Imagine a seguinte situação
hipotética:
Lucas, criança de 5 anos, foi diagnosticada com Transtorno de Espectro
Autista (TEA).
O médico que o acompanha prescreveu psicopedagogia, equoterapia e
musicoterapia como as medidas terapêuticas adequadas para o tratamento e
melhora na sua qualidade de vida.
Embora a criança tivesse convênio
com plano de saúde privado, a operadora recusou cobertura ao tratamento
indicado, sob a justificativa de que os procedimentos prescritos não constavam
no rol obrigatório da ANS.
O que é esse rol da ANS?
ANS é a sigla para Agência Nacional de
Saúde Suplementar, autarquia sob regime especial, responsável pela regulação
dos planos de saúde.
Uma das atribuições da ANS é a de elaborar uma lista de
procedimentos que deverão ser obrigatoriamente custeados pelas operadoras de
planos de saúde. Essa competência está prevista no art. 4º, III, da Lei nº
9.961/2000:
Art. 4º Compete à ANS:
(...)
III - elaborar o rol de
procedimentos e eventos em saúde, que constituirão referência básica para os
fins do disposto na Lei nº 9.656, de 3 de junho de 1998, e suas
excepcionalidades;
Assim, a ANS prepara uma lista de
tratamentos que deverão ser obrigatoriamente fornecidos pelos planos de saúde.
Esse rol procedimentos e eventos da
ANS é explicativo ou exaustivo?
Em junho de 2022, o STJ decidiu que o
rol de Procedimentos e Eventos em Saúde Suplementar é, em regra, taxativo (STJ.
2ª Seção EREsp 1886929-SP, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em
08/06/2022).
Ocorre que, depois de uma grande
mobilização popular, o Congresso Nacional editou a Lei nº 14.454/2022, que
buscou superar o entendimento firmado pelo STJ.
A Lei nº 14.454/2022 alterou o art. 10 da Lei dos Planos de
Saúde (Lei nº 9.656/98), incluindo o § 12, que prevê o caráter exemplificativo
do rol da ANS:
Art. 10 (...)
§ 12. O rol de procedimentos e
eventos em saúde suplementar, atualizado pela ANS a cada nova incorporação,
constitui a referência básica para os planos privados de assistência à saúde
contratados a partir de 1º de janeiro de 1999 e para os contratos adaptados a
esta Lei e fixa as diretrizes de atenção à saúde.
Vale ressaltar, contudo, que, para o plano de saúde ser
compelido a custear, é necessário que esteja comprovada a eficácia do
tratamento ou procedimento, nos termos do § 13, também inserido:
§ 13. Em caso de tratamento ou
procedimento prescrito por médico ou odontólogo assistente que não estejam
previstos no rol referido no § 12 deste artigo, a cobertura deverá ser
autorizada pela operadora de planos de assistência à saúde, desde que:
I - exista comprovação da
eficácia, à luz das ciências da saúde, baseada em evidências científicas e
plano terapêutico; ou
II - existam recomendações pela
Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde
(Conitec), ou exista recomendação de, no mínimo, 1 (um) órgão de avaliação de
tecnologias em saúde que tenha renome internacional, desde que sejam aprovadas
também para seus nacionais.
Ainda não se sabe o que o STJ irá
decidir depois dessa alteração legislativa.
Vamos voltar ao caso concreto acima
narrado: Lucas terá direito aos tratamentos prescritos?
SIM. Isso porque o STJ entende que
esses tratamentos estão previstos no rol da ANS.
O que é psicopedagogia?
A psicopedagogia é uma área de
estudo interdisciplinar que combina conhecimentos da psicologia e da pedagogia
para compreender e intervir nos processos de aprendizagem. Ela busca
identificar as origens das dificuldades de aprendizagem em crianças, adolescentes
e adultos, propondo estratégias e intervenções que facilitem o processo
educacional.
A prática psicopedagógica envolve
a avaliação e o diagnóstico psicopedagógico, planejamento e aplicação de
intervenções educativas e terapêuticas, com o objetivo de promover o
desenvolvimento cognitivo, emocional e social, levando em consideração as características
individuais de cada sujeito.
Os psicopedagogos trabalham em
diferentes contextos, como escolas, clínicas e instituições de ensino,
contribuindo para a superação de barreiras na aprendizagem e para a maximização
do potencial de aprendizagem de cada indivíduo.
O que é equoterapia?
A equoterapia (ou terapia assistida por cavalos) é um método
terapêutico que utiliza o animal por meio de uma abordagem interdisciplinar nas
áreas de saúde, educação e equitação. O objetivo é o desenvolvimento
biopsicossocial de pessoas com deficiência e/ou com necessidades especiais.
A equoterapia, de acordo com o Ministério da Saúde [https://bvsms.saude.gov.br/09-8-dia-nacional-da-equoterapia/], “é uma forma de reabilitação baseada na neurofisiologia tendo como
base os padrões de movimentos rítmicos e repetitivos da marcha do cavalo. Ao
caminhar, o centro de gravidade do cavalo é deslocado tridimensionalmente,
resultando em um movimento similar ao da marcha humana com movimentos
alternados dos membros superiores e da pelve.
Durante as sessões de Equoterapia ocorre integração sensorial entre os
sistemas visual, vestibular e proprioceptivo e envio de estímulos específicos
às áreas correspondentes no córtex, gerando alterações e reorganização do
Sistema Nervoso Central e, consequentemente, ajustes posturais e padrões de
movimentos mais apropriados e eficientes […] A interação com o cavalo,
incluindo os primeiros contatos, os cuidados preliminares, o ato de montar e o
manuseio final desenvolvem, ainda, novas formas de socialização, autoconfiança
e autoestima”.
Há, inclusive, uma lei que regula a equoterapia: Lei nº 13.830/2019. O
tratamento ainda não consta na Política Nacional de Práticas Integrativas e
Complementares (PNPIC) do Sistema Único de Saúde, mas há projeto legislativo,
em trâmite, buscando sanar essa falta: https://www.camara.leg.br/noticias/1011721-comissao-aprova-autorizacao-para-inclusao-da-equoterapia-no-sus/
O que é musicoterapia?
A musicoterapia é “a utilização da música e seus elementos (som,
ritmo, melodia e harmonia), em grupo ou de forma individualizada, num processo
para facilitar e promover a comunicação, relação, aprendizagem, mobilização,
expressão, organização e outros objetivos terapêuticos relevantes, no sentido
de alcançar necessidades físicas, emocionais, mentais, sociais e cognitivas. A
Musicoterapia objetiva desenvolver potenciais e restabelecer funções do
indivíduo para que possa alcançar uma melhor integração intra e interpessoal e,
consequentemente, uma melhor qualidade de vida.” (anexo da Portaria nº
849/2017, do Ministério da Saúde).
A musicoterapia foi incluída à Política Nacional de Práticas
Integrativas e Complementares (PNPIC) no Sistema Único de Saúde, pela Portaria
nº 849, de 27 de março de 2017, do Ministério da Saúde, e o musicoterapeuta
reconhecido como ocupação pelo Ministério do Trabalho, sob o código 2263-05 do
Código Brasileiro de Ocupações.
Dever de cobertura, pelo
plano de saúde, de sessões de psicopedagogia, equoterapia e musicoterapia para
o tratamento de criança com TEA
Embora fixando a tese quanto à
taxatividade, em regra, do rol de procedimentos e eventos em saúde da Agência
Nacional de Saúde - ANS, a Segunda Seção do STJ concluiu ser abusiva a recusa
de cobertura de sessões de terapias especializadas prescritas para o Tratamento
de Transtorno do Espectro Autista (TEA).
Vale ressaltar, ainda, que, em
24/06/2022, foi publicada a Resolução Normativa 539/2022 da ANS, que tornou
obrigatória a cobertura, pelas operadoras de planos de saúde, de sessões com
psicólogos, terapeutas ocupacionais e fonoaudiólogos, para o tratamento/manejo
dos beneficiários portadores de transtorno do espectro autista e outros
transtornos globais do desenvolvimento, mediante atendimento por prestador apto
a executar o método ou técnica indicados pelo médico assistente para tratar a
doença ou agravo do paciente (art. 6º, § 4º, da Resolução Normativa 465/2021).
Em sua página eletrônica, a ANS
publicou, também no dia 24/06/2022, o Comunicado nº 95, alertando as operadoras
sobre a necessidade de assegurarem a continuidade do tratamento em curso para
os pacientes portadores de transtornos globais do desenvolvimento, sob pena de
incorreram em negativa indevida de cobertura.
Psicopedagogia
Especificamente quanto à
psicopedagogia, a despeito da ausência de regulamentação legal, a atuação do
psicopedagogo é reconhecida como ocupação pelo Ministério do Trabalho, sob o
código n. 2394-25 da Classificação Brasileira de Ocupações - CBO (família dos
programadores, avaliadores e orientadores de ensino) e é também considerada
especialidade da psicologia (Resolução n. 14/2000 do Conselho Federal de
Psicologia).
Desse modo, a psicopedagogia há
de ser considerada como contemplada nas sessões de psicologia, as quais, de
acordo com a ANS, são de cobertura obrigatória e ilimitada pelas operadoras de
planos de saúde, especialmente no tratamento multidisciplinar do beneficiário
com transtorno do espectro autista, obrigação essa, todavia, que, salvo
previsão contratual expressa, não se estende ao acompanhamento em ambiente
escolar e/ou domiciliar ou realizado por profissional do ensino.
Equoterapia e musicoterapia
A equoterapia e a musicoterapia
são métodos eficientes de reabilitação da pessoa com deficiência. Logo, devem
ser consideradas como de cobertura obrigatória pelas operadoras de planos de
saúde para os beneficiários com transtornos globais do desenvolvimento, dentre
eles o transtorno do espectro autista. Nesse sentido:
(...) 6. Na linha da manifestação do Conselho Federal de
Medicina e do Conselho Federal de Fisioterapia e Terapia Ocupacional, o
legislador editou a Lei 13.830/2019, na qual reconheceu a equoterapia como
método de reabilitação que utiliza o cavalo em abordagem interdisciplinar nas
áreas de saúde, educação e equitação voltada ao desenvolvimento biopsicossocial
da pessoa com deficiência (§ 1º do art. 1º), cuja prática está condicionada a
parecer favorável em avaliação médica, psicológica e fisioterápica.
7. Considerando a orientação da ANS no sentido de que a escolha
do método mais adequado para abordagem dos transtornos globais do
desenvolvimento deve ser feita pela equipe de profissionais de saúde
assistente, com a família do paciente, e sendo a equoterapia método eficiente
de reabilitação da pessoa com deficiência, há de ser tida como de cobertura
obrigatória pelas operadoras de planos de saúde para os beneficiários
portadores de paralisia cerebral.
8. Hipótese em que o beneficiário, portador de paralisia
cerebral, faz jus à cobertura das sessões de equoterapia prescritas pelo médico
assistente para seu tratamento.
9. Recurso especial conhecido e desprovido.
(REsp n. 2.049.092/RS, relatora Ministra Nancy Andrighi,
Terceira Turma, julgado em 11/4/2023, DJe de 14/4/2023.)
(...) 4. A musicoterapia foi incluída à Política Nacional de
Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC) no Sistema Único de Saúde, que
visa à prevenção de agravos e à promoção e recuperação da saúde, com ênfase na
atenção básica, voltada para o cuidado continuado, humanizado e integral em
saúde (Portaria nº 849, de 27 de março de 2017, do Ministério da Saúde), sendo
de cobertura obrigatória no tratamento multidisciplinar, prescrito pelo médico
assistente e realizado por profissional de saúde especializado para tanto.
(REsp 2.043.003/SP, 3ª Turma, DJe 23/03/2023) (...)
(AgInt nos EDcl no AREsp n. 2.339.903/SP, Terceira Turma,
julgado em 14/8/2023, DJe de 16/8/2023)
Em suma:
A psicopedagogia, a equoterapia e a musicoterapia são
de cobertura obrigatória pelas operadoras de planos de saúde para os
beneficiários com transtornos globais do desenvolvimento, dentre eles o
transtorno do espectro autista.
STJ. 3ª
Turma. REsp 2.064.964/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 20/2/2024 (Info
802).
DOD Plus –
julgado relacionado
Plano de saúde deve cobrir
Terapia ABA para tratamento do Transtorno do Espectro Autista (TEA)
É devida a cobertura do tratamento de psicoterapia, sem limite
de sessões, admitindo-se que está previsto no rol da ANS, nos seguintes termos:
a) para o tratamento de autismo, não há mais limitação de
sessões no Rol;
b) as psicoterapias pelo método ABA estão contempladas no Rol,
na sessão de psicoterapia;
c) em relatório de recomendação da Comissão Nacional de
Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde - CONITEC, de novembro de
2021, elucida-se que é adequada a utilização do método da Análise do
Comportamento Aplicada - ABA.
STJ. 4ª Turma. AgInt no REsp 1900671/SP, Rel. Min. Marco Buzzi,
julgado em 12/12/2022 (Info 764).