Dizer o Direito

sexta-feira, 22 de março de 2024

Planos de saúde são obrigados a custear psicopedagogia, equoterapia e musicoterapia para crianças com autismo, se tais tratamentos tiverem sido prescritos pelo médico assistente

Imagine a seguinte situação hipotética:

Lucas, criança de 5 anos, foi diagnosticada com Transtorno de Espectro Autista (TEA).

O médico que o acompanha prescreveu psicopedagogia, equoterapia e musicoterapia como as medidas terapêuticas adequadas para o tratamento e melhora na sua qualidade de vida.

Embora a criança tivesse convênio com plano de saúde privado, a operadora recusou cobertura ao tratamento indicado, sob a justificativa de que os procedimentos prescritos não constavam no rol obrigatório da ANS.

 

O que é esse rol da ANS?

ANS é a sigla para Agência Nacional de Saúde Suplementar, autarquia sob regime especial, responsável pela regulação dos planos de saúde.

Uma das atribuições da ANS é a de elaborar uma lista de procedimentos que deverão ser obrigatoriamente custeados pelas operadoras de planos de saúde. Essa competência está prevista no art. 4º, III, da Lei nº 9.961/2000:

Art. 4º Compete à ANS:

(...)

III - elaborar o rol de procedimentos e eventos em saúde, que constituirão referência básica para os fins do disposto na Lei nº 9.656, de 3 de junho de 1998, e suas excepcionalidades;

 

Assim, a ANS prepara uma lista de tratamentos que deverão ser obrigatoriamente fornecidos pelos planos de saúde.

 

Esse rol procedimentos e eventos da ANS é explicativo ou exaustivo?

Em junho de 2022, o STJ decidiu que o rol de Procedimentos e Eventos em Saúde Suplementar é, em regra, taxativo (STJ. 2ª Seção EREsp 1886929-SP, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 08/06/2022).

Ocorre que, depois de uma grande mobilização popular, o Congresso Nacional editou a Lei nº 14.454/2022, que buscou superar o entendimento firmado pelo STJ.

A Lei nº 14.454/2022 alterou o art. 10 da Lei dos Planos de Saúde (Lei nº 9.656/98), incluindo o § 12, que prevê o caráter exemplificativo do rol da ANS:

Art. 10 (...)

§ 12. O rol de procedimentos e eventos em saúde suplementar, atualizado pela ANS a cada nova incorporação, constitui a referência básica para os planos privados de assistência à saúde contratados a partir de 1º de janeiro de 1999 e para os contratos adaptados a esta Lei e fixa as diretrizes de atenção à saúde.

 

Vale ressaltar, contudo, que, para o plano de saúde ser compelido a custear, é necessário que esteja comprovada a eficácia do tratamento ou procedimento, nos termos do § 13, também inserido:

§ 13. Em caso de tratamento ou procedimento prescrito por médico ou odontólogo assistente que não estejam previstos no rol referido no § 12 deste artigo, a cobertura deverá ser autorizada pela operadora de planos de assistência à saúde, desde que:

I - exista comprovação da eficácia, à luz das ciências da saúde, baseada em evidências científicas e plano terapêutico; ou

II - existam recomendações pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec), ou exista recomendação de, no mínimo, 1 (um) órgão de avaliação de tecnologias em saúde que tenha renome internacional, desde que sejam aprovadas também para seus nacionais.

 

Ainda não se sabe o que o STJ irá decidir depois dessa alteração legislativa.

 

Vamos voltar ao caso concreto acima narrado: Lucas terá direito aos tratamentos prescritos?

SIM. Isso porque o STJ entende que esses tratamentos estão previstos no rol da ANS.

 

O que é psicopedagogia?

A psicopedagogia é uma área de estudo interdisciplinar que combina conhecimentos da psicologia e da pedagogia para compreender e intervir nos processos de aprendizagem. Ela busca identificar as origens das dificuldades de aprendizagem em crianças, adolescentes e adultos, propondo estratégias e intervenções que facilitem o processo educacional.

A prática psicopedagógica envolve a avaliação e o diagnóstico psicopedagógico, planejamento e aplicação de intervenções educativas e terapêuticas, com o objetivo de promover o desenvolvimento cognitivo, emocional e social, levando em consideração as características individuais de cada sujeito.

Os psicopedagogos trabalham em diferentes contextos, como escolas, clínicas e instituições de ensino, contribuindo para a superação de barreiras na aprendizagem e para a maximização do potencial de aprendizagem de cada indivíduo.

 

O que é equoterapia?

A equoterapia (ou terapia assistida por cavalos) é um método terapêutico que utiliza o animal por meio de uma abordagem interdisciplinar nas áreas de saúde, educação e equitação. O objetivo é o desenvolvimento biopsicossocial de pessoas com deficiência e/ou com necessidades especiais.

A equoterapia, de acordo com o Ministério da Saúde [https://bvsms.saude.gov.br/09-8-dia-nacional-da-equoterapia/], “é uma forma de reabilitação baseada na neurofisiologia tendo como base os padrões de movimentos rítmicos e repetitivos da marcha do cavalo. Ao caminhar, o centro de gravidade do cavalo é deslocado tridimensionalmente, resultando em um movimento similar ao da marcha humana com movimentos alternados dos membros superiores e da pelve.

Durante as sessões de Equoterapia ocorre integração sensorial entre os sistemas visual, vestibular e proprioceptivo e envio de estímulos específicos às áreas correspondentes no córtex, gerando alterações e reorganização do Sistema Nervoso Central e, consequentemente, ajustes posturais e padrões de movimentos mais apropriados e eficientes […] A interação com o cavalo, incluindo os primeiros contatos, os cuidados preliminares, o ato de montar e o manuseio final desenvolvem, ainda, novas formas de socialização, autoconfiança e autoestima”.

Há, inclusive, uma lei que regula a equoterapia: Lei nº 13.830/2019. O tratamento ainda não consta na Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC) do Sistema Único de Saúde, mas há projeto legislativo, em trâmite, buscando sanar essa falta: https://www.camara.leg.br/noticias/1011721-comissao-aprova-autorizacao-para-inclusao-da-equoterapia-no-sus/

 

O que é musicoterapia?

A musicoterapia é “a utilização da música e seus elementos (som, ritmo, melodia e harmonia), em grupo ou de forma individualizada, num processo para facilitar e promover a comunicação, relação, aprendizagem, mobilização, expressão, organização e outros objetivos terapêuticos relevantes, no sentido de alcançar necessidades físicas, emocionais, mentais, sociais e cognitivas. A Musicoterapia objetiva desenvolver potenciais e restabelecer funções do indivíduo para que possa alcançar uma melhor integração intra e interpessoal e, consequentemente, uma melhor qualidade de vida.” (anexo da Portaria nº 849/2017, do Ministério da Saúde).

A musicoterapia foi incluída à Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC) no Sistema Único de Saúde, pela Portaria nº 849, de 27 de março de 2017, do Ministério da Saúde, e o musicoterapeuta reconhecido como ocupação pelo Ministério do Trabalho, sob o código 2263-05 do Código Brasileiro de Ocupações.

 

Dever de cobertura, pelo plano de saúde, de sessões de psicopedagogia, equoterapia e musicoterapia para o tratamento de criança com TEA

Embora fixando a tese quanto à taxatividade, em regra, do rol de procedimentos e eventos em saúde da Agência Nacional de Saúde - ANS, a Segunda Seção do STJ concluiu ser abusiva a recusa de cobertura de sessões de terapias especializadas prescritas para o Tratamento de Transtorno do Espectro Autista (TEA).

Vale ressaltar, ainda, que, em 24/06/2022, foi publicada a Resolução Normativa 539/2022 da ANS, que tornou obrigatória a cobertura, pelas operadoras de planos de saúde, de sessões com psicólogos, terapeutas ocupacionais e fonoaudiólogos, para o tratamento/manejo dos beneficiários portadores de transtorno do espectro autista e outros transtornos globais do desenvolvimento, mediante atendimento por prestador apto a executar o método ou técnica indicados pelo médico assistente para tratar a doença ou agravo do paciente (art. 6º, § 4º, da Resolução Normativa 465/2021).

Em sua página eletrônica, a ANS publicou, também no dia 24/06/2022, o Comunicado nº 95, alertando as operadoras sobre a necessidade de assegurarem a continuidade do tratamento em curso para os pacientes portadores de transtornos globais do desenvolvimento, sob pena de incorreram em negativa indevida de cobertura.

 

Psicopedagogia

Especificamente quanto à psicopedagogia, a despeito da ausência de regulamentação legal, a atuação do psicopedagogo é reconhecida como ocupação pelo Ministério do Trabalho, sob o código n. 2394-25 da Classificação Brasileira de Ocupações - CBO (família dos programadores, avaliadores e orientadores de ensino) e é também considerada especialidade da psicologia (Resolução n. 14/2000 do Conselho Federal de Psicologia).

Desse modo, a psicopedagogia há de ser considerada como contemplada nas sessões de psicologia, as quais, de acordo com a ANS, são de cobertura obrigatória e ilimitada pelas operadoras de planos de saúde, especialmente no tratamento multidisciplinar do beneficiário com transtorno do espectro autista, obrigação essa, todavia, que, salvo previsão contratual expressa, não se estende ao acompanhamento em ambiente escolar e/ou domiciliar ou realizado por profissional do ensino.

 

Equoterapia e musicoterapia

A equoterapia e a musicoterapia são métodos eficientes de reabilitação da pessoa com deficiência. Logo, devem ser consideradas como de cobertura obrigatória pelas operadoras de planos de saúde para os beneficiários com transtornos globais do desenvolvimento, dentre eles o transtorno do espectro autista. Nesse sentido:

(...) 6. Na linha da manifestação do Conselho Federal de Medicina e do Conselho Federal de Fisioterapia e Terapia Ocupacional, o legislador editou a Lei 13.830/2019, na qual reconheceu a equoterapia como método de reabilitação que utiliza o cavalo em abordagem interdisciplinar nas áreas de saúde, educação e equitação voltada ao desenvolvimento biopsicossocial da pessoa com deficiência (§ 1º do art. 1º), cuja prática está condicionada a parecer favorável em avaliação médica, psicológica e fisioterápica.

7. Considerando a orientação da ANS no sentido de que a escolha do método mais adequado para abordagem dos transtornos globais do desenvolvimento deve ser feita pela equipe de profissionais de saúde assistente, com a família do paciente, e sendo a equoterapia método eficiente de reabilitação da pessoa com deficiência, há de ser tida como de cobertura obrigatória pelas operadoras de planos de saúde para os beneficiários portadores de paralisia cerebral.

8. Hipótese em que o beneficiário, portador de paralisia cerebral, faz jus à cobertura das sessões de equoterapia prescritas pelo médico assistente para seu tratamento.

9. Recurso especial conhecido e desprovido.

(REsp n. 2.049.092/RS, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 11/4/2023, DJe de 14/4/2023.)

 

(...) 4. A musicoterapia foi incluída à Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC) no Sistema Único de Saúde, que visa à prevenção de agravos e à promoção e recuperação da saúde, com ênfase na atenção básica, voltada para o cuidado continuado, humanizado e integral em saúde (Portaria nº 849, de 27 de março de 2017, do Ministério da Saúde), sendo de cobertura obrigatória no tratamento multidisciplinar, prescrito pelo médico assistente e realizado por profissional de saúde especializado para tanto. (REsp 2.043.003/SP, 3ª Turma, DJe 23/03/2023) (...)

(AgInt nos EDcl no AREsp n. 2.339.903/SP, Terceira Turma, julgado em 14/8/2023, DJe de 16/8/2023)

 

Em suma:

A psicopedagogia, a equoterapia e a musicoterapia são de cobertura obrigatória pelas operadoras de planos de saúde para os beneficiários com transtornos globais do desenvolvimento, dentre eles o transtorno do espectro autista.

STJ. 3ª Turma. REsp 2.064.964/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 20/2/2024 (Info 802).

 

DOD Plus – julgado relacionado

Plano de saúde deve cobrir Terapia ABA para tratamento do Transtorno do Espectro Autista (TEA)

É devida a cobertura do tratamento de psicoterapia, sem limite de sessões, admitindo-se que está previsto no rol da ANS, nos seguintes termos:

a) para o tratamento de autismo, não há mais limitação de sessões no Rol;

b) as psicoterapias pelo método ABA estão contempladas no Rol, na sessão de psicoterapia;

c) em relatório de recomendação da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde - CONITEC, de novembro de 2021, elucida-se que é adequada a utilização do método da Análise do Comportamento Aplicada - ABA.

STJ. 4ª Turma. AgInt no REsp 1900671/SP, Rel. Min. Marco Buzzi, julgado em 12/12/2022 (Info 764).


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