03/2021.
No Informativo 803, foi
divulgado acórdão no qual o STJ reiterou o entendimento fixado no EAREsp
600.663/RS:
A repetição em dobro, prevista no parágrafo único do
art. 42 do CDC, é cabível quando a cobrança indevida consubstanciar conduta
contrária à boa-fé objetiva, ou seja, deve ocorrer independentemente da
natureza do elemento volitivo.
STJ. Corte
Especial. EAREsp 1.501.756-SC, Rel. Min. Herman Benjamin, julgado em 21/2/2024 (Info
803).
DOD Plus –
principais diferenças entre os dois regimes
O art.
940 do CC e o art. 42 do CDC incidem em hipóteses diferentes, tutelando, cada
um deles, uma situação específica envolvendo a cobrança de dívidas pelos
credores. Veja as principais diferenças:
ART. 940 DO CÓDIGO CIVIL |
ART. 42, PARÁGRAFO ÚNICO, DO CDC |
Requisitos: a) A pessoa (consumidora ou não) foi
cobrada, por meio de processo judicial, por dívida já paga; b) O autora da cobrança agiu de má-fé
(súmula 159 STF). |
Requisitos: a) Consumidor foi cobrado por quantia
indevida; b) Consumidor pagou essa quantia
indevida; c) Não houve um engano justificável
por parte do autor da cobrança. |
A cobrança foi feita na via judicial. |
A cobrança foi feita na via
extrajudicial. |
Exige má-fé do autor da cobrança. Cobrança excessiva, mas de boa-fé,
não dá lugar às sanções do art. 940. |
A restituição em dobro do indébito
(parágrafo único do artigo 42 do CDC) independe da natureza do elemento
volitivo do fornecedor que cobrou valor indevido, revelando-se cabível quando
a cobrança indevida consubstanciar conduta contrária à boa-fé objetiva. |
Não se exige que a pessoa cobrada
tenha pagado efetivamente a quantia. Para incidir o dispositivo basta que
a pessoa seja acionada na justiça por dívida já paga. |
Não basta a simples cobrança
indevida. Exige-se que o consumidor tenha
pagado efetivamente o valor indevido. |
A sanção do art. 940 do
Código Civil pode ser aplicada também para casos envolvendo consumidor
Em caso de cobrança judicial indevida, é possível aplicar a
sanção prevista no art. 940 do Código Civil mesmo sendo uma relação de consumo.
O art. 940 do CC e o art. 42 do CDC incidem em hipóteses
diferentes, tutelando, cada um deles, uma situação específica envolvendo a
cobrança de dívidas pelos credores.
Mesmo diante de uma relação de consumo, se inexistentes os
pressupostos de aplicação do art. 42, parágrafo único, do CDC, deve ser
aplicado o sistema geral do Código Civil, no que couber.
O art. 940 do CC é norma complementar ao art. 42, parágrafo
único, do CDC e, no caso, sua aplicação está alinhada ao cumprimento do
mandamento constitucional de proteção do consumidor.
STJ. 3ª Turma. REsp 1645589-MS, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas
Cueva, julgado em 04/02/2020 (Info 664).